História de Quinze Dias

 


 

Textos-Fonte:

Obra Completa de Machado de Assis, vol. III,

Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1994

 

Crônicas, Machado de Assis, vol. III,

Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1938.

 

Publicado originalmente na Ilustração Brasileira, Rio de Janeiro, de 01/07/1876 a 01/01/1878.

 

 

 

 

 

  ÍNDICE

 

1º julho de 1876

 

1º de agosto de 1876  

 

15 de agosto de 1876

 

15 de setembro de 1876

 

1º de outubro de 1876

 

1º de janeiro de 1877

 

15 de janeiro de 1877

 

15 de fevereiro de 1877

 

15 DE MARÇO DE 1877

 

15 de abril de 1877

 

15 de junho de 1877

 

1º de novembro de 1877

 

15 de novembro de 1877

 

1º de dezembro de 1877

 

15 de dezembro de 1877

 

1º DE JANEIRO DE 1878

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1º de julho de 1876

 

I

 

Dou começo à crônica no momento em que o Oriente se esboroa e a poesia parece expirar às mãos grossas do vulgacho. Pobre Oriente! Mísera poesia!

 

Um profeta surgiu em uma tribo árabe, fundou uma religião, e lançou as bases de um império; império e religião têm uma só doutrina, uma só, mas forte como o granito, implacável como a cimitarra, infalível como o Alcorão.

 

Passam os séculos, os homens, as repúblicas, as paixões; a história faz-se dia por dia, folha a folha; as obras humanas alteram-se, corrompem-se, modificam-se, transformam-se. Toda a superfície civilizada da terra é um vasto renascer de coisas e idéias. Só a idéia muçulmana estava de pé; a política do Alcorão vivia com os paxás, o harém, a cimitarra e o resto.

 

Um dia, meia dúzia de rapazes libertinos iscados de João Jacques e de Benjamim Constant, ainda quentes do último discurso de Gladstone ou do mais recente artigo do Courrier de l'Europe; meia dúzia de rapazes, digo eu, resolveram dar com o monumento bizantino em terra, abrir o ventre ao fatalismo e arrancar de lá uma carta constitucional.

 

Pelas barbas do Profeta! Há nada menos maometano do que isto? Abdul-Aziz, o último sultão ortodoxo, quis resistir ao 89 turco; mas não tinha sequer o exército, e caiu; e, uma vez caído, deitou-se da janela da vida à rua da eternidade.

 

O Alcorão fala de dois anjos negros de olhos azuis, que descem a interrogar os mortos. O ex-padixá foi naturalmente inquirido como os outros:

 

— Quem é teu senhor?

 

— Alá.

 

— Tua religião?

 

— lslã.

 

— Teu profeta?

 

— Maomé.

 

— Há um só deus e um só profeta?

 

— Um só. La illah il Allah, ve Muhameden ressul Allah.

 

— Perfeito. Acompanha-nos.

 

O pobre sultão obedeceu.

 

Chegando à porta das delícias eternas achou o profeta sentado em coxins espirituais, resguardado por um guarda-sol metafísico.

 

— Que vens cá fazer? — perguntou ele.

 

Abdul explicou-se, referiu o seu infortúnio; mas o profeta atalhou-o, clamando:

 

— Cala-te! És mais do que isso, és o destruidor da lei, o inimigo do Islã. Tu fizeste possível o gérmen corruptor das minhas grandes instituições, pior que a fé de Cristo, pior que a inveja dos russos, pior que a neve dos tempos; tu fizeste o gérmen constitucional. A Turquia vai ter uma câmara, um ministério responsável, uma eleição, uma tribuna, interpelações, crises, orçamentos, discussões, a lepra toda do parlamentarismo e do constitucionalismo. Ah! quem me dera Omar! ah! quem me dera Omar! Naturalmente Abdul, se o profeta chorou naquele ponto, ofereceu-Ihe o seu lenço de assoar, — o mesmo que na mitologia do serralho substitui as setas de Cupido; ofereceu-lho, mas é provável que o profeta lhe desse em troco o mais divino dos pontapés. Se assim foi, Abdul desceu de novo à terra, e há de estar aí por algum canto... Talvez aqui na cidade.

 

Se cá viesse, é possível que a vista de alguns becos e certa quantidade de cães lhe fizessem crer que voltara a Constantinopla; ilusão que aumentaria se ouvisse falar no divã em que estou sentado e em várias mesquitas do meu conhecimento.

 

Mas o que eu apuro de tudo o que nos vem pelo cabo submarino e vapores transatlânticos é que o Oriente acabou e com ele a poesia.

 

Só a abolição do serralho é uma das revoluções maiores do século.

 

Aquele bazar de belezas de toda a casta e origem, umas baixinhas, outras altas, as loiras ao pé das morenas, os olhos negros a conversar os olhos azuis, e os cetins, os damascos, as escumilhas, os narguilés, os eunucos...

 

Oh! sobretudo os eunucos! Tudo isso é poesia que o vento do parlamentarismo dissolveu em um minuto de cólera e num acesso de eloqüência.

 

Vão-se os deuses e com eles as instituições. Dá vontade de exclamar com certo cardeal: Il mondo casca!

 

 

 

II

 

Ao menos, Abdul, se foi enterrado, foi morto e bem morto. Não aconteceu o mesmo àquele sujeito do Ceará, a quem quiseram dar a última casa, estando ele vivo, e mais que vivo.

 

Um minuto mais, tinha ele cinco palmos de terra sobre o ventre, por outras palavras um suplício maior que o de todos os que inventou Dante.

 

Acordou a tempo, com mágoa talvez de um ou mais oradores que levavam redigidas e lacrimejadas as virtudes do defunto, e acharam naturalmente pouca cortesia da parte do ressuscitado.

 

Mas aqui vai o melhor.

 

Dizem os jornais que o serviço foi preparado às pressas; que o escrivão do registro teve de interromper o alistamento dos votantes para ir registrar o óbito de Manuel da Gata.

 

Ressuscitado este, desfez o enterro, mas não se desfez a nota do cemitério.

 

Manuel da Gata pode viver cem anos mais; civilmente está, não só morto, mas até sepultado no cemitério, cova número tantos.

 

Quem nos afiança que isto não é uma trica eleitoral?

 

Manuel da Gata morreu; tanto morreu, que foi enterrado. Se ele aparecer a reclamar o seu direito, dir-lhe-ão que não é ele; que o Gata autêntico jaz na eternidade; que ele é um Gata apócrifo, uma contrafação do verdadeiro Gata, que Deus tem!

 

Esboço apenas a idéia; os políticos que lhe dêem agora a cor e o movimento.

 

 

 

III

 

O que eu não esbocei, decerto, foi o jantar dado ao Blest Gana. Qual esboçar!

 

Saiu-me acabado... dos dentes, acabado como ele merecia que fosse, por que era escolhido.

 

A imprensa da capital brilhou; meteu-se à testa de uma idéia de simpatia, e levou-a por diante, mostrando-se capaz de união e perseverança.

 

O jantar era o menos; o mais, o essencial era manifestar a um cavaleiro digno de todos os respeitos e afeições a saudade que ele ia deixar entre os brasileiros, e foi isso o que claramente e eloqüentemente disseram por parte da imprensa um jornalista militante, Quintino Bocaiúva, e um antigo jornalista, o Visconde do Rio Branco.

 

Respeito as razões que teve o Chile para não fazer duas da única legação que tem para cá dos Andes, ficando exclusivamente no Rio de Janeiro o ministro que por tantos anos representou honestamente o seu país; mas sempre lhe digo que nos levou um amigo velho, que nos amava e a quem amávamos como ele merecia.

 

Blest Gana costumava dizer, nas horas de bom humor, que era poeta de vocação e diplomata de ocasião.

 

Era injusto consigo mesmo; a vocação era igual em ambos os ramos. Somente, a diplomacia abafava o poeta, que não podia acudir ao mesmo tempo a uma nota que passava e a uma estrofe que vinha do céu.

 

Ainda se estivesse aqui só, vá; sempre lhe daríamos algum tempo de poetar. Mas ache um homem algum lazer poético andando a braços com a Patagônia e o Dr. Alsina!

 

Sou amigo do ilustre chileno há dez anos; e ainda possuo e possuirei um retrato seu, com esta graciosa quadrinha:

 

Verás en ese retrato

De semejanza perfecta,

La imagen de un mal poeta

Y poco peor literato.

 

Nem mau poeta, nem pior literato; excelente em ambas as coisas, e amigo e bom; — razões de sobra para lastimar que a necessidade política no-lo levasse.

 

 

 

IV

 

Sobre notas tivemos esta quinzena duas espécies, as falsas e as da ópera italiana, — um velho calembour, rafado, magro e decrépito que há de viver ainda muito tempo. Por quê? Porque acode logo à boca.

 

Ópera italiana é uma maneira de falar. Reuniram-se alguns artistas, que vivem há muito entre nós, e cantavam o Trovador; prometem cantar algumas óperas mais.

 

São bons? Não sei, porque não os fui ainda ouvir; mas das notícia benignas dos jornais, concluo que, — um não cantou mal, — outro interpretou bem algumas passagens, o coro de mulheres esteve fraquinho e o de homens foi bem sofrível e não se achava mal ensaiado.

 

São as próprias expressões de um dos mais competentes críticos.

 

Que concluir depois, senão que o público fluminense é uma da melhores criaturas do mundo?

 

Ele ouviu Stoltz, Lagrange, Tamberlick, Charton, Bouché e quase todas as celebridades de há anos. Benévolo e protetor do trabalho honesto, não quer saber se os atuais cantores lhe darão os gozos de outro tempo; acode a ampará-los e faz bem.

 

Balzac fala de um jogador inveterado e sem vintém que, presente nas casas de tavolagem, acompanhava mentalmente o destino de uma carta, parava nela um franco ideal, ganhava ou perdia, tomava nota das perdas e ganhos, e enchia a noite desse modo.

 

O público fluminense é esse jogador, sem vintém; ficou-lhe o vício musical sem os meios de o satisfazer. Vai à tavolagem, acompanha o destino de uma nota, reconhece às vezes que é falsa, mas troca-a mentalmente por outra que ouviu em 1853.

 

 

 

V

 

Semelhante fenômeno não pertence à companhia dos ditos que representa no Teatro Imperial. O pior que acho na Companhia dos Fenômenos é o galicismo. O empresário quis provavelmente dizer — Companhia dos Prodígios, das Coisas Extraordinárias.

 

Felizmente para ele, o público não estranhou o nome, e, se o empresário não tem por si os lexicógrafos, tem o sufrágio universal; isso lhe basta.

 

É este porém um daqueles casos em que a eleição censitária é preferível.

 

Que tais sejam os tais fenômenos ou prodígios, não sei, porque os não vi. E já o leitor concluirá daqui o valor de um cronista que pouco vê do que fala, uma espécie de urso que se não diverte.

 

Que se não diverte? É uma maneira de entender assaz arriscada.

 

Alegarei que eu, geralmente, sou pouco inclinado a prodígios. Foram convidar um lacedemônio a ir ouvir um homem que imitava com a boca o canto do rouxinol. "Eu já ouvi o rouxinol", respondeu ele. A mim, quando me falaram de um homem que tocava flauta com as próprias mãos, respondi: "Eu já ouvi o Calado".

 

Presunção de fluminense que quer ser lacedemônio.

 

Não repetirei o dito em relação ao homem que toca rabeca com os pés; seria cair numa repetição de mau gosto.

 

Não direi que já ouvi o Gravenstein ou o Muniz Barreto, porque além de tocar, o dito homem penteia-se, acende um charuto, joga cartas, desarrolha uma garrafa, uma infinidade de coisas que não fazem os meus nem os pés do leitor.

 

Há outro que engole uma espada, e uma dama que, à força de saltos mortais, chegará à imortalidade.

 

 

 

VI

 

Um correspondente do Piauí escreve para esta Corte as seguintes linhas: "Esteve por alguns dias na chefatura o juiz de direito da capital, Dr. Jesuíno Martins, que etc." Tenho lido outras vezes que a chefança perdeu um honrado magistrado; não poucas que mal anda o chefado nas mãos de Fulano; outras enfim que a chefação vai caminhando ao abismo.

 

Será preciso observar a todos os cavalheiros que cometem semelhante descuido, que não há chefança, nem chefado, nem chefação, nem chefatura, mas tão-somente chefia?

 

 

 

1º de agosto de 1876

 

I

 

Hoje posso expetorar meia dúzia de bernardices sem que o leitor dê por elas.

 

A razão não é outra senão a de ser o leitor um homem que se respeita, ama o belo, possui costumes elegantes: conseguintemente, não tem orelhas para crônicas, nem outras coisas ínfimas.

 

Suas orelhas andam de molho, reservam-se para as grandes e belas vozes que estão prestes a chegar do Rio da Prata.

 

Antes de ir mais longe, convém advertir que o fato de nos virem as celebridades líricas do Rio da Prata é um fenômeno que, em 1850, seria puramente milagre; mas que hoje, mediante os progressos do dia, parece a coisa mais natural do mundo.

 

Há incrédulos, é verdade; há ombros que se levantam, espíritos que dão seus muxoxos de dúvida.

 

Mas qual foi a verdade nova que ainda não encontrou resistências formais?

 

Colombo andou mendigando uma caravela para descobrir este continente; Galileu teve de confessar que a única bola que girava era a sua. Estes dois exemplos ilustres devem servir de algum lenitivo aos cantores platenses.

 

 

 

II

 

Demais os incrédulos, se são duros, são em ínfimo número; número verdadeiramente ridículo. Porquanto, ainda, os cantores não deram amostra, já não digo de uma nota, mas somente de um espirro ou de um aperto de mão, e já os bilhetes estão todos tomados, a preços de primíssimo cartelo.

 

Donde os filósofos podem concluir com segurança que as vozes não são a mesma coisa que os nabos. Credo, quia absurdum era a máxima de Santo Agostinho. Credo, quia carissimum é a do verdadeiro dilettanti.

 

Ao preço elevado dos bilhetes corresponde os dos vencimentos dos cantores. Só o tenor recebe por mês oito contos e oitocentos mil-réis! Não sei que haja na crítica moderna melhor definição de um tenor do que esta dos oito contos, a não ser outra de dez ou quinze.

 

Que me importa agora ouvir as explicações técnicas dos críticos para saber se o tenor tem grande voz e profundo estudo? Já sei, já o sabemos todos; ele tem uma voz de oito contos e oitocentos; devo aplaudi-lo com ambas as luvas, até arrebentá-las.

 

Vejam a superioridade da música sobre a política. Cavour fez a Itália — um pau por um olho, e não sonhou nunca receber ordenado tamanho. Mas um jovem de olho azul e bigode loiro, tendo a boa fortuna de engolir um canário ou outra ave equivalente, só por esse motivo, e por outros que seria longo desfiar, mete Cavour num chinelo. Cavour morreu talvez com pena de não ter sido barítono.

 

Não sei quanto vence o soprano; mas deve ser grosso cabedal, em vista do tenor, e porque também é célebre.

 

Imaginemos outro tanto.

 

Ora, expirou há pouco uma mulher, que me hão de conceber tinha um gênio maior que o do soprano referido, mulher que ocupa um dos mais altos lugares entre os prosadores de seu século. Madame Sand nunca venceu tanto por mês. Rendeu-lhe menos Indiana ou Mauprat do que rendem ao soprano de que trato meia dúzia de sustenidos bem sustenidos.

 

Oh! se tu tens algum filho, leitor amigo, não o faças político, nem literato, nem estatuário, nem pintor, nem arquiteto! Pode ter algum pouco de glória, e essa mesma pouca; muita que seja, nem só de glória vive o homem. Cantor, isso sim, isso dá muitos mil cruzados, dá admiração pública, dá retratos nas lojas; às vezes chega a dar aventuras romanescas.

 

 

 

III

 

Por fortuna de Alexandre Herculano, esta notícia lírica só invadiu a Corte depois de anunciado o seu azeite. Se o azeite se demora uma semana, ninguém fazia caso dele; ninguém lhe reparava na notícia, nem nos méritos.

 

Achou o tal azeite seus admiradores, como o Meneses do Jornal, e seus críticos, como o Serra da Reforma. Eu chego tarde para ser uma das duas coisas; prefiro ser ambos ao mesmo tempo. E não tendo visto ainda o azeite, estou na melhor situação para dar sobre ele o meu parecer. Quem era certo cavaleiro italiano que gastou a vida a duelar-se em defesa da Divina Comédia, sem nunca a ter lido? Eu sou esse cavaleiro apenas por um lado, que é o lado dos que dizem que, a não fazer o Herculano livros de história, deve fazer outra coisa.

 

Mas confesso que preferia ao pé do seu azeite o seu estilo; e de bom grado receberia de suas mãos o livro e a luz. Dar-me ele a luz e o Sr. *** os livros, é uma disparidade que não chega a vencer o sono... por melhor que seja o azeite.

 

Suspendamos o riso, que é alheio a estas coisas. Sunt lacrimae rerum. Pois quê! Um homem levanta um monumento, escreve o seu nome ao lado de Grote e Thierry, esculpe um Eurico, desenterra da crônica admiráveis novelas; é um grande talento, é uma erudição de primeira ordem, e no vigor da idade retira-se a uma quinta, faz da banca um lagar, engarrafa os seus merecimentos, entra em concorrência com o Sr. N. N. e nega ao mundo o que lhe não pertence a ele!

 

 

 

IV

 

Não foi esse o único prodígio da quinzena. Além dessa e da companhia lírica (a 8:000$000 cada garganta), houve o projeto de constituição turca, dado pelo Jornal do Comércio.

 

Não sei se tal constituição chegará a reger a Turquia; mas foi proposta, e tanto basta para deixar-me de boca aberta.

 

O art. 1º desse documento diz que o império otomano como Estado não tem religião: reconhece todos os cultos, protege-os e subvenciona-os.

 

Eu palpo-me, esfrego os olhos, dou murros no peito e na cabeça, agito os braços, passeio de um lado para outro, a fim de certificar-me que não estou sonhando. O Alcorão subvencionando o Evangelho! O janízaro do crê ou morre reconhecendo todos os cultos e dando a cada um os meios de subsistência! Se isto não é o fim do mundo, é pelo menos o penúltimo capítulo. Que abismo entre Omar e Mourad V!

 

Alegre-se quem quiser; eu fico triste. A tolerância dos cultos tira-me a cor local da Turquia, desnatura a história, estabelece certas acomodações entre o Alcorão e o céu. Substitui-se a Sublime Porta por uma trapeira constitucional.

 

 

 

V

 

No meio de tanta novidade — azeite herculano, ópera italiana, liberdade turca, não quis ficar atrás o Sr. Luís Sacchi. Não conheci Luís Sacchi; li porém o testamento que ele deixou e os jornais deram a lume.

 

Ali diz o finado que seu corpo deve ir em rede para o cemitério, levado por seus escravos, e que na sepultura há de se lhe gravar este epitáfio: "Aqui jaz Luís Sacchi que pela sua sorte foi original em vida e quis sê-lo depois da sua morte".

 

Gosto disto! A morte é coisa tão geralmente triste, que não se perde nada em que alguma vez apareça alegre. Luís Sacchi não quis fazer do seu passamento um quinto ato de tragédia, uma coisa lúgubre, obrigada a sangue e lágrimas. Era vulgar: ele queria separar-se do vulgo. Que fez? Inventou um epitáfio, talvez pretensioso, mas jovial. Depois dividiu a fortuna entre os escravos, deixou o resto aos parentes, embrulhou-se na rede e foi dormir no cemitério.

 

Não direi que haja profunda originalidade neste modo de retirar-se do mundo. Mas, em suma, a intenção é que salva, e se o reino dos céus também é dos originais, lá deve estar o testador italiano.

 

Amém!

 

 

 

VI

 

Na hora em que escrevo estas linhas, preparo-me para ir ver um sapatinho de cetim, — o sapatinho que Dona Lucinda nos trouxe da Europa e que o Furtado Coelho vai mostrar ao público fluminense.

 

Não vi ainda o sapato e já o acho um primor. Vejam o que é parcialidade! Juro a todos os deuses que o sapatinho foi roubado à mais bela das sultanas do padixá, ou talvez à mais ideal das huris do profeta. Imagino-o todo de arminho, cosido com cabelos da aurora, forrado com um pedacinho do céu... Que querem? Eu creio que há de ser assim, porque é impossível que o Furtado nos trouxesse um mau sapato.

 

Mas que o trouxesse! Eu consentia nisso, e no mais que fosse de seu gosto, mediante a condição de que não havia deixar-nos outra vez. Entendamo-nos; ele pertence-nos. Viu muita coisa. Teve muito aplauso, muita festa, mas a aurora das suas glórias rutilou neste céu fluminense, onde, se não rutilou também a do talento de sua esposa, já recebeu muitos dos seus melhores raios juvenis.

 

Que fiquem; é o desejo de todos e meu.

 

 

 

15 de agosto de 1876

 

I

 

No momento em que escrevo estas linhas, espreito cá de longe a leitora a preparar-se para a festa da Glória.

 

Há duas sortes de leitoras: a que vai ao outeiro, toma água benta, vê o fogo de artifício, e vai a pé para casa, se não pilha um bond; e a que vai de casa às nove horas para ir ao baile da Secretaria de Estrangeiros.

 

Uma e outra preparam-se neste instante; sonham com a festa, pedem a Nossa Senhora que não mande chuva.

 

A segunda espera que a Clemence lhe apronte o vestido a tempo e hora oportuna; a primeira dá os últimos pontos na saia do que há de estrear hoje de tarde.

 

Esta festa da Glória é a Penha elegante, do vestido escorrido, da comenda e do claque; a Penha é a Glória da rosca no chapéu, garrafão ao lado, ramo verde na carruagem e turca no cérebro.

 

Ao cabo de tudo, é a mesma alegria e a mesmíssima diversão, e o que eu lastimo é que o fogo de artifício da Glória e o garrafão da Penha levem mais fiéis que o objeto essencial da festividade. Se é certo que tout chemin mène à Rome, não é certo que tout chemin mène au ciel.

 

Leve ou não leve, a verdade é que este ano há grande entusiasmo pela festa da Glória, e dizem-se maravilhas do baile da Secretaria de Estrangeiros.

 

Um amigo meu recusa dançar há seis semanas, com o plausível motivo de que não quer gastar as pernas. Só fala em francês para conversar com os diplomatas, estuda a questão do Oriente para dizer alguma coisa ao ministro da Inglaterra. Traz de cor a frase com que há de cortejar o ministro da Itália e o chefe da legação pontifícia. Ao primeiro dirá: Itália farà da sè. Ao segundo: Super hanc petram...

 

Não é um amigo, é um manual de conversação.

 

 

 

II

 

Estou convencido de que esse amigo não foi às corridas. Não foi ou não vai? Na hora em que escrevo — não vai; naquela em que o leitor pode ler estas linhas — não foi. Eu não sei combinar estes tempos da crônica. Vá ou não vá, fosse ou não fosse, o que eu quero dizer é que o dito meu amigo brilha pela ausência na festa do Prado Fluminense.

 

Eu sou obrigado a confessar que também lá não ponho os pés, em primeiro lugar porque os tenho moídos, em segundo lugar porque não gosto de ver correr cavalos nem touros. Eu gosto de ver correr o tempo e as coisas; só isso. Às vezes corro eu também atrás da sorte grande, e correria adiante de um cacete, sem grande esforço. Quanto a ver correr cavalos...

 

Vou dizer a minha opinião toda.

 

Cada homem simpatiza com um animal. Há quem goste de cães: eu adoro-os. Um cão, sobretudo se me conhece, se não guarda a chácara de algum amigo, aonde vou, se não está dormindo, se não é leproso, se não tem dentes, oh! um cão é adorável.

 

Outros amam os gatos. São gostos; mas sempre notarei que esse quadrúpede pachorrento e voluptuoso é sobretudo amado dos homens e mulheres de certa idade.

 

Os pássaros tem seus crentes. Alguns gostam de todo o bicho careta. Não são raros os que gostam do bicho de cozinha.

 

Eu não gosto do cavalo.

 

Não gosto? Detesto-o; acho-o o mais intolerável dos quadrúpedes. É um fátuo, é um pérfido, é um animal corruto. Sob pretexto de que os poetas o têm cantado de um modo épico ou de um modo lírico; de que é nobre; amigo do homem; de que vai à guerra; de que conduz moças bonitas; de que puxa coches; sob o pretexto de uma infinidade de complacências que temos para com ele, o cavalo parece esmagar-nos com sua superioridade. Ele olha para nós com desprezo, relincha, prega-nos sustos, faz Hipólito em estilhas. É um elegante perverso, um tratante bem educado; nada mais.

 

Vejam o burro. Que mansidão! Que filantropia! Esse puxa a carroça que nos traz água, faz andar a nora, e muitas vezes o genro, carrega fruta, carvão e hortaliças, — puxa o bond, coisas todas úteis e necessárias. No meio de tudo isso apanha e não se volta contra quem lhe dá. Dizem que é teimoso. Pode ser; algum defeito é natural que tenha um animal de tantos e tão variados méritos. Mas ser teimoso é algum pecado mortal? Além de teimoso, escoiceia alguma vez; mas o coice, que no cavalo é uma perversidade, no burro é um argumento, ultima ratio.

 

 

 

III

 

E por falar neste animal, publicou-se há dias o recenseamento do Império, do qual se colige que 70% da nossa população não sabem ler.

 

Gosto dos algarismos, porque não são de meias medidas nem de metáforas. Eles dizem as coisas pelo seu nome, às vezes um nome feio, mas não havendo outro, não o escolhem. São sinceros, francos, ingênuos. As letras fizeram-se para frases; o algarismo não tem frases, nem retórica.

 

Assim, por exemplo, um homem, o leitor ou eu, querendo falar do nosso país, dirá:

 

— Quando uma Constituição livre pôs nas mãos de um povo o seu destino, força é que este povo caminhe para o futuro com as bandeiras do progresso desfraldadas. A soberania nacional reside nas Câmaras; as Câmaras são a representação nacional. A opinião pública deste país é o magistrado último, o supremo tribunal dos homens e das coisas. Peço à nação que decida entre mim e o Sr. Fidélis Teles de Meireles Queles; ela possui nas mãos o direito superior a todos os direitos.

 

A isto responderá o algarismo com a maior simplicidade:

 

— A nação não sabe ler. Há só 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler; desses uns 9% não lêem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância. Não saber ler é ignorar o Sr. Meireles Queles; é não saber o que ele vale, o que ele pensa, o que ele quer; nem se realmente pode querer ou pensar. 70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber porque nem o quê. Votam como vão à festa da Penha, — por divertimento. A Constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado.

 

Replico eu:

 

— Mas, Sr. Algarismo, creio que as instituições...

 

— As instituições existem, mas por e para 30% dos cidadãos. Proponho uma reforma no estilo político. Não se deve dizer: "consultar a nação, representantes da nação, os poderes da nação"; mas — "consultar os 30%, representantes dos 30%, poderes dos 30%". A opinião pública é uma metáfora sem base; há só a opinião dos 30%. Um deputado que disser na Câmara: "Sr. Presidente, falo deste modo porque os 30% nos ouvem..." dirá uma coisa extremamente sensata.

 

E eu não sei que se possa dizer ao algarismo, se ele falar desse modo, porque nós não temos base segura para os nossos discursos e ele tem o recenseamento.

 

 

 

IV

 

Agora uma página de luto. Nem tudo foram flores e alegrias durante a quinzena. As musas receberam um golpe cruel.

 

Veio do Norte a notícia de haver falecido o Dr. Gentil Homem de Almeida Braga. Todos os homens de gosto e cultores de letras pátrias sentiram o desaparecimento desse notabilíssimo que o destino fez nascer na pátria de Gonçalves Dias para no-lo roubar com a mesma idade com que nos arrebatou o grande poeta.

 

Poeta também e prosador de elevado merecimento, o Dr. Gentil Homem de Almeida Braga, deixou algumas páginas, — poucas em número, mas verdadeiros títulos, que honram o seu nome e nos fazem lembrar dele.

 

O Dr. Gentil Homem nas letras pátrias era conhecido pelo pseudônimo de Flávio Reimar. Com ele assinou belas páginas literárias, como o livro Entre o Céu e a Terra, livro que exprime bem o seu talento original e refletido. Deixou, segundo as folhas do Maranhão, a tradução da Evangelinez, de Longfellow. Deve ser um primor. J. Serra já há meses nos deu na Reforma um excelente espécimen desse trabalho.

 

Perdemo-lo; ele foi, prosador e poeta, dormir o sono eterno que já fechou os olhos de Lisboa e Odorico. Guardemos os seus escritos, enriqueçamos com eles o pecúlio comum.

 

 

 

15 de setembro de 1876

 

I

 

Este ano parece que remoçou o aniversário da Independência. Também os aniversários envelhecem ou adoecem, até que se desvanecem ou perecem. O dia 7 por ora está muito criança.

 

Houve realmente mais entusiasmo este ano. Uma sociedade nova veio festejar a data memorável; e da emulação que houver entre as duas só teremos que lucrar todos nós.

 

Nós temos fibra patriótica; mas um estimulante de longe em longe não faz mal a ninguém. Há anos em que as províncias nos levam vantagem nesse particular; e eu creio que isso vem de haver por lá mais pureza de costumes ou não sei que outro motivo. Algum há de haver. Folgo de dizer que este ano não foi assim. As iluminações foram brilhantes; e quanto povo nas ruas, suponho que todos os dez ou doze milhões que nos dá a Repartição de Estatística estavam concentrados nos largos de São Francisco e da Constituição e ruas adjacentes. Não morreu, nem pode morrer a lembrança do grito do Ipiranga.

 

 

 

II

 

Grito do Ipiranga? Isso era bom antes de um nobre amigo, que veio reclamar pela Gazeta de Notícias contra essa lenda de meio século.

 

Segundo o ilustrado paulista não houve nem grito nem Ipiranga.

 

Houve algumas palavras, entre elas a Independência ou Morte, — as quais todas foram proferidas em lugar diferente das margens do Ipiranga.

 

Pondera o meu amigo que não convém, a tão curta distância, desnaturar a verdade dos fatos.

 

Ninguém ignora a que estado reduziram a História Romana alguns autores alemães, cuja pena, semelhante a uma picareta, desbastou os inventos de dezoito séculos, não nos deixando mais que uma certa porção de sucessos exatos.

 

Vá feito! O tempo decorrido era longo e a tradição estava arraigada como uma idéia fixa.

 

Demais, que Numa Pompílio houvesse ou não existido é coisa que não altera sensivelmente a moderna civilização.

 

Certamente é belo que Lucrécia haja dado um exemplo de castidade às senhoras de todos os tempos; mas se os escavadores modernos me provarem que Lucrécia é uma ficção e Tarquínio uma hipótese, nem por isso deixa de haver castidade... e pretendentes.

 

Mas isso é história antiga.

 

O caso do Ipiranga data de ontem. Durante cinqüenta e quatro anos temos vindo a repetir uma coisa que o dito meu amigo declara não ter existido.

 

Houve resolução do Príncipe D. Pedro, independência e o mais; mas não foi positivamente um grito, nem ele se deu nas margens do célebre ribeiro.

 

Lá se vão as páginas dos historiadores; e isso é o menos.

 

Emendam-se as futuras edições. Mas os versos? Os versos emendam-se com muito menos facilidade.

 

Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resumia todo o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima. Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico.

 

 

 

III

 

Não foi igualmente bonito nem sumário o rolo do Largo de São Francisco, no dia 8.

 

O referido rolo, verdadeiro hors-d'oeuvre na festa, foi uma representação da guerra do Oriente.

 

Os urbanos fizeram de sérvios e os imperiais marinheiros de turcos.

 

A estação do largo foi a Belgrado.

 

Assim distribuídos os papéis, começou a pancadaria, que acabou por deixar 19 homens fora de combate.

 

Não tendo havido ensaio, foi a representação excelente pela precisão dos movimentos, naturalidade do alvoroço, e verossimilhança dos ferimentos.

 

Só numa coisa a reprodução não foi perfeita: é que os telegramas da Belgrado de cá confessam as perdas, coisas que os da Belgrado de lá nem à mão de Deus Padre querem confessar.

 

 

 

IV

 

Quem se não importa com saber se os urbanos ou seus adversários perderam ou não, e se o grito da Independência foi ou não solto à margem do Ipiranga, é a companhia lírica.

 

A companhia lírica despreocupa-se de problemas históricos ou bélicos; ela só pensa nos problemas pecuniários, aliás resolvidos desde que se anunciou. Pode dizer que chegou, viu e... embolsou os cobres.

 

Efetivamente, o delírio de Buenos Aires chegou até cá, e o erro fatal de não termos quarentena para os navios procedentes de portos infeccionados deu em resultado acharmo-nos todos delirantes.

 

Que insânia, cidadãos! como dizia o poeta da Farsália.

 

Cadeiras a 40 bicos! Camarotes a 200 paus! Ainda se fosse para ver o Micado do Japão, que nunca aparece, compreende-se; mas para ouvir no dia 1º alguns cantores, aliás bons, que a gente pode ouvir no dia 12 pelo preço de casa...

 

Eu disse o Micado, como coisa rara, e podia dizer também os olhos da Sra. Elena Samz, que são mais raros ainda. Confesso que são os maiores que os meus têm visto. Ou os olhos da contralto, ou os bispos da Africana. Não são bispos aqueles sujeitos, não são; não passam de meia dúzia de mendigos, assalariados para expetorar algumas notas, a tantos réis cada um. Ou são bispos disfarçados. Se não são bispos disfarçados, são caixeiros do Pobre Jaques, que andam mostrando as alfaias do patrão. Bispos, nunca.

 

Na hora em que escrevo, tenho à minha espera as luvas para ir aos Huguenotes. Acho que a coisa há de sair boa; entretanto veremos.

 

 

 

V

 

Admirei-me algumas linhas atrás, da prodigalidade do público em relação à companhia Ferrari. Pois não havia de que, visto que, apesar dela, aí está a do Sr. Torresi, cujas assinaturas estão tomadas todas.

 

Dentro de poucos dias não haverá meio de dar os bons dias, pagar uma letra ou pedir uma fatia de presunto, sem ser por música.

 

A vida fluminense vai ser uma partitura. a imprensa uma orquestra, a maçonaria um coro de punhais.

 

Amanhã almoçaremos em menor; calçaremos as botas em três por quatro, e as ruas a três por dois.

 

O Sr. Torresi promete dar tudo o que o Sr. Ferrari nos der, e mais o Salvador Rosa.

 

Também promete moças bonitas, cujos retratos já estão na casa do Sr. Castelões, em frente às suas rivais.

 

Pela imprensa disputa-se a questão de saber qual é o primeiro teatro da capital, se o de São Pedro, se o Dom Pedro II.

 

De um e outro lado afirma-se com a mesma convicção que o teatro do adversário é inferior.

 

Está-me isto a parecer a mania dos primeiros atores; o 1º ator Fulano, o 1º ator Sicrano, o 1º ator Paulo, o 1º ator Sancho, o 1º ator Martinho.

 

O que sairá daqui não sei; mas se a coisa não prova entusiasmo lírico, não sei que mais querem os empresários.

 

 

 

VI

 

Talvez sejam tão exigentes como os moradores da Rua das Laranjeiras, que estão a bradar que a mandem calçar, como se não bastasse morar em rua de nome tão poético.

 

É certo que, em dias de chuva, a rua fica pouco menos lamacenta que qualquer sítio do Paraguai. Também é verdade que duas pessoas, necessitadas de comunicar uma coisa à outra, com urgência podem vir desde o Cosme Velho até o Largo do Machado, cada uma de sua banda, sem achar lugar em que atravessem a rua.

 

Finalmente, não se contesta que sair do bond, em qualquer outra parte da dita rua, é empresa só comparável à passagem do mar Vermelho, que ali é escuro.

 

Tudo isso é verdade. Mas em compensação, que bonito nome! Laranjeiras! Faz lembrar Nápoles; tem uns ares de idílio: a sombra de Teócrito deve por força vagar naquelas imediações.

 

Não se pode ter tudo, — nome bonito e calçamento; dois proveitos não cabem num saco. Contentem-se os moradores com o que têm, e não peçam mais, que é ambição.

 

 

 

VII

 

Suponha o público que é um sol, e olhe em volta de si: verá o Globo a rodeá-lo, mais forte do que era até há pouco e prometendo longa vida.

 

Eu gosto de todos os globos, desde aqueles (lácteos) que tremiam quando Vênus entrou no céu (viu Lusíadas), até o da Rua dos Ourives, que é um Globo como se quer.

 

Falando no sentido natural, direi que o Globo honra a nossa imprensa e merece ser coadjuvado por todos os que amam essa alavanca do progresso, a mais potente de todas.

 

Hoje a imprensa fluminense é brilhante. Contamos órgãos importantes, neutros ou políticos, ativos, animados e perseverantes. Entre eles ocupa lugar distinto o Globo, a cujo talentoso redator e diretor, Sr. Quintino Bocaiúva, envio meus emboras, não menos que ao seu folhetinista Oscar d’Alva, cujo verdadeiro nome anda muita gente ansiosa para saber qual seja.

 

 

 

1º de outubro de 1876

 

I

 

Não reinaram só as vozes líricas nesta quinzena última; fez-lhes concorrência o boi.

 

O boi, substantivo masculino, com que nós acudimos às urgências do estômago, pai do rosbife, rival da garoupa, ente pacífico e filantrópico, não é justo que viva... isto é, que morra obscuramente nos matadouros. De quando em quando, dá-lhe para vir perfilar-se entre as nossas preocupações, como uma sombra de Bânquo, e faz bem. Não o comemos? É justo que o discutamos.

 

Veio o boi quando gozávamos — com os ouvidos as vozes do tenor Gayarre, — e com os olhos a nova mutação da cena em Constantinopla; veio, estacou as pernas, agitou a cauda e olhou fixamente para a opinião pública.

 

 

 

II

 

A opinião pública detesta o boi... sem batatas fritas; e nisto, como em outras coisas, parece-se a opinião pública com o estômago. Vendo o boi a fitá-la, a opinião estremeceu; estremeceu e perguntou o que queria. Não tendo o boi o uso da palavra, olhou melancolicamente para a vaca; a vaca olhou para Minas; Minas olhou para o Paraná; o Paraná olhou para a sua questão de limites; a questão de limites olhou para o alvará de 1749; o alvará olhou para a opinião pública; a opinião olhou para o boi. O qual olhou para a vaca; a vaca olhou para Minas; e assim iríamos até a consumação dos séculos, se não interviesse a vitela, em nome de seu pai e de sua mãe.

 

A verdade fala pela boca dos pequeninos. Verificou-se ainda uma vez esta observação, expetorando a vitela estas reflexões, tão sensatas quanto bovinas:

 

— Gênero humano! Eu li há dias no Jornal do Comércio um artigo em que se fala dos interesses do produtor, do consumidor e do intermediário; falta falar do interesse do boi, que deve pesar alguma coisa na balança da República. O interesse do produtor é vendê-lo, o do consumidor é comprá-lo, o do intermediário é impingi-lo; o do boi é justamente contrário a todos três. Ao boi importa pouco que o matem em nome de um princípio ou de outro, da livre concorrência ou do monopólio. Uma vez que o matem, ele vê nisso, não um princípio, mas um fim, e um fim de que não há meio de escapar. Gênero humano! não zombeis esta pobre espécie. Quê! Virgílio serve-se-nos para suas comparações poéticas; os pintores não deixam de incluir-nos em seus emblemas da agricultura; e não obstante esse préstimo elevado e estético, vós trazei-nos ao matadouro, como se fôssemos simples recrutas! Que diríeis vós se, em uma república de touros, um deles se lembrasse de convidar os outros a comer os homens? Por Ceres! poupai-nos por algum tempo!

 

 

 

III

 

Conheço um homem que anda meio desconfiado de que não há guerra da Sérvia nem império turco; conseqüentemente, que não há sultões caídos, nem suicidados. Mas que são as notícias com que os paquetes vêm perturbar nossas digestões? Diz ele que é uma ópera de Wagner e que os jornais desta corte traduzem mal as notícias que acham nos estrangeiros.

 

A ópera, segundo este meu amigo, intitula-se Os três Sultões ou o Sonho do Grão-Vizir, música de Wagner e libreto de Gortchakoff. Tem numerosos quadros. A introdução no estilo herzegoviano é um primor, conquanto fosse ouvida sem grande atenção por parte do público. A atenção começou quando rompeu o dueto entre Milano e Abdul-Aziz, e depois o coro do softas, que derrocam Abdul... O mais sabemos todos. A este meu amigo, replico eu dizendo que a coisa não é ópera, mas guerra; sendo prova disso o telegrama há dias publicado, que trouxe a notícia de achar-se em começo de paz. Respondeu-me que é ilusão minha. “Há decerto um coro” que entra cantando: Pace, pace, mas é um coro. Que queres tu? Antigamente as óperas eram música, hoje são isso e muita coisa mais. Vê os Huguenotes, com a descarga de tiros no fim. Pois é a mesma coisa a nova composição de Wagner. Há tiros, batalhões, mulheres estripadas, crianças partidas ao meio, aldeias reduzidas a cinzas, mas é tudo ópera.

 

 

 

IV

 

Daquela ópera ao Salvador Rosa a transição é fácil; mas, enquanto meu talentoso colega dos teatros falará mais detidamente da composição de Carlos Gomes e da companhia, eu quero daqui dar um aperto de mão ao inspirado maestro brasileiro, cujo nome cresce na estima e na veneração da Itália e da Europa.

 

Não se iludam os que desde os primeiros dias confiaram nele. Ele paga hoje essa confiança com os louros de que cerca o nome brasileiro.

 

Sinto não poder manifestar iguais sentimentos à companhia Torresi, mas tenho aqui um calo no pé... Ui!

 

 

 

V

 

Começaram a aparecer mulheres santas e milagrosas.

 

Na Bahia aparece uma que não come. Não comer é sinal vivo da santidade, donde eu concluo que o hotel é estrada real do inferno.

 

A mulher de que se trata tem-se visto tonta com as romarias dos seus devotos, que já são muitos. Dizem os jornais que a polícia foi obrigada a mandar soldados para pôr alguma ordem nas visitas espirituais à mulher santa. Algumas supõem que a mulher não come por moléstia, e não falta quem diga que ela come às escondidas.

 

Pobre senhora!

 

De outro lado, não me lembra em que província, apareceu uma velha milagrosa. Cura doenças incuráveis com ervas misteriosas. Isto com alguns coros e um tenor dá meio ato de uma ópera à Meyerbeer. Só a entrada da velha, que deve ter por força queixo comprido, visto que as velhas fantásticas não usam queixo curto, só a entrada era de arrepiar as carnes e enlevar os espíritos.

 

Io sono una gran mèdica

Dottora enciclopèdica.

 

Há quem diga que também essa mulher é santa. Eu não gosto de ver as mulheres santas e os milagres a cada canto; eles e elas têm suas ocasiões próprias.

 

 

 

VI

 

Agora, o que é ainda mais grave que tudo, é a eleição, que a esta hora se começa a manipular em todo este vasto império.

 

Em todo... é uma maneira de falar. Há soluções de continuidade, abertas pelas relações. Na Corte, por exemplo, não teremos desta vez a festa quatrienal. Tal como Niterói, que também faz relache par ordre. Dois espetáculos de menos. Dois? Oito ou dez em todo o país.

 

Não sei se o leitor tem alguma vez refletido nas coisas públicas, e se lhe parece que seria a magna descoberta do século, aquela que nos desse um meio menos incômodo e mais pacífico de exercer a soberania nacional.

 

A soberania nacional é a coisa mais bela do mundo, com a condição de ser soberania e de ser nacional. Se não tiver essas duas coisas, deixa de ser o que é para ser uma coisa semelhante aos Três Sultões, de Wagner, quero dizer muito superior, porque o Wagner, ou qualquer outro compositor apenas nos dá a cabaletta, diminutivo de cabala, que é o primeiro trecho musical da eleição. Os coros são também muito superiores, mais numerosos, mais bem ensaiados, o ensemble mais estrondoso e perfeito.

 

Cá na corte não temos desta vez cor nem cabala nem finais. Não há companhia. Por isso os diletantes emigram em massa para a província onde se prepara grande ovação aos cantores.

 

 

 

VII

 

Parece que começa a ser calçada... dou-lhe em cem, dou-lhe em mil... a Rua das Laranjeiras... Mas silêncio! isto não é assunto de interesse geral.

 

 

 

VIII

 

De interesse geral é o fundo da emancipação, pelo qual se acham libertados em alguns municípios 230 escravos. Só em alguns municípios!

 

Esperemos que o número será grande quando a libertação estiver feita em todo o império.

 

A lei de 28 de setembro fez agora cinco anos. Deus lhe dê vida e saúde! Esta lei foi um grande passo na nossa vida. Se tivesse vindo uns trinta anos antes estávamos em outras condições.

 

Mas há 30 anos, não veio a lei, mas vinham ainda escravos, por contrabando, e vendiam-se às escancaras no Valongo. Além da venda, havia o calabouço. Um homem do meu conhecimento suspira pelo azorrague .

 

— Hoje os escravos estão altanados, costuma ele dizer. Se a gente dá uma sova num, há logo quem intervenha e até chame a polícia. Bons tempos os que lá vão! Eu ainda me lembro quando a gente via passar um preto escorrendo em sangue, e dizia: "Anda diabo, não estás assim pelo que eu fiz!" — Hoje...

 

E o homem solta um suspiro, tão de dentro, tão do coração... que faz cortar o dito. Le pauvre homme!

 

 

 

1º de janeiro de 1877

 

I

 

A. S. EX.ª REVMA. SR. BISPO CAPELÃO-MOR

 

Permita-me V. EX.ª Revma. que eu, um dos mais humildes fiéis da diocese, chame sua atenção para um fato que reputo grave.

 

Ignoro se V. Ex.ª Revma., já leu um livro interessante dado a lume na quinzena que ontem findou, O Rio de Janeiro, Sua História e Monumentos, escrito por um talentoso patrício seu e meu, o Dr. Moreira de Azevedo. Naquele livro está a história da nossa cidade, ou antes uma parte dela, porque é apenas o primeiro volume, ao qual se hão de seguir outros, tão copiosos de notícias como este, folgo de esperá-lo.

 

Não sei se V. Ex.ª Revma. é como eu. Eu gosto de contemplar o passado, de viver a vida que foi, de pensar nos homens que antes de nós, ou honraram a cadeira que V. Ex.ª Revma. ocupa, ou espreitaram, como eu, as vidas alheias. Outras vezes estendo o olhar pelo futuro adiante, e vejo o que há de ser esta boa cidade de São Sebastião um século mais tarde, quando o bond for um veículo tão desacreditado como a gôndola, e o atual chapéu masculino uma simples reminiscência histórica.

 

Podia contar-lhe em duas ou três colunas o que vejo no futuro e o que revejo no passado; mas, além de que não quisera tomar o precioso tempo de V. Ex.ª Reverendíssima, tenho pressa de chegar ao ponto principal desta carta, com que abro a minha crônica.

 

E vou já a ele.

 

Há no dito livro do Dr. Moreira de Azevedo um capítulo acerca da igreja da Glória, não me refiro à do Outeiro, mas à do Largo do Machado. Nesse capítulo, que vai da página 185 à página 195, dão-se interessantes notícias do nascimento da igreja da qual traz uma excelente descrição. Diz-se aí, página 190, o seguinte:

 

"Concluiu-se a torre em 1875, e em 11 de junho desse ano colocou-se ali um sino; mas há a idéia de colocar outros sinos afinados para tocarem por música".

 

Para este ponto é que eu chamo a atenção do meu prelado.

 

Que lhe pusessem a torre, uma torre por cima daquela fachada, foi idéia, piedosa decerto, mas pouco de aplaudir-se.

 

Não há talvez segundo exemplo debaixo do sol; tudo aquilo hurle de se voir ensemble. Contudo, repito, se a arte padece, a intenção merece respeito.

 

Agora porém, Revmo. Sr. há idéia de lhe porem sinos afinados: com o fito de tocar por música, uma reprodução da Lapa dos Mercadores.

 

A Lapa dos Mercadores era uma igreja modesta, metida numa rua estreita, fora do movimento, pouco conhecida de uma grande parte da população. Um dia deu-se o luxo dos sinos musicais; e dentro de duas semanas estava célebre. Os moradores do Largo do Paço, ruas do Ouvidor, Direita e adjacentes almoçavam musicalmente todos os dias, aos domingos sobretudo. Era uma orgia de notas, um dilúvio de sustenidos. Quem quer que fosse o regente, repinicava com um brio, um fôlego, uma alma, dignos de melhor emprego.

 

E não pense V. Ex.ª Revma. que eram lá músicas enfadonhas, austeras, graves, religiosas. Não, senhor. Eram os melhores pedaços do Barbe Bleu, da Bela Helena, do Orfeu nos Infernos; uma contrafação de Offenbach, uma transcrição do Cassino.

 

Estar-se à missa ou nas cadeiras do Alcazar, salvo o respeito devido à missa, era a mesma coisa. O sineiro, —perdão, o maestro, — dava um cunho jovial ao sacrifício do Gólgota, ladeava a hóstia com a complainte do famoso polígamo Barba Azul:

 

Madame, ah! Madame,

Voyez mon tourmenter!

J’ai perdu ma femme

Bien subitement.

 

E as meninas, cujos pais, por um santo horror às comédias, não as levavam ao Alcazar, tinham o gosto de dividir o pensamento entre a Rua Uruguaiana e Rua da Amargura, isto sem cair em pecado mortal, porque em suma, desde que Offenbach podia entrar na igreja, era natural que os fiéis contemplassem Offenbach.

 

Nem era só Offenbach; Verdi, Bellini e outros maestros sérios tinham também entrada nos sinos da Lapa. Creio ter ouvido a Norma e o Trovador. Talvez os vizinhos ouçam hoje a Aída e o Fausto.

 

Não sei se entre Offenbach e Gounod, teve Lecoq algumas semanas de reinado. A Filha de Madame Angot alegrando a casa da filha de Sant’Ana e São Joaquim, confesse V. Ex.ª que tem um ar extremamente moderno.

 

Suponhamos, porém, que os primeiros trechos musicais estejam condenados, demos que hoje só se executem trechos sérios, graves, exclusivamente religiosos.

 

E suponhamos ainda, ou antes, estou certo de que não é outra a intenção, se intenção há, em relação à igreja da Glória; intenção de tocarem os sinos músicas próprias, adequadas ao sentimento cristão.

 

Resta só o fato de serem musicais os sinos.

 

Mas que coisa são sinos musicais? Os sinos, Exmo. Sr., têm uma música própria: o repique ou o dobre, — a música que no meio do tumulto da vida nos traz a idéia de alguma coisa superior à materialidade de todos os dias, que nos entristece, se é de finados, que nos alegra, se é festa, ou que simplesmente nos chama com um som especial, compassado, sabido de todos. O Miserere de Verdi é um pedaço digno de igreja; mas se o pusessem nos sinos era... vá lá... era ridículo. Chateaubriand, que escreveu sobre os sinos, que não diria, se morasse ao pé da Lapa?

 

Dirigindo-me, pois, a V. Ex.ª tenho por fim solicitar sua atenção para o uso dos sinos musicais, que pode propagar-se na cidade toda, e transformá-la numa imensa filarmônica. V. Ex.ª pode, com seus paternais conselhos, ter mão ao uso, bastando-lhe dizer que a igreja católica é uma coisa austera, que os sinos têm uma linguagem secular, uma harmonia única. Não a troquemos por outra, que é despojá-los do seu encanto, é quase mudar a feição ao culto.

 

Nada mais me resta dizer a V. Ex.ª.

 

 

 

II

 

Caiu-me há dias nas mãos, embrulhando uma touca de criança, uma folha solta da Revista Popular. A Revista Popular foi a mãe do Jornal das Famílias, do qual o Sr. Garnier é por conseguinte avô e pai.

 

A folha era justamente um pedaço da crônica. A data é de 26 de outubro de 1860.

 

Já lá vão dezesseis anos, a vida de uma donzela, — metade do título de um melodrama, que por esse tempo ainda se representava: — Artur ou Dezesseis Anos Depois.

 

Vamos ao que importa.

 

A referida crônica no dia 26 de outubro de 1860 terminava com esta notícia:

 

O Catete projetou aniquilar o teatro caricato, que arrasta pesada existência para as bandas de Botafogo, e ideou a construção de um belo templo, onde a arte dramática não fosse rodada e escarnecida por um punhado de verdugos. Apenas foi concebida a idéia, tratou-se logo de realizá-la; o Sr. Lopes de Barros incumbiu-se de traçar a planta do edifício, e com tanta perícia se houve nesta tarefa, que criou um modelo de perfeição.

 

A obra vai ser começada dentro de poucos dias, e cedo ficará concluída, presidindo à sua confecção a solidez, a elegância e a comodidade para o espectador.

 

Dizem-me que a companhia do Ginásio, a única que tem compreendido a sua missão, é a escolhida para ali representar, revezando com a companhia lírica, que tivermos, depois de edificado o teatro.

 

Que resta de tamanho projeto? Nem talvez a planta.

 

A idéia foi rapidamente concebida, a planta executada; designou-se a companhia do Ginásio para ir representar no teatro novo; nada faltou, exceto o teatro.

 

 

 

III

 

Mas aquilo é uma curiosidade velha, uma notícia morta. Venhamos a coisa novíssima, posto que velhíssima; ou antes velhíssima, posto que novíssima.

 

Já daqui percebe o leitor que aludo às galerias que se encontraram no Morro do Castelo.

 

Há pessoas para quem não é certo que haja uma África, que Napoleão tenha existido, que Maomé II esteja morto, pessoas incrédulas, mas absolutamente convencidas de que há no Morro do Castelo um tesouro dos contos arábicos.

 

Crê-se geralmente que os jesuítas, deixando o Rio de Janeiro, ali enterraram riquezas incalculáveis. Eu desde criança ouvia contar isso, e cresci com essa convicção. Os meus vizinhos, os vizinhos do leitor, os respectivos compadres, seus parentes e aderentes, toda a cidade em suma crê que há no Morro do Castelo as maiores pérolas de Golconda.

 

O certo é que um destes dias acordamos com a notícia de que, cavando-se o Morro do Castelo, descobriram-se galerias que iam ter ao mar.

 

A tradição começou a tornar-se verossímil. Fiquei logo de olho aberto sobre os jornais. Disse comigo: Vamos ter agora, dia por dia, uma descrição da descoberta, largura da galeria encontrada, matéria da construção, direção, altura e outras curiosidades. Por certo o povo acudirá ao lugar da descoberta.

 

Não vi nada.

 

Nisto ouço uma discussão. A quem pertencerão as riquezas que se encontrarem? Ao Estado? Aos concessionários da demolição? That is the question. As opiniões dividem-se; uns querem que pertençam aos concessionários, outros que ao Estado, e aduzem-se muito boas razões de um lado e do outro. Coagido a dar a minha opinião, fá-lo-ei com a brevidade e clareza que me caracterizam.

 

E digo: Os objetos que se acharem pertencem, em primeiro lugar, à arqueologia, pessoa que também é gente, e não deve ser assim tratada por cima do ombro. Mas a arqueologia tem mãos? tem casa? tem armários onde guarde os objetos? Não; por isso transmite o seu direito a outra pessoa, que é a segunda a quem pertencem os objetos: o Museu Nacional.

 

Ao Museu iriam eles ter se fossem de simples estanho. Por que não irão se forem de ouro? O ouro é para nós uma grande coisa; Compram-se melões com ele. Mas para a arqueologia todo o metal tem igual valor. Eram de prata os objetos encontrados quando se demoliu a Praça do Comércio, e entretanto devo crer que estão no Museu, porque pertencem à arqueologia, a arqueologia, que é uma velha rabugenta e avara.

 

Pode ser que eu esteja em engano; mas é provável que sejam os outros.

 

 

 

IV

 

Os touros instalaram-se, tomaram pé, assentaram residência entre nós. As duas primeiras corridas estiveram muito concorridas... Há nisto uma repetição de sílabas, mas a urgência dispensa a correção e o floreio:

 

...qui mi scusi

A urgência, si fior la penna abborra.

 

Tem havido pois muito entusiasmo. Frascuelo é a coqueluche da cidade. Que digo? Frascuelo é o frasquinho; único diminutivo consoante a seu nome.

 

Os touros é que dizem não ser de primeira bravura. Alguns parecem ser de antes do pecado original, quando no Paraíso, os lobos dormiam com os cordeiros, há quem suspeite que um deles é simplesmente pintado em papel; touro de cosmorama.

 

Ainda assim o público os aplaude, e aos capinhas, a quem lança charutos, chapéus e níquel. Dizem efetivamente que o pessoal é bom; eu ainda não pude ir lá, mas irei na primeira ocasião.

 

Outras corridas se preparam na Rua da Misericórdia. Essas são mais animadas, os touros são mais bravos, os capinhas mais fortes. Se esta metáfora ainda não disse ao leitor que eu aludo à câmara temporária, então perca a esperança de entender de retórica, e passe bem.

 

 

 

15 de janeiro de 1877

 

LIVRO I

 

ALELUIA! ALELUIA!

 

Agora, sim, senhor. Eu já sentia a falta dele. Eu e todo este povo andávamos tristes, sem motivo nem consciência, andávamos sorumbáticos, caquéticos, raquíticos, misantrópicos e calundúticos. Não me peçam os brasões do último vocábulo; posso dá-los em outra ocasião. Por agora sinto-me alvoroçado, nada menos que redivivo.

 

Que este século era o século das serrilhas, nenhum homem há que se atreva a negá-lo, salvo se absolutamente não tiver uma onça de miolos na cabeça. Como vai Vm. da sua tosse? pergunta há anos um droguista nas colunas dos nossos jornais. Frase que mostra toda a solicitude que pode haver na alma de um droguista, e de quanta complacência se compõe uma panacéia anticatarral. E com essa frase o droguista não só amola os olhos e a paciência do leitor, como lhe impinge suas abençoadas pastilhas, a troco de cinco ou seis mil-réis.

 

Essa é a serrilha medicinal. A serrilha européia compõe-se de muitas serrilhas, começando na questão do Oriente e acabando na questão espanhola. Há serrilhas de todas as cores e feitios, sem contar a chuva, que não tem feitio nem cor, e encerra em si todas as outras serrilhas do Universo.

 

De todas elas porém, a que nos dera mais no goto, a que nos sustinha neste vale de lágrimas, a que nos dava brio e força, era... era ele, o eterno, o redivivo, o nunca assaz louvado Rocambole, que eu julgava perdido para sempre, mas que afinal ressurge das próprias cinzas de Ponson du Terrail.

 

Ressurgiu. Eu o vi (não o li) vi-o com estes olhos que a terra há de comer; nas colunas do Jornal, a ele e mais as suas novas façanhas, pimpão, audaz, intrépido, prestes a mudar de cara e de roupa e de feitio, a matar, roubar, pular, voar e empalmar.

 

Certo é que nunca o vi mais gordo. Eu devo confessar este pecado a todos os ventos do horizonte; eu (cai-me a cara ao chão), eu... nunca li Rocambole, estou virgem dessa Ilíada de realejo. Vejam lá; eu que li os poetastros da Fênix Renascida, os romances de Ana Radcliffe, o Carlos Magno, as farsas de barbante, a Brasilíada do Santos e Silva, e outras obras mágicas, nunca jamais em tempo algum me lembrou ler um só capítulo do Rocambole. Inimizade pessoal? Não, posso dizer à boca cheia que não. Nunca pretendemos a mesma mulher, a mesma eleição ou o mesmo emprego. Cumprimentamo-nos, não direi familiarmente, mas com certa afabilidade, a afabilidade que pode haver entre dois boticários vizinhos, um gesto de chapéu.

 

Perdão; ouvi-o no teatro, num drama que o Furtado Coelho representou há anos. Foi a primeira e única vez que me foi dado apreciar cara a cara o famoso protagonista. Não sei que autor (francês ou brasileiro? não me lembra) teve a boa inspiração de cortar um drama do romance do Ponson du Terrail, idéia que o Furtado lhe agradeceu do íntimo d’alma, porque o resultado pagou-lhe o tempo.

 

E sem embargo de não o haver lido, mas visto e ouvido somente, gosto dele, admiro-o, respeito-o, porque ele é a flor do seu e do meu século, é a representação do nosso Romantismo caduco, da nossa grave puerilidade. Vem a propósito uma comparação que farei no segundo livro.

 

 

 

LIVRO II

 

AQUILES, ENÉIAS, DOM QUIXOTE, ROCAMBOLE

 

Estes quatro heróis, por menos que o leitor os ligue, ligam-se naturalmente como os elos de uma cadeia. Cada tempo tem a sua Ilíada; as várias Ilíadas formam a epopéia do espírito humano.

 

Na infância o herói foi Aquiles, — o guerreiro juvenil, altivo, colérico, mas simples, desafetado, largamente talhado em granito, e destacando um perfil eterno no céu da loura Hélade. Irritado, acolhe-se às tendas; quando os gregos perecem, sai armado em guerra e trava esse imortal combate com Heitor, que nenhum homem de gosto lê sem admiração; depois, vencido o inimigo, cede o despojo ao velho Príamo, nessa outra cena, que ninguém mais igualou ou nem há de igualar.

 

Esta é a Ilíada dos primeiros anos, das auroras do espírito, é a infância da arte.

 

Enéias é o segundo herói, valente e viajor como um alferes romano poético em todo o caso, melancólico, civilizado, mistura de espírito grego e latino. Prolongou-se este Enéias pela Idade Média, fez-se soldadão cristão, com o nome de Tancredo, e acabou em cavalarias altas e baixas.

 

As cavalarias, depois de estromparem os corpos à gente, passaram a estrompar os ouvidos e a paciência, e daí surgiu o Dom Quixote, que foi o terceiro herói, alma generosa e nobre, mas ridícula nos atos, embora sublime nas intenções. Ainda nesse terceiro herói luzia um pouco da luz aquileida, com as cores modernas, luz que o nosso gás brilhante e prático de todo fez empalidecer.

 

Tocou a vez a Rocambole. Este herói, vendo arrasado o palácio de Príamo e desfeitos os moinhos da Mancha, lançou mão do que lhe restava e fez-se herói de polícia, pôs-se a lutar com o código e o senso comum.

 

O século é prático, esperto e censurável; seu herói deve ter feições consoantes a estas qualidades de bom cunho. E porque a epopéia pede algum maravilhoso, Rocambole fez-se inverossímil, morre, vive, cai, barafusta e some-se, tal qual como um capoeira em dia de procissão.

 

Veja o leitor, se não há um fio secreto que liga os quatro heróis. É certo que é grande a distância entre o herói de Homero e o de Ponson du Terrail, entre Tróia e o xilindró. Mas é questão de ponto de vista. Os olhos são outros; outro é o quadro; mas a admiração é a mesma, e igualmente merecida.

 

Outrora excitavam pasmo aquelas descomunais lanças argivas. Hoje admiramos os alçapões, os nomes postiços, as barbas postiças, as aventuras postiças.

 

Ao cabo, tudo é admirar.

 

 

 

LIVRO III

 

SUPRESSÃO DO ESTÔMAGO

 

Se alguma coisa pode fazer diversão ao Rocambole é o Dr. Vindimila, cavalheiro que eu não conheço, mas que merece as honras de uma apoteose, porque acaba de dar um quinau no Padre Eterno.

 

Quem me deu notícia disso foi um droguista (ando agora com eles) nas colunas do Jornal do Comércio, em dias repetidos, e particularmente no dia 10 do corrente, publicações a pedido.

 

Vindimila inventou uma coca, um vinho estomacal. Por ora nada há que possa fazer admirar um homem qualificado e avariado. Cocas não faltam; nem cocas nem coqueiros. O importante é que Vindimila despreza o estômago, não o conhece, despreza-o, acha-o uma coisa sem préstimo, sem alcance, um verdadeiro trambolho. Esse órgão clássico da digestão não merece que um Vindimila se ocupe com ele. No tempo em que Deus o criou podia ser útil. Deus estava atrasado; a criação ressentia-se de tal ou qual infância. Vindimila é o Descartes da filosofia digestiva.

 

Que fez Vindimila?

 

Isto que dizem os Srs. Ruffier Marteiet & Comp.:

 

O Sr. Vindimila faz comer e digerir, o homem sem estômago!!! Excessos, doenças, má alimentação, atacaram de tal modo o vosso estômago que estais privados deste órgão? Não desespereis e depois de cada refeição tomai um cálice de vinho com pepsina diástase e coca de Vindimila. Com a pepsina todos os alimentos azotados, carnes, ovos, leite, etc., serão transformados em sangue; com a diástase a farinha, o pão, os feijões se converterão em princípios assimiláveis, e passarão nos vossos ossos e músculos, enfim, com a coca vosso sistema nervoso será acalmado como por encanto. O vosso estômago não trabalhou, ficou descansando, curando as suas feridas, e no entanto tendes comido, tendes digerido, tendes adquirido forças. Bem o dizíamos, o Sr. Vindimila bem mereceu da humanidade, e prezamo-nos de ser os seus agentes nesta corte.

 

Viram? Digerir sem estômago. Desde que li isto entendo que fazia multo mal em evitar camaroadas à noite e outras valentias, porque se com elas vier a perder o estômago, lá está o Dr. Vindimila, que se incumbe de digerir por mim.

 

Faziam-se e fazem-se doutores na ausência, in absentia, mediante certa quantia com que se manda buscar o diploma à Alemanha. Agora temos as digestões na ausência, e pela regra de que a civilização não pára nunca, virá breve, não um Vindimila, mas um Trintimila ou um Centimila, que nos dê o meio de pensar sem cérebro. Nesse dia o vinho digestivo cederá o passo ao vinho reflexivo, e teremos acabado a criação, porque estará dado o último golpe no Criador.

 

 

 

15 de fevereiro de 1877

 

I

 

O carnaval morreu, viva a quaresma!

 

Quando digo que o carnaval morreu apenas me refiro ao fato de haverem passado os seus três dias; não digo que o carnaval espichasse a canela.

 

Se o dissesse, errava; o carnaval não morreu; está apenas moribundo. Quem pensaria que esse jovem de 1854, tão cheio de vida, tão lépido, tão brilhante, havia de acabar vinte anos depois, como o Visconde de Bragellone, e acabar sem necrológio, nem acompanhamento?

 

Veio do limão-de-cheiro e do polvilho: volta para o polvilho e o limão-de-cheiro. Quia pulvi est. Morre triste, entre uma bisnaga e um princês, ao som de uma charamela de folha-de-flandres, descorado, estafado, desenganado. Pobre rapaz! Era forte, quando nasceu, rechonchudo, travesso, um pouco respondão, mas gracioso. Assim viveu; assim parecia viver até à consumação dos séculos. Vai senão quando raia este ano de 77, e o mísero, que parecia vender saúde, aparece com um nariz de palmo e meio e os olhos mais profundos do que as convicções de um eleitor. Já é!

 

Esta moléstia será mortal, ou teremos o gosto de o ver ainda restabelecido? Só o saberemos em 78. Esse é o ano decisivo. Se aparecer tão amarelo, como desta vez, é não contar com ele por coisa nenhuma e tratar de substituí-lo.

 

 

 

II

 

Caso venha a dar-se essa hipótese, vejamos desde já o que nos deixará o defunto. Uma coisa. Aposto que não sabem o que é? Um problema filológico.

 

Os futuros lingüistas deste país, percorrendo os dicionários, igualmente futuros, lerão o termo bisnaga, com a definição própria: uma impertinência de água-de-cheiro (ou de outra), que esguichavam sobre o pescoço dos transeuntes em dias de carnaval.

 

— Bom! Dirão os lingüistas. Temos notícia do que era bisnaga. Mas por que esse nome? donde ele vem? Quem o trouxe?

 

Neste ponto dividir-se-ão os lingüistas.

 

Uns dirão que a palavra é persa, outros sânscrita, outros groenlandesa. Não faltará quem a vá buscar na Turquia; alguns a acharão em Apúlio ou Salomão.

 

Um dirá:

 

— Não, meus colegas, nada disso; a palavra é nossa e só nossa. É nada menos do que uma corrução de charamela, mudado o cha em bis e o ramela em naga.

 

Outro:

 

— Também não. Bisnaga, diz o dicionário de certo Morais, que existiu ali pelo século XIX, que é uma planta de talo alto. Segue-se que a bisnaga carnavalesca era a mesma bisnaga vegetal, cujo sumo, extremamente cheiroso, esguichava quando a apertavam com o dedo.

 

Cada um dos lingüistas escreverá uma memória em que provará, à força de erudição e raciocínio, que seus colegas são pouco mais do que ruços pedreses. As Academias celebrarão sessões noturnas para liquidar esse ponto máximo. Haverá prêmios, motes, apostas, duelos, etc.

 

E ninguém se lembrará de ti, bom e galhofeiro Gomes de Freitas, de ti que és o único autor da palavra, que aconselhavas a bisnaga, e a grande arnica, no tempo em que o esguicho apareceu, por cujo motivo puseram o nome popularizado por ti.

 

Teve a bisnaga uma origem alegre, medicinal e filosófica. Isto é o que não hão de saber nem de dizer os grandes sábios do futuro. Salvo, se certo número da Ilustração chegar até eles, em cujo caso lhes peço o favor de me mandarem a preta dos pastéis.

 

 

 

III

 

Falei há pouco do que há de substituir o carnaval, se ele definitivamente expirar. Deve ser alguma coisa igualmente alegre: por exemplo, a Porta Otomana.

 

Vejam isto! Um ministro patriota leva a entreter toda a Europa à roda de uma mesa, a fazer cigarros das propostas diplomáticas, a dizer aos ministros estrangeiros que eles são excelentes sujeitos para uma partida de whist ou qualquer outro recreio que não seja impor a sua à Turquia; os ditos ministros estrangeiros desesperam, saem com um nariz de duas toesas, dando a Turquia a todos os diabos; vai senão quando o Jornal do Comércio publica um telegrama em que nos diz que o dito ministro turco, patriota, vencedor da Europa, foi destituído por conspirar contra o Estado!

 

Alá! Aquilo é governo ou Pêra de Satanás? Inclino-me a crer que é simplesmente Pêra. A porta tem muitos outros e vários alçapões, por onde sai ou mergulha, ora um sultão, ora um grão-vizir, de minuto a minuto ao som de um apito vingador. Todas as mutações são à vista. Eu, se na Turquia tivesse a infelicidade de fazer um dos primeiros papéis, metia claque na platéia para ser pateado. Creio que é o único recurso para voltar inteiro ao camarim.

 

 

 

IV

 

Sobre isto de voltar inteiro, dou meus parabéns aos deputados da assembléia provincial, que puderam regressar intactos depois de 72 horas de discussão.

 

Um ponto obscuro em todos os artigos e explicações, notícias e comentários, é se o presidente da assembléia foi o mesmo em todos os três dias e noites. Se foi, deve ter o mesmo privilégio daquele gigante da fábula, que dormia com cinqüenta olhos enquanto velava com os outros cinqüenta. Eram cinqüenta ou mais? Não estou certo no ponto. Do que estou certo é que ele repartia os olhos, uns para dormir, outros para velar, como nós fazemos com os urbanos; velam estes enquanto caímos nos braços de Morfeu...

 

Pois é verdade; setenta e duas horas de sessão. Esticando um pouco ia até a Páscoa. Cada um dos deputados, ao cabo desta longa sessão, parecia um Epimênides, ao voltar à rua do Ouvidor; tudo tinha ar de novo, de desconhecido, de outro século.

 

Felizmente acabou.

 

 

 

V

 

Não acabarei sem transcrever nesta coluna um artiguinho, que li nos jornais de terça-feira:

 

Duas das mais grosseiras e desmoralizadas criaturas têm freqüentado os bailes, causando os mais desagradáveis episódios aos que têm tido a infelicidade de aproximar-se-lhes.

 

Essas duas filhas de Eva acharam-se anteontem no teatro D. Pedro II vestidas en femme de la hâlle (filha da Madame Angot), e hoje também dizem que lá se acharão...

 

Seria bom que o empresário tivesse algum fiscal encarregado de vigiá-las, para evitar incidentes tais como se deram no Domingo passado.

 

Ó isca! Ó tempos! Ó costumes!

 

 

 

15 de março de 1877

 

I

 

Mais dia menos dia, demito-me deste lugar. Um historiador de quinzena, que passa os dias no fundo de um gabinete escuro e solitário, que não vai às touradas, às câmaras, à Rua do Ouvidor, um historiador assim é um puro contador de histórias.

 

E repare o leitor como a língua portuguesa é engenhosa. Um contador de histórias é justamente o contrário de um historiador, não sendo um historiador, afinal de contas, mais do que um contador de histórias. Por que essa diferença? Simples, leitor, nada mais simples. O historiador foi inventado por ti, homem culto, letrado, humanista; o contador de histórias foi inventado pelo povo, que nunca leu Tito Lívio, e entende que contar o que se passou é só fantasiar.

 

O certo é que se eu quiser dar uma descrição verídica da tourada de domingo passado, não poderei, porque não a vi.

 

Não sei se já disse alguma vez que prefiro comer o boi a vê-lo na praça.

 

Não sou homem de touradas; e se é preciso dizer tudo, detesto-as. Um amigo costuma dizer-me:

 

— Mas já as viste?

 

— Nunca!

 

— E julgas do que nunca viste?

 

Respondo a este amigo, lógico mas inadvertido, que eu não preciso ver a guerra para detestá-la, que nunca fui ao xilindró, e todavia não o estimo. Há coisas que se prejulgam, e as touradas estão nesse caso.

 

E querem saber por que detesto as touradas? Pensam que é por causa do homem? Ixe! é por causa do boi, unicamente do boi. Eu sou sócio (sentimentalmente falando) de todas as sociedades protetoras dos animais. O primeiro homem que se lembrou de criar uma sociedade protetora dos animais lavrou um grande tento em favor da humanidade; mostrou que este galo sem penas de Platão pode comer os outros galos seus colegas, mas não os quer afligir nem mortificar. Não digo que façamos nesta Corte uma sociedade protetora de animais; seria perder tempo. Em primeiro lugar, porque as ações não dariam dividendo, e ações que não dão dividendo... Em segundo lugar, haveria logo contra a sociedade uma confederação de carroceiros e brigadores de galos. Em último lugar, era ridículo. Pobre iniciador! Já estou a ver-lhe a cara larga e amarela, com que havia de ficar, quando visse o efeito da proposta! Pobre iniciador! Interessar-se por um burro! Naturalmente são primos? — Não; é uma maneira de chamar a atenção sobre si. — Há de ver que quer ser vereador da Câmara: está-se fazendo conhecido. — Um charlatão.

 

Pobre iniciador!

 

 

 

II

 

Touradas e caridade pareciam ser duas coisas pouco compatíveis.

 

Pois não o foram esta semana última, fez-se uma corrida de touros com o fim de beneficiar necessitados.

 

O pessoal era de amadores, uns já peritos; outros novos; mas galhardos todos, e moços de fino trato. A concorrência, se não foi extraordinária, foi assim bastante numerosa.

 

E não a censuro, não; a caridade fazia dispensar a feroci... não, digo ferocidade; mas contarei uma pequena anedota. Conversava eu há dias com um amigo, grande amador de touradas, e homem de espírito, s’il en fut.

 

— Não imagines que são touradas como as de Espanha. As de Espanha são bárbaras, cruéis. Estas não têm nada disso.

 

— E entretanto...

 

— Assim, por exemplo, nas corridas de Espanha é uso matar o touro... Nesta não se mata o touro; irrita-se, ataca-se, esquiva-se, mas não se mata...

 

— Ah! Na Espanha, mata-se?

 

— Mata-se... E isso é que é bonito! Isso é que é comoção!...

 

Entenderam a chave da anedota? No fundo de cada amador de tourada inocente, há um amador de tourada espanhola. Começa-se por gostar de ver irritar o touro, e acaba-se gostando de o ver matar.

 

Repito: eu gosto simplesmente de o comer. É mais humano e mais higiênico.

 

 

 

III

 

Inauguraram-se os bonds de Santa Teresa, — um sistema de alcatruzes ou de escada de Jacó, — uma imagem das coisas deste mundo. Quando um bond sobe, outro desce, não há tempo em caminho para uma pitada de rapé, quando muito, podem dois sujeitos fazer uma barretada.

 

O pior é se um dia, naquele subir e descer, descer e subir, subirem uns para o céu e outros descerem ao purgatório, ou quando menos ao necrotério.

 

Escusado é dizer que as diligências viram esta inauguração com um olhar extremamente melancólico. Alguns burros, afeitos à subida e descida do outeiro, estavam ontem lastimando este novo passo do progresso. Um deles, filósofo, humanitário e ambicioso, murmurava:

 

— Dizem: les dieux s’en vont. Que ironia! Não; não são os deuses, somos nós. Les ânes s’en vont, meus colegas, les ânes s’en vont.

 

E esse interessante quadrúpede olhava para o bond com um olhar cheio de saudade e humilhação. Talvez rememorava a queda lenta do burro, expelido de toda a parte pelo vapor, como o vapor o há de ser pelo balão, e o balão pela eletricidade, a eletricidade por uma força nova, que levará de vez este grande trem do mundo até à estação terminal.

 

O que assim não seja... por ora.

 

Mas inauguraram-se os bonds. Agora é que Santa Teresa vai ficar à moda. O que havia pior, enfadonho a mais não ser, eram as viagens de diligência, nome irônico de todos os veículos desse gênero. A diligência é um meio-termo entre a tartaruga e o boi.

 

Uma das vantagens dos bonds de Santa Teresa sobre os seus congêneres da cidade, é a impossibilidade da pescaria. A pescaria é a chaga dos outros bonds. Assim, entre o Largo do Machado e a Glória a pescaria é uma verdadeira amolação, cada bond desce a passo lento, a olhar para um e outro lado, a catar um passageiro ao longe. Às vezes o passageiro aponta na Praia do Flamengo, o bond, polido e generoso, suspende passo, cochila, toma uma pitada, dá dois dedos de conversa, apanha o passageiro, e segue o fadário até a seguinte esquina onde repete a mesma lengalenga.

 

Nada disso em Santa Teresa : ali o bond é um verdadeiro leva-e-traz, não se detém a brincar no caminho, como um estudante vadio.

 

E se depois do que fica dito, não houver uma alma caridosa que diga que eu tenho em Santa Teresa uma casa para alugar — palavra de honra! o mundo está virado.

 

 

 

IV

 

Vou dar agora uma novidade, a mais de um leitor.

 

Sabes tu, político ou literato, poeta ou gamenho, sabes que há aí perto, na cidade de Valença, uma biblioteca municipal, a qual possui um coleção da Revue des Deux Mondes, a qual coleção está toda anotada pela mão de Guizot, a cuja biblioteca pertenceu?

 

Talvez não saibas: fica sabendo.

 

 

 

V

 

Na Câmara dos Deputados começou a discussão do Voto de Graças e continuou a de outros projetos, entre estes o da lei de imprensa.

 

A lei passou para 2ª discussão, contra o voto, entre outros, do Sr. Conselheiro Duarte de Azevedo, que deu uma interpretação nova e clara ao artigo do código relativo à responsabilidade dos escritos impressos. A interpretação será naturalmente examinada pelos competentes e pelo próprio jornalismo. Eu limito-me a transcrever estas linhas que resumem o discurso:

 

Autor, segundo o código, não é o que autoriza a publicação, não é o que faz seu o artigo cuja publicação recomenda; mas aquele que faz o escrito, aquele a quem o escrito pertence.

 

De modo que, se um indivíduo escrever e assinar um artigo relativo à sua pessoa ou fatos que lhe dizem respeito, e o fizer responsabilizar por terceira pessoa, a quem tais negócios por maneira alguma pertencem, sem dúvida alguma que pelo código não é responsável o testa-de-ferro por esse artigo: mas são responsáveis o impressor ou o editor.

 

 

 

15 de abril de 1877

 

I

 

Chumbo e letras: tal é, em resumo, a história destes quinze dias. O caso das letras ainda hoje excita a curiosidade do leitor desocupado ou filósofo. Não é para menos: cinqüenta contos, que qualquer de nós diria serem cinqüenta realidades! É de fazer tremer a passarinha.

 

Negociante conheço eu (e não só um) que, logo depois da primeira notícia dos jornais, correu a examinar todas as letras que possuía, a saber se alguma tinha por onde lhe pegasse a... Ia dizer — a polícia, mas agora me lembro que a polícia nem lhes pegou, nem sequer as viu.

 

Este caso de letras falsificadas, que não existem, que o fogo lambeu, creio que tira ao processo todo o seu natural efeito. Há uma confissão, alguns depoimentos, mas o documento do crime? Esse documento, já agora introuvable, tornou-se uma simples concepção metafísica.

 

Outro reparo. Afirma-se que a pessoa acusada gozava de todo o crédito, e podia com seu próprio nome obter o valor das letras. Sendo assim, e não há razão para contestá-lo, o ato praticado é um desses fenômenos morais inexplicáveis que um filósofo moderno explica pela inconsciência, e que a Igreja explica pela tentação do mal. Quê! ter todas as vantagens da honestidade, da santa honestidade, e atirar-se cegamente do parapeito abaixo! Há nisto um transtorno moral, um caso psicológico. Ou há outra coisa, um efeito do que o Globo, com razão, chama — necessidades supérfluas da sociedade.

 

 

 

II

 

Não há a mesma coisa nos canos de chumbo. Nesses abençoados ou malditos canos há, em primeiro lugar, água, depois da água há veneno ou saúde. Questão de ponto de vista.

 

Uns querem que o chumbo seja uma Locusta metálica. Outros crêem que ele é simplesmente Eva antes da cobra. Eu suponho que a questão não está decidida de todo, mas acrescento que, se em vez de Eva, fosse Locusta, há muito que este Rio de Janeiro estaria, não digo às portas da morte, mas às do cemitério.

 

Pois o tal saturnino (é o nome do veneno) é assim tão feroz, e possuindo nossos honrados estômagos, ainda os não transportou para o Caju? Realmente, é um saturnino pacato. Individualizemos: é um Plácido Saturnino.

 

Neste ponto, dá-me o leitor um piparote, com a ponta do seu fura-bolos, e eu não posso decentemente restituir-lho, porque não sei química, e estou a falar de substâncias venenosas, de sais, de saturnos... Que quer? Vou com as turbas.

 

Se os profissionais soubessem como esta questão de chumbo transformou a cidade em uma academia de ciências físicas, inventariam questões destas todas as semanas. Ainda não entrei num bond em que não ouvisse resolver a questão agora cometida a uma comissão de competentes. Resolvida; resolvidíssima. Entra-se no Catete, começa a controvérsia, na altura da Glória, ainda subsistem algumas dúvidas; na Lapa, falta só resolver um ou dois sais. Na Rua Gonçalves Dias, o problema não existe; é morto.

 

Ora, eu, vendo isso, não quero ficar atrás; também posso dar uma colherada da substância saturnina...

 

 

 

III

 

Depois do chumbo e das letras, o sucesso maior da quinzena foi a descoberta que um sujeito fez de que o método Hudson é um método conhecido nos Açores.

 

Será?

 

Conhecendo apenas um deles, não posso decidir. Mas o autor brasileiro, intimado a largar o método, veio à imprensa declarar que lhe não pegou, que nem mesmo o conhece de vista. Foi ao Gabinete Português de Leitura, a ver se alguém lhe dava novas do método, e nada.

 

De maneira que o Sr. Hudson teve esse filho, criou-o, e pô-lo no colégio, e um filho contra o qual reclama agora outro pai. E por desgraça não pode ele provar que não há pai anterior e que só ele o é.

 

E se forem ambos? Se o engenho de um e outro se houverem encontrado? Talvez seja essa a explicação.

 

Em todo o caso, se eu alguma vez inventar qualquer método, não o publico, sem viajar o globo terráqueo, de escola em escola, de livreiro em livreiro, a ver se descubro algum método igual ao meu. Não excetuarei a China, onde havia imprensa antes de Gutenberg: irei de pólo a pólo.

 

 

 

IV

 

Prende-se ao caso do chumbo o caso da água de vintém.

 

Esta água de vintém é a que eu bebo, não por medo do chumbo, mas porque me dizem ser uma água muito pura e leve.

 

Aparece, porém, no Jornal do Comércio um homem curioso e cético. Esse homem observa que se está bebendo muita água de vintém...

 

Eu já tenho feito a mesma reflexão; mas sacudi-a do espírito para não perder a fé, aquela fé, que salva muito melhor do que o pau da barca.

 

Esta água de vintém é hoje a água do conto ou do milhão. É um inverso do tonel das Danaides. É o chafariz das Danaides. Muitos bebem dela; pouca gente haverá que não tenha ao menos um barril por dia. Mas será toda de vintém? Eu creio que é; e não me tirem esta crença. É a fé que salva.

 

 

 

V

 

Tratando-se agora da publicação dos debates lembrarei ao parlamento, que o uso, não só na Inglaterra ou França, mas em todos os países parlamentares, é que se publiquem os discursos todos no dia seguinte. Com isso ganha o público, que acompanha de perto os debates, e os próprios oradores, que têm mais certeza de serem lidos.

 

Em França alguns oradores revêem as provas dos discursos, outros não. Thiers, no tempo em que era presidente, ia em pessoa rever as provas na imprensa nacional; Gambetta manda revê-las por um colega, o Sr. Spuller; sejam ou não revistas, saem os discursos no dia seguinte.

 

Este sistema parece bom; demais, é universal.

 

 

 

15 de junho de 1877

 

I

 

Achei um homem; vou apagar a lanterna. Lá nos Campos Elísios do teu paganismo, enforca-te, Diógenes, filósofo sem préstimo nem fortuna, arruador caipora, procurador de impossíveis. Eu, sim, eu achei um homem. E sabes por que, desastrado filósofo? Porque o não procurava, porque estava a tomar tranqüilamente a minha xícara de café, à janela, a dividir os olhos entre as folhas do dia e o sol que se desembuçava. Quando menos esperava, ei-lo ante mim.

 

E quando digo que o achei, digo pouco, todos nós o achamos, não dei com ele sozinho, mas todos, a cidade em peso, se é que a cidade em peso não tem coisa mais séria em que cuidar, (os touros, por exemplo, o voltarete, o cosmorama) o que de todo não é impossível.

 

E quando digo que o achei, erro; porque não o achei, não o vi, não o conheço, achei-o sem achar. Parece um enigma e é decerto enigma, mas dos que eu quisera ver-te fazer, leitor, se tens queda por tais ocupações.

 

Suponho no leitor uma alta dose de penetração, não me canso em explicar-lhe que o homem de que se trata é o incógnito benfeitor das órfãs da Santa Casa, o que deu 20:000$000, sem dar o seu nome.

 

Sem dar o seu nome! Este simples fato conquista a nossa admiração. Não que ela esteja acima das forças humanas, é essa justamente a condição da caridade evangélica, em nome da qual os filhos do Evangelho inventaram a caridade nas gazetilhas.

 

Mas, na realidade, o caso é raro. Vinte contos dados assim, com simplicidade, sem uma notícia nas folhas públicas, sem duas barretadas, sem uma ode, sem nada; vinte contos que caem da algibeira do benfeitor para as mãos dos beneficiados, sem passar pelos prelos, os bentos prelos, os adoráveis prelos, que tudo contam, até as ações mais recônditas? A ação é cristã; mas é tão rara, como as pérolas.

 

Por isso digo: achei um homem. O anônimo da Santa Casa é o homem do Evangelho. Imagino-o com dois traços principais: o espírito de caridade, que deve ser e é anônimo, e um certo desdém para com os clarins da Fama, os rufos de tambor, os pífanos da publicidade. Pois bem, esses dois traços característicos são duas forças. Quem as tem possui já de si uma grande riqueza. E saiba agora o leitor que o ato do benfeitor da Santa Casa inspirou a um amigo meu um ato bonito.

 

Tinha ele uma escrava de 65 anos, que já lhe havia dado a ganhar sete ou oito vezes o custo. Fez anos e lembrou-se de libertar a escrava... de graça. De graça! Já isto é gentil. Ora, como só a mão direita soube do caso (a esquerda ignorou-o), travou da pena, molhou-a no tinteiro e escreveu uma notícia singela para os jornais indicando o fato, o nome da preta, o seu nome, o motivo do benefício, e este único comentário: "Ações desta merecem todo o louvor das almas bem formadas."

 

Coisas da mão direita!

 

Vai senão quando, o Jornal do Comércio dá notícia do ato anônimo da Santa Casa da Misericórdia, de que foi único confidente o seu ilustre provedor. O meu amigo recuou; não mandou a notícia às gazetas. Somente, a cada conhecido que encontra acha ocasião de dizer que já não tem a Clarimunda.

 

— Morreu?

 

— Oh! Não!

 

— Libertaste-a?

 

— Falemos de outra coisa, interrompe ele vivamente, vais hoje ao teatro?

 

Exigir mais seria cruel.

 

 

 

II

 

O capítulo dos teatros não me pertence; mas sempre direi de passagem, que a caridade teve outra manifestação, do mesmo modo que vai ter amanhã outra: — um sarau lírico e dramático em benefício das vítimas da seca.

 

Espetáculo de amadores, com uma obra de artista, e ilustre artista, um certo Artur Napoleão, boa sala, satisfação geral.

 

Lá estive até o fim, e nunca saí mais contente de espetáculo de amadores; nem sempre tive a mesma fortuna, em relação ao virtuosi. Esteve excelente.

 

Não me atrevo a pedir mais, desejarei porém que, se a Providência ferir com outro flagelo a alguma região do Brasil, aqueles generosos benfeitores se lembrem de organizar nova festa de caridade, satisfazendo o coração e o espírito.

 

 

 

III

 

Trata-se de calçar as ruas com pranchas de madeira. A idéia é por força maçônica. Pranchas... Não conheço o sistema, nem o modo de o aplicar; mas alguma coisa me diz que é bom. Primeiramente, é um calçamento que exercerá ao mesmo tempo as funções de fiscal e irrigador. Não há poeira; não há lama. Duas economias. Depois, amortece as quedas; nem há quedas, salvo se for pau envernizado. Finalmente, previne as barricadas insurrecionais.

 

Última vantagem: é postura. Postura? Postura.

 

Todos os anos, por este tempo, a polícia tem o cuidado de mandar para a imprensa um edital declarando que serão punidos com todo o rigor os que infringirem certa postura da Câmara Municipal, que proíbe queimar fogos de artifício e soltar balões ao ar.

 

O edital aparece: aparecem atrás deste os fogos de artifício; aparecem os balões. A pobre da postura, que já se vê com a idéia de ver-se executada, suspira; mas, não podendo nada, contra os infratores, recolhe-se ao arquivo, onde outras posturas, suas irmãs, dormem o sono da incredulidade.

 

Já vêem os senhores que, pondo limite à nova imprudência, eu tenho esperança de que não acendam fogueiras e bombas na madeira, nem lancem balões ao ar, que vêm depois cair ao chão. Salvo se querem imitar Gomorra, o que não é cômodo, mas pode ser pitoresco.

 

 

 

IV

 

Por último direi que vão ver a galeria de quadros do Sr. Doré, à Rua do Ouvidor.

 

Vi-a; tem quadros excelentes, paisagens, pinturas de gênero, históricas, etc., dispostos com arte e convidando os amadores. Entre nós há bons apreciadores da pintura. Devem ir à casa do Sr. Doré. Não se arrependerão como eu me não arrependo.

 

 

 

1º de novembro de 1877

 

I

 

Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e la glace est rompue; está começada a crônica.

 

Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.

 

Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.

 

Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopada do que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.

 

Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade: e contudo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol, é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.

 

Não afirmo sem prova.

 

Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: — Que calor! que sol! é de rachar passarinho! é de fazer um homem doido!

 

Íamos em carros; apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, e daí às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?

 

 

 

II

 

Para fazer alguma diversão aparece uma mulher que se traspassa tal qual a mais ínfima taberna. A diferença é que a taberna traspassa-se por meio de uma escritura e a mulher por meio de uma espada. Antes a escritura.

 

Não vi ainda essa dama, que achou meio de fazer do próprio pescoço uma bainha e suicidar-se uma vez por noite, antes de tomar chá. Já vi um sujeito que engolia espadas; vi também uma cabeça que fazia discursos, dentro de um prato, em cima de uma mesa, no meio de uma sala. O segredo da cabeça descobri-o eu, no fim de dois minutos, não assim o do engole-espadas. Mas, tenho para mim, que ninguém pode engolir uma espada, nem quente nem fria (ele engolia-as em brasa), e concluo que algum segredo havia, menos acessível ao meu bestunto.

 

Não digo com isto que a dama da Rua da Carioca deixe de cravar efetivamente uma espada no pescoço. É mulher e basta. Há de ser ciumenta, e adquiriu essa prenda, na primeira cena de ciúmes que teve de representar. Quis matar-se sem morrer, e bastou o desejo para realizá-lo; de maneira que aquilo mesmo que me daria a morte, dá a essa senhora nada menos do que a vida. A razão da diferença pode ser que esteja na espada, mas eu antes creio que está no sexo.

 

Anda no Norte um colono, um homem que faz coisas espantosas. No Sul apareceu um menino-mulher. Todos os prodígios vieram juntar-se à sombra das nossas palmeiras: é um rendez-vous das coisas extraordinárias.

 

Sem contar os tufões.

 

 

 

III

 

Falei no cemitério, sem dizer que a esta hora ou pouco mais tarde terá o leitor de ir à visitação dos defuntos.

 

A visitação dos defuntos é um bom costume católico; mas não há trigo sem joio; e a opinião do Sr. Artur Azevedo é que, na visitação, tudo é joio sem trigo.

 

A sátira publicada por esse jovem escritor é um opúsculo, contendo umas quantas centenas de versos, fáceis e correntios, com muito pico, boa intenção, catanada cega e às vezes cega demais. A idéia do poeta é que há ostentação repreensível na demonstração de uma piedade ruidosa. Tem razão. Há excesso de vidrilhos e candelabros, de souvenirs e de inconsoláveis. Alguns quadros estão pintados com traços tão espantosos, que fazem recuar de horror. Será certo que se tomam nos cemitérios aquelas carraspanas, que se comem aqueles camarões torrados? O poeta o diz; se o colorido pode estar carregado, o desenho deve ser fiel. Na verdade é de fazer pedir uma reforma nos costumes, ou a eliminação... dos vivos.

 

Onde o poeta me parece ter levado a sátira além da meta, é no que diz da viúva que, convulsa de dor pela morte do marido, vem a casar um ano depois, Hélas! Isso que lhe parece melancólico, e na verdade o é, não deixa de ser necessário e providencial. A culpa não é da viúva, é da lei que rege esta máquina, lei benéfica, tristemente benéfica mediante a qual a dor tem de acabar, como acaba o prazer, como acaba tudo. É a natureza que sacrifica o indivíduo à espécie.

 

O poeta é favorável ao sistema de cremação. A cremação tem adversários, ainda fora da Igreja; e até agora não me parece essa imitação do antigo seja uma alta necessidade do século. Pode ser higiênico; mas no outro método parece haver mais piedade, e não sei se mais filosofia. Numa das portas do cemitério do Caju, há este lema Revertere ad locum tuum. Quando ali vou, não deixo de ler essas palavras, que resumem todo o resultado das labutações da vida. Pois bem; esse lugar teu e meu, é a terra donde viemos, para onde iremos todos, alguns palmos abaixo do solo, no repouso último e definitivo, enquanto a alma vai a outras regiões.

 

No entanto, parabéns ao poeta.

 

 

 

IV

 

Se eu disser que a vida é um meteoro o leitor pensará que vou escrever uma coluna de filosofia, e eu vou apenas noticiar-lhe o Meteoro, um jornal de oito páginas, que inscreve no programa: "O Meteoro não tem pretensões à duração".

 

Bastam essas quatro palavras para ver que é jornal de espírito e senso. Geralmente, cada folha que aparece promete, pelo menos, três séculos e meio de existência, e uma regularidade cronométrica. O Meteoro nem promete durar, nem aparecer em dias certos. Virá quando puder vir.

 

Variado, gracioso, interessante, em alguns lugares, sério e até científico, o Meteoro deixa-se ler sem esforço nem enfado. Pelo contrário; lastima-se que seja meteoro e deseja-se-lhe um futuro de planeta, pelo menos que dure tanto como o planeta em que ele e nós habitamos.

 

Planeta, meteoro, duração, tudo isso me traz à mente uma idéia de um sábio francês moderno. Por cálculos que fez, é opinião dele que de dez em dez mil anos, haverá na terra um dilúvio universal, ou pelo menos continental, por motivo do deslocamento dos oceanos, produzido pelo giro do planeta.

 

Um dilúvio periódico! Que será feito então da imortalidade das nossas obras? Salvo se puserem na arca um exemplar das de todos os poetas, músicos e artistas. Oh! mas que arca não será essa! Se não temesse uma vaia, diria que será arcabuz.

 

 

 

15 DE NOVEMBRO DE 1877

 

I

 

E foi-se. Há nos ares, nas fisionomias, nos pardessus alvadios ou escuros, nas velhas luvas de sete botões, no nariz melancólico dos dilettanti, alguma coisa que nos diz que ele se foi. Napoleão, vencido e destronado, deixou nos corações de seus velhos marechais e cabos de esquadra a profunda saudade e o irremediável desespero. Saudade ficou em todos os dilettanti; desespero, não, porque o ilustre Ferrari, mais astuto que o ogre de Corse, preparou desde já a volta da ilha d’ Elba.

 

Estou pronto a confessar quanto quiserem acerca do ilustre Ferrari. Dou que não seja um grande matemático, um grande navegante, um grande naturalista. Em compensação, hão de confessar que é um empresário fino.

 

Os dilettanti disseram-lhe: — Traga-nos companhia lírica em 1878, uma boa companhia a Patti, o Capoul, o Gayarre, se puder ser, ou então a Nelson, sim? Traga uma boa companhia! Boa música! Boas óperas!

 

Ao que respondeu o ilustre Ferrari:

 

— Trago tudo e mais alguma coisa; mas, se no intervalo outro Ferrari, não menos ilustre que eu, organizar uma companhia, uma boa companhia, e vier solicitar vossas assinaturas? Não as negareis de certo. Nisto, chego eu, e dou com o nariz na porta; ou antes, vós é que dareis com a porta no nariz.

 

Giammai! — disseram em coro os dilettanti.

 

O ilustre Ferrari sorriu como quem já sabe que o dilettante põe e o acaso dispõe. Imaginou então um meio de conciliar tudo; pediu um sinal. Alguns piscaram o olho, supondo que era o melhor sinal de acordo; mas o ilustre Ferrari explicou que era melhor piscar a carteira; isto é, entreabri-la.

 

Dito e feito.

 

E eis aí como ficaram as portas dos nossos ouvidos trancadas a todas as gargantas que por ventura apareçam daqui até o inverno de 1878. Venha cá, a Nelson ou a Patti; viessem a Jenny Lind, a Malibran, a Grise, todos os prodígios vivos ou mortos, e não alcançariam um níquel. Estamos hipotecados ao ilustre Ferrari for ever!

 

 

 

II

 

Ora, convém observar que o último ato da empresa Ferrari — o ato do sinal — é muito mais importante do que à primeira vista parece.

 

Até certo tempo, o público fluminense em matéria lírica viveu embalado na doutrina e regímen da subvenção. Imaginava-se que as notas musicais deviam sair da algibeira do Estado — ou diretamente, ou por meio do imposto-lotérico. Para mostrar a ortodoxia da doutrina, citava-se exemplo de todas as nações civilizadas de ambos os hemisférios, sem atender ao conselho da femme savante:

 

Quand sur une personne on prétent se régler,

C’est par les beaux côtés qu'il faut lui ressembler.

 

Naquele tempo, era possível a aplicação da doutrina, mas os tempos mudam e as doutrinas com ele. A subvenção lírica decaiu até morrer de todo. O Estado atou os cordões da bolsa, e demoliu o Provisório.

 

Alvoreceu então a doutrina de soberania do dilettante, doutrina liberal e econômica. O dilettante discute os seus interesses, resolve sobre eles, conta, soma, diminui, multiplica, divide, paga. Não quer saber do Estado, não o convida, despreza-o e em compensação o Estado manda-lhe um cartão de visita, à guisa de agradecimento. Não somos nós que ouvimos a música? Paguemo-la; é a boa teoria; é a única.

 

 

 

III

 

Notou-se muito que na semana passada foram representadas três peças nacionais. Três peças! Já uma era de fazer pasmar. Em matéria teatral, orçamos pela alfaiataria: é de Paris que nos chegam as modas. Paris teatral é como os seus grandes depósitos ou armazéns de roupas: tem de tudo, para todos os paladares, desde o mimoso até o sangrento, passando pela tramóia.

 

Um homem que nasce, vive e morre no Rio de Janeiro, pode ter certeza de achar em cinco ou seis salas de teatro da cidade natal amostra do movimento teatral parisiense. O traidor que expirou debaixo do punhal de Laferrière vem aqui morrer às mãos do Sr. Dias Braga, com a mesma galhardia e a mesma satisfação da moral pública. O Sr. Martins desce aos infernos como Orpheu, e o Sr. Furtado Coelho dá-nos o Pai pródigo. Vivemos de, por e para Paris.

 

De repente, sem combinação, anunciam-se três peças nacionais, e a gente esfrega os olhos, e não sabe se tem la berleu. Verdade é que das três peças, uma era já conhecida do nosso público, outra é a nova forma de um romance popular; só a terceira, conhecida na província de São Paulo, não o era nesta corte. Mas, em suma, eram três; e aos nomes de J. de Alencar e de Macedo vinha juntar-se o de um jovem cultor das letras, o Sr. Dr. Carlos Ferreira.

 

Como poeta e jornalista era já conhecido do nosso público o nome do jovem rio-grandense. O Marido da doida fê-lo conhecido como dramaturgo. Imprensa e público fizeram-lhe justiça. Houve algumas reservas, e pela minha parte concordo que a tese do drama é um pouco escabrosa; mas é inegável que a desenvolveu com talento. Há lances dramáticos e interesses constantes; o diálogo é fácil e bem travado, cheio de muito sentimento, quando preciso. Se esta minha crônica fosse revista dramática, eu exporia mais detidamente o inventário dos méritos da composição que o Sr. Valle pôs em cena.

 

Terá senões? Os senões emendam-se e evitam-se com o trabalho e a perseverança. O autor do Marido da doida é ainda moço; tem talento; suponho-lhe legítimas ambições literárias. O melhor meio de progredir é andar para a frente. Venha surpreendermos no ano próximo, com um novo drama; e o público fluminense lhe dará as palmas merecidas, como as dá sempre ao talento laborioso.

 

 

 

IV

 

Já de outro laborioso talento tivemos esta semana um opúsculo, alguns discursos apenas, proferidos na Câmara dos Deputados. Refiro-me ao Sr. Dr. Franklin Doria, que falou na Câmara acerca da instrução pública com muito estudo e acerto.

 

Quem diz instrução pública diz futuro deste país. Todos pedem braços, também o Sr. Dr. Doria e eu os pedimos; mas devemos pedir com a mesma força o desenvolvimento da instrução. O Sr. Dr. Doria é professor distinto, além de advogado e parlamentar. Tem amor à arte de ensinar, e conhece a necessidade do ensino. Seus discursos robustos de idéias, sóbrios e moderados na forma, revelam o pensador e o observador paciente e sagaz. Tinha-os lido no Jornal; reli-os no opúsculo, e aplaudi a cópia de notícias, a escolha dos conceitos, com que o digno orador tratou de um assunto em que neste país só deve haver, e só há efetivamente, um único e universal partido.

 

Nossa constituição exige um povo que saiba ler. Tem-se feito bastante; mas resta fazer muito, e é por isso que a palavra do homem competente, como o Sr. Dr. Doria, deve ser ouvida com atenção e respeito.

 

 

 

V

 

Só me resta espaço para um aperto de mão ao Sr. Arthur Napoleão e ao Sr. Ciríaco de Cardoso. Este retira-se do nosso país, e deu um concerto na Filarmônica, uma última e brilhante festa; aquele executou nessa ocasião uma composição sua, de magnífico efeito, e, ao que dizem entendidos, de muita arte e largo fôlego. O Sr. Arthur Napoleão não esquece, não desampara a musa que o recebeu no berço; mostra-se digno dela e credor da admiração do público.

 

Quanto ao Sr. Ciríaco, quem não sabe o valor dos seus méritos? Retirando-se da nossa terra, pode crer que deixa merecidas saudades.

 

 

 

1º DE DEZEMBRO DE 1877

 

I

 

A quinzena teve um assunto máximo e vários assuntos mínimos. O máximo é o assunto dos carris de ferro de Botafogo, questão intricada, profunda, obscura, e sobretudo interminável, que partilha com as Aventuras de um paulista a atenção do público fluminense.

 

Tem ou não tem privilégio o Sr. Greenough? That is the question! Esse é o ponto em que se dividem as opiniões, não só as das partes contendoras, mas as de todos os fôlegos vivos e civilizados que respiram debaixo do nosso céu.

 

Naturalmente o Sr. Greenough opina pela afirmativa; inclina-se à negativa o seu adversário. Daí, mil demonstrações pró e contra o privilégio, e com tal minúcia e perspicácia, que bem mostra ser verdade que os turcos tomaram Constantinopla, porque os articulistas põem em ação toda a sagacidade bizantina, expulsa da cidade magna pelos tenentes do Coran. O período não é longo, mas é bonito.

 

Colocado entre as duas pontas de interrogação de Hamlet, o Sr. Greenough prefere to take arms against a sea of troubles em linguagem mais chã, prefere abotoar o adversário. Este não se deixa abotoar sem abotoar também; engalfinham-se. E ei-los no chão da praça, e nós a vermos touros de palanque.

 

Descascam-se os decretos e seus diferentes artigos; cada um aplica às disposições dos ditos decretos a lente do raciocínio, lente que varia conforme o olho a que é aplicada. Que disse o decreto de 56? Não disse a mesma coisa que o de 66, nem o de 68; mas o de 68 destruiu o de 66, e o de 66 o de 56? Nesse caso, qual subsiste? Um crê que o de 56, outro o de 66, outro o de 68; então nem 68, nem 66, nem 56... Et voilà pourquoi votre fille est muette!

 

 

 

II

 

Enquanto vamos liquidando essa questão grave, os argentinos chegaram à conciliação dos partidos, conciliação tão perfeita, que as últimas eleições em San Roque produziram um par de mortes. Vejam o que é conciliarem-se os partidos! Sem a conciliação, era uma hecatombe, em todo o rigor da palavra.

 

E não só morreram duas pessoas em San Roque , como até diz um jornal que as próximas eleições serão renhidas. A este resultado eleitoral da conciliação, acrescem boatos de próxima revolução em Corrientes.

 

Talvez os argentinos se revolucionem como M. Jourdain fazia prosa. Ou então, não é o Bourgeois Gentilhomme, é o Chapéu de Palhinha de Itália, que eles estão representando. — Meu genro, tudo está, desfeito! — Meu genro, tudo está reconciliado! — Nesta alternativa, passam as semanas, como o sogro da comédia de Labiche passa os atos: a brigar e a reconciliar-se.

 

Verdade é que a vida política não difere muito da vida dos namorados, e que, segundo estes, nada há melhor do que uma reconciliação, a não serem duas. Ora, uma paz absoluta não é coisa que anime os partidos. Daí um ou outro arrufo, que dá em resultado uma ou outra sangria imediatamente caem em si e reconciliam-se. Não tenho outro modo de explicar eleições renhidas entre partidos reconciliados. Estripam-se por higiene.

 

 

 

III

 

Escusado é dizer que semelhante fato, embora anormal, não faz parte das Aventuras de um Paulista, romance com que a crítica literária se tem ocupado nestes últimos dias. Ninguém leu ainda o romance nem mesmo a crítica; mas, parece certo que há nele muitos fogões, e (coisa célebre!) muitos fogões americanos (Uncle Sam).

 

Este gracioso anúncio é objeto de um a dois minutos de atenção de toda a gente que lê jornais, romances e fogões. O anúncio vulgar orça pela mofina, e enfada; aquele prefere a variedade, e está certo de chamar a atenção. Pela minha parte, já me não esquecem os tais fogões (Uncle Sam) tal a insistência com que amigos e inimigos do romancista estão todos os dias a condená-lo e a louvá-lo, a dizer que a obra é boa ou má, porque fala ou não fala nos celebrados produtos.

 

No que eu não caio é em dizer a rua. Isso...

 

 

 

IV

 

Houve uma tentativa de duelo, entre dois cavalheiros; e a propósito do caso (felizmente terminado, sem quebra de honra para nenhum) discutiu a nossa população da Rua do Ouvidor o duelo e suas vantagens e desvantagens.

 

Os dois grandes partidos mantiveram-se na estacada, duelistas e os anti-duelistas e, como sempre, cada um só viu a sua idéia e pelo lado que ela lhe aparecia, sem examinar o que havia do lado oposto, e sobretudo o que era a idéia do adversário.

 

Eu, que tenho verdadeiro amor aos leitores, deixo de instituir debate (estilo parlamentar) sobre esse ponto litigioso, e passo adiante. Não; eu não lhes pesarei na balança da equidade (estilo judiciário) a estocada e o murro seco, a bala e o cachação. Um dia, talvez, quando absolutamente não haja que dizer, mostrarei aos leitores um capítulo da minha grande obra sobre o assunto, Unha e florete, um vol. in - 4°, XXVIII - 549 págs. (estilo bibliográfico).

 

E posso falar assim porque já experimentei o duelo; já me bati. Era ainda criança, não havia motivo; mas como estávamos aborrecidos os quatro (adversários e duas testemunhas) assentamos matar o tempo, matando um ao outro. Foi à pistola e pólvora seca. A sorte designou o meu adversário para atirar primeiro; esperei e o tiro partiu... a distância razoável. Dissipado o fumo, apontei para o adversário. Onde estava ele? no chão; atirara-se valentemente ao chão, e por mais que lhe pedíssemos outra posição mais cômoda (para mim) não saiu daquela. Que havíamos de fazer? Fomos almoçar.

 

 

 

V

 

Que é o homem? Um animal mamífero e desconfiado. Prova: a extração das loterias.

 

Os espectadores daquela operação não gostam do antigo sistema, nem do atual, nem de todos os sistemas futuros, porquanto, — para mim há só um sistema bom: é o que me der vinte bagos, contecos, pelintras, ou como melhor nome haja na gíria moderna. Fora disso, abominação!

 

Nunca vi extrair loterias, e é provável que nunca chegue a vê-lo; mas se assistisse uma vez, uma que fosse, a essa operação — munido, já se vê, de um ou mais bilhetes, que suplício! Que polé! Como tudo aquilo me pareceria tenebroso!

 

Sobre loterias, ocorre dizer que a lei não permite rifas, e que os rifadores descobriram um meio de iludir a lei, mudando o nome à coisa: chamam-lhes garantias.

 

— Fique-me com esta garantia, dizia-me um sujeito anteontem; o bilhete tem três, mas eu só acho comprador para duas.

 

É escusado dizer que rejeitei nobremente o danado convite, porquanto aos olhos de um cidadão digno desse nome a lei é a mais alta das garantias (estilo prudhommesco).

 

 

 

15 DE DEZEMBRO DE 1877

 

I

 

Toda a história destes quinze dias está resumida em um só instante, e num acontecimento único: a morte de José de Alencar. Ao pé desse fúnebre sucesso, tudo o mais empalidece. Quando começou a correr a voz de que o ilustre autor do Guarani sucumbira ao mal que de há muito o minava, todos recusavam dar-lhe crédito, tão impossível parecia que o criador de tantas e tão notáveis obras pudesse sucumbir ainda em pleno vigor do espírito.

 

Quando uma individualidade se acentua fortemente e alcança, através dos anos e dos trabalhos, a admiração de todos, parece ao espírito dos demais homens que é incompatível com ela a lei comum da morte. Uma individualidade dessas não cai do mesmo modo que as outras; não é um incidente vulgar, por mais vulgar e certo que seja o destino que a todos está reservado; é um acontecimento, em alguns casos é um luto público.

 

 

 

II

 

José de Alencar ocupou nas letras e na política um lugar assaz elevado para que o seu desaparecimento fosse uma comoção pública. Era o chefe aclamado da literatura nacional. Era o mais fecundo de nossos escritores. Essa imaginação vivíssima parecia exprimir todo o esplendor da natureza da sua pátria. A política o furtou alguns anos; a alta administração alguns meses; e na política, como na administração, como no foro, deu testemunho de que possuía, além daquela imaginação, a inteligência das coisas positivas.

 

Não contarei a vida de José de Alencar; é das mais cheias e das mais exemplares. A imprensa jornalística o revelou ao país, em artigos de estudo poético, singular estréia para a primeira das imaginações brasileiras. Um dia, mais tarde, veio uma crítica e um ensaio de romance; uma comédia depois; e daí em diante não teve mais repouso aquele espírito, cuja lei era o trabalho.

 

Como romancista e dramaturgo, como orador e polemista, deixa de si exemplos e modelos dignos dos aplausos que tiveram e hão de ter. Foi um engenho original e criador; e não foi só isso, que já seria muito; foi também homem de profundo estudo, e de aturada perseverança. José de Alencar não teve lazeres; a sua vida era uma perpétua oficina.

 

 

 

III

 

Já a esta hora a notícia do desastre das nossas letras corre o Império; já o fio telegráfico a levou, através do Atlântico, por onde nos trouxe não há muito a notícia da morte do autor do Eurico.

 

Ambas as literaturas do nosso idioma estão de luto; com pouco intervalo as feriu a lei da morte.

 

Que a geração que nasce e as que hão de vir aprendam no modelo literário que acabamos de perder as regras da nossa arte nacional e o exemplo do esforço fecundo e de uma grande vida. A geração atual pode legar com orgulho aos vindouros a obra vasta e brilhante do engenho desse poeta da prosa, que soube todos os tons da escala, desde o mavioso até o épico.

 

Poucas linhas são estas, poucas e pálidas mas necessárias ainda assim, porque são as expressões de um dever de brasileiro e de admirador.

 

 

 

1º DE JANEIRO DE 1878

 

I

 

Não quis acabar este ano de 1877 sem lançar um luto mais na alma da nação brasileira, ainda mal convalescida do golpe que lhe produziu a morte de José de Alencar. Poucas semanas depois de expirar o autor do Guarani, era fulminado o chefe do gabinete de 3 de Agosto; e esses dois homens, diversos na política e na tribuna, vieram enfim a reconciliar-se na morte e na imortalidade.

 

A imprensa prestou já ao conselheiro Zacarias as justas homenagens a que tinha direito esse eminente estadista. Já lhe chorou a morte inesperada e tão cruel para a nação inteira, e especialmente para a tribuna política, para a ciência, para o partido liberal e para a administração pública.

 

O que ele foi durante mais de trinta anos, como deputado, senador, ministro, professor e jurisconsulto, está escrito em atos e palavras perduráveis; e não irei eu repetir data por data, sucesso por sucesso, a história desse atleta, que sabia arrancar a admiração aos próprios adversários.

 

E nesse ponto cabe ponderar que a vida do conselheiro Zacarias, quando os futuros biógrafos a escreverem, servirá de exemplo e estudo às novas gerações políticas. Elas examinarão o característico dessa individualidade, cujo talento se ligava às virtudes mais austeras, e que, não sabendo a linguagem das multidões, gozava da mais larga popularidade; chefe liberal, acatado e independente; homem a todos os respeitos superior e afirmativo da sua pessoa.

 

O futuro poderá conhecer os talentos e os serviços do eminente estadista; mas o que será letra morta para ele, é o modo e o gênio da eloqüência que o céu lhe dera; essa palavra constante e única, que sabia ser e era ordinariamente familiar, mas sempre enérgica, e quando convinha sarcástica, e, quando sarcástica, inimitável.

 

Verão, entretanto, os homens futuros, ao lerem os debates do nosso tempo, que o conselheiro Zacarias preenchia todos os deveres do parlamentar. Nenhum ramo da administração lhe era desconhecido; ele discutia com igual propriedade, elevação e perícia, as finanças ou os negócios diplomáticos, os assuntos de guerra ou de marinha, as questões de colonização ou de magistratura.

 

Das quatro vezes em que foi ministro, três vezes presidiu ministérios; e em cada uma daquelas quatro regeu uma pasta diferente, indo da Marinha para a Justiça e do Império à Fazenda. Estudara antes, durante e depois; estudou sempre. Era homem da sua família e do seu gabinete. Tinha a paixão do saber, e a consciência do dever imposto pela posição no partido a que pertencia, e no parlamento em que era um dos principais vultos.

 

Orador e polemista, nunca recuou diante de nenhum adversário, nem de nenhuma questão; sua dialética era de aço, sua intrepidez não tinha desânimo. Ou no poder ou fora dele, a tribuna o viu sempre de pé, dominando os que o ouviam, e, mais do que isso, dominando-se a si próprio. Era absoluto senhor da palavra; nem se desviava, nem se continha; dizia o que queria e como queria.

 

Ninguém poderia supor, há algumas semanas, que esse homem robusto, não só de espírito, mas também de corpo, cairia tão depressa para nunca mais se levantar. A morte tomou-o de surpresa; e a notícia dela, que consternou toda esta cidade, lançará o luto e a dor a todo o Império do Brasil.

 

Não há conservadores, nem liberais quando se tratar de um vulto daquela estatura, cujo fato melhor fará sentir o que ele valia e de quem a posteridade dirá que era um homem, um verdadeiro homem.

 

 

 

II

 

Aquele único assunto devia bastar a esta crônica; mas força é comemorar dois fatos dos últimos dias.

 

O primeiro é a crise ministerial.

 

Nossos leitores sabem que esta folha é estranha à política; e, portanto, não esperam de mim nenhuma indicação ou apreciação no que respeita à substância dos fatos.

 

O que me compete é dizer que uma ocasião de crise é a prova mais concludente de que há só uma coisa comparável à fecundidade dos noveleiros: é a credulidade dos outros.

 

Oh? os noveleiros!

 

Oh! os outros!

 

Ainda não estava escolhido o organizador do novo gabinete, ou pelo menos não era oficialmente sabido, e já corriam listas ministeriais. Algumas listas eram tão sinceras, tão verdadeiras, que os outros diziam: Só nos falta o ministério da Justiça ou o da Guerra ou qualquer outro. No mais era exata.

 

Então os outros ouviam, decoravam, copiavam e passavam adiante a outros e outros, e estes a outros, e mais outros. Mas, como as listas eram diferentes, havia ao fim do dia setenta e cinco a setenta e oito ministros, todos autenticados pelos autores.

 

Tempo de guerra, mentira como terra.

 

O grande laboratório era a Rua do Ouvidor. Nessa rua faz-se e desfaz-se mais depressa um gabinete do que eu escrevo esta crônica, e notem que é escrita a todo o pano. Já me aconteceu ter notícia de três ministérios, entre a Rua da Quitanda e o ponto dos bonds. Afinal, só há um ministério verdadeiro: é o que deveras se organiza, e eu ainda não o vi, à hora em que escrevo estas linhas.

 

O que for soará.

 

 

 

III

 

O outro ponto é o telegrama que nos dá a Inglaterra ameaçando perturbar a paz (relativa) da Europa.

 

Peço desculpa à Inglaterra, mas parece-me que os seus armamentos são para ela mesma ver. Não é outra coisa. Aqueles arsenais, aquelas armadas, aquele fervor em aumentar tropas e navios, creio que seja verdade, mas também creio que seja inútil. Não porque a Inglaterra não os possa empregar com vantagem, mas porque são tardios. É tarde. Inês é morta.

 

Morta e sepultada. Os russos com as costas quentes, com a vitória na mão, e Constantinopla diante dos olhos, não hão de recuar uma linha, qualquer que seja a atitude inglesa.

 

Verdade é que nós estamos longe, somos uns míopes, sobretudo não temos interesse no caso. Pode ser que não tenhamos razão; mas afigura-se-nos que sim. Temos razão.

 

Em todo caso, lavro daqui o meu protesto, diante das potências deste e do outro mundo (o velho) e declaro, alto e bom som, à posteridade, que não creio nos armamentos, ou pelo menos na eficácia deles.

 

Creio que o telegrama é peta da Havas.

 

Petíssima.

 

 

 

IV

 

Um derradeiro fato:

 

Apareceu mais um campeão na imprensa diária, o Cruzeiro, jornal anunciado há algumas semanas. Desejamos longa vida ao nosso novo e brilhante colega.