Crisálidas

 


 

Texto-fonte:

Obra Completa, Machado de Assis, vol. II,

Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

 

Publicado originalmente no Rio de Janeiro, por B.-L. Garnier, em 1864.

 

 

 

ÍNDICE

 

Musa Consolatrix

 

visio

 

Quinze Anos

 

stella

 

Epitáfio do México

 

polÔnia

 

erro

 

elegia

 

sinhÁ

 

Horas Vivas

 

Versos a Corina

 

Última Folha

 

 

 

POEMAS PRESENTES Na primeira edição

 

Lúcia

 

O Dilúvio

 

 

A Caridade

 

A Jovem Cativa

 

No Limiar

 

Aspiração

 

Cleópatra

 

Os Arlequins

 

As Ondinas

 

Maria Duplessis

 

As Rosas

 

Os DOUS Horizontes

 

Monte Alverne

 

As Ventoinhas

 

Alpujarra

 

Embirração

 

Posfácio

 

 

 

 

 

 

 

 

 

MUSA CONSOLATRIX

 

Que a mão do tempo e o hálito dos homens

Murchem a flor das ilusões da vida,

Musa consoladora,

É no teu seio amigo e sossegado

Que o poeta respira o suave sono.

 

Não há, não há contigo,

Nem dor aguda, nem sombrios ermos;

Da tua voz os namorados cantos

Enchem, povoam tudo

De íntima paz, de vida e de conforto.

 

Ante esta voz que as dores adormece,

E muda o agudo espinho em flor cheirosa,

Que vales tu, desilusão dos homens?

Tu que podes, ó tempo?

A alma triste do poeta sobrenada

À enchente das angústias,

E, afrontando o rugido da tormenta,

Passa cantando, alcíone divina.

Musa consoladora,

Quando da minha fronte de mancebo

A última ilusão cair, bem como

Folha amarela e seca

Que ao chão atira a viração do outono,

Ah! no teu seio amigo

Acolhe-me, — e haverá minha alma aflita,

Em vez de algumas ilusões que teve,

A paz, o último bem, último e puro!

 

 

VISIO

 

Eras pálida. E os cabelos,

Aéreos, soltos novelos

Sobre as espáduas caíam...

Os olhos meio cerrados

De volúpia e de ternura

Entre lágrimas luziam...

E os braços entrelaçados,

Como cingindo a ventura,

Ao teu seio me cingiam...

 

Depois, naquele delírio,

Suave, doce martírio

De pouquíssimos instantes

Os teus lábios sequiosos,

Frios, trêmulos, trocavam

Os beijos mais delirantes,

E no supremo dos gozos

Ante os anjos se casavam

Nossas almas palpitantes...     

 

 Depois... depois a verdade,

A fria realidade,

A solidão, a tristeza;

Daquele sonho desperto,

Olhei... silêncio de morte

Respirava a natureza, —

Era a terra, era o deserto,

Fora-se o doce transporte,

Restava a fria certeza.

 

Desfizera-se a mentira:

Tudo aos meus olhos fugira,

Tu e o teu olhar ardente,

Lábios trêmulos e frios,

O abraço longo e apertado,

O beijo doce e veemente;

Restavam meus desvarios,

E o incessante cuidado,

E a fantasia doente.

 

E agora te vejo. E fria

Tão outra estás da que eu via

Naquele sonho encantado!

És outra, calma, discreta,

Com o olhar indiferente,

Tão outro do olhar sonhado,

Que a minha alma de poeta

Não se vê a imagem presente

Foi a visão do passado.

 

Foi, sim, mas visão apenas;

Daquelas visões amenas

Que à mente dos infelizes

Descem vivas e animadas,

Cheias de luz e esperança

E de celestes matizes:

Mas, apenas dissipadas,

Fica uma leve lembrança,

Não ficam outras raízes.

 

Inda assim, embora sonho,

Mas, sonho doce e risonho,

Desse-me Deus que fingida

Tivesse aquela ventura

Noite por noite, hora a hora,

No que me resta de vida,

Que, já livre da amargura,

Alma, que em dores me chora,

Chorara de agradecida!

 

 

QUINZE ANOS

 

Oh! la fleur de l'Eden, pourquoi l'as-tu fannée,

Insouciant enfant, belle Eve aux blonds cheveux!

 

ALFRED DE MUSSET

 

 

Era uma pobre criança...

— Pobre criança, se o eras! —

Entre as quinze primaveras

De sua vida cansada

Nem uma flor de esperança

Abria a medo. Eram rosas

Que a doida da esperdiçada

Tão festivas, tão formosas,

Desfolhava pelo chão.

— Pobre criança, se o eras! —

Os carinhos mal gozados

Eram por todos comprados,

Que os afetos de sua alma

Havia-os levado à feira,

Onde vendera sem pena

Até a ilusão primeira

Do seu doido coração!

 

Pouco antes, a candura,

Coas brancas asas abertas,

Em um berço de ventura

A criança acalentava

Na santa paz do Senhor;

Para acordá-la era cedo,

E a pobre ainda dormia

Naquele mudo segredo

Que só abre o seio um dia

Para dar entrada a amor.

 

Mas, por teu mal, acordaste!

Junto do berço passou-te

A festiva melodia

Da sedução... e acordou-te!

Colhendo as límpidas asas,

O anjo que te velava

Nas mãos trêmulas e frias

Fechou o rosto... chorava!

 

Tu, na sede dos amores,

Colheste todas as flores

Que nas orlas do caminho

Foste encontrando ao passar;

Por elas, um só espinho

Não te feriu... vais andando...

Corre, criança, até quando

Fores forçada a parar!

 

Então, desflorada a alma

De tanta ilusão, perdida

Aquela primeira calma

Do teu sono de pureza;

Esfolhadas, uma a uma,

Essas rosas de beleza

Que se esvaem como a escuma

Que a vaga cospe na praia

E que por si se desfaz;

 

Então, quando nos teus olhos

Uma lágrima buscares,

E secos, secos de febre,

Uma só não encontrares

Das que em meio das angústias

São um consolo e uma paz;

 

Então, quando o frio 'spectro

Do abandono e da penúria

Vier aos teus sofrimentos

Juntar a última injúria:

E que não vires ao lado

Um rosto, um olhar amigo

Daqueles que são agora

Os desvelados contigo;

 

Criança, verás o engano

E o erro dos sonhos teus;

E dirás, — então já tarde, —

Que por tais gozos não vale

Deixar os braços de Deus.

 

 

STELLA

 

Já raro e mais escasso

A noite arrasta o manto,

E verte o último pranto

Por todo o vasto espaço.

 

Tíbio clarão já cora

A tela do horizonte,

E já de sobre o monte

Vem debruçar-se a aurora.

 

À muda e torva irmã,

Dormida de cansaço,

Lá vem tomar o espaço

A virgem da manhã.

 

Uma por uma, vão

As pálidas estrelas,

E vão, e vão com elas

Teus sonhos, coração.

 

Mas tu, que o devaneio

Inspiras do poeta,

Não vês que a vaga inquieta

Abre-te o úmido seio?

 

Vai. Radioso e ardente,

Em breve o astro do dia,

Rompendo a névoa fria,

Virá do roxo oriente.

 

Dos íntimos sonhares

Que a noite protegera,

De tanto que eu vertera,

Em lágrimas a pares,

 

Do amor silencioso,

Místico, doce, puro,

Dos sonhos de futuro,

Da paz, do etéreo gozo,

 

De tudo nos desperta

Luz de importuno dia;

Do amor que tanto a enchia

Minha alma está deserta.

 

A virgem da manhã

Já todo o céu domina...

Espero-te, divina,

Espero-te, amanhã.

 

 

EPITÁFIO DO MÉXICO

 

Dobra o joelho: — é um túmulo.

Embaixo amortalhado

Jaz o cadáver tépido

De um povo aniquilado;

A prece melancólica

Reza-lhe em torno à cruz.

 

Ante o universo atônito

Abriu-se a estranha liça,

Travou-se a luta férvida

Da força e da justiça;

Contra a justiça, ó século,

Venceu a espada e o obus.

 

Venceu a força indômita;

Mas a infeliz vencida

A mágoa, a dor, o ódio,

Na face envilecida

Cuspiu-lhe. E a eterna mácula

Seus louros murchará.

 

E quando a voz fatídica

Da santa liberdade

Vier em dias prósperos

Clamar à humanidade,

Então revivo o México

Da campa surgirá.

 

 

POLÔNIA

 

E ao terceiro dia a alma deve voltar ao

corpo, e a nação ressuscitará.

 

MICKIEWICZ

 

Como aurora de um dia desejado,

Clarão suave o horizonte inunda.

É talvez a manhã. A noite amarga

Como que chega ao termo; e o sol dos livres,

Cansado de te ouvir o inútil pranto,

Alfim ressurge no dourado Oriente.

 

Eras livre, — tão livre como as águas

Do teu formoso, celebrado rio;

A coroa dos tempos

Cingia-te a cabeça veneranda;

E a desvelada mãe, a irmã cuidosa,

A santa liberdade,

Como junto de um berço precioso,

À porta dos teus lares vigiava.

 

Eras feliz demais, demais formosa;

A sanhuda cobiça dos tiranos

Veio enlutar teus venturosos dias...

Infeliz! a medrosa liberdade

Em face dos canhões espavorida

Aos reis abandonou teu chão sagrado;

Sobre ti, moribunda,

Viste cair os duros opressores:

Tal a gazela que percorre os campos,

Se o caçador a fere,

Cai convulsa de dor em mortais ânsias,

E vê no extremo arranco

Abater-se sobre ela

Escura nuvem de famintos corvos.

Presa uma vez da ira dos tiranos,

Os membros retalhou-te

Dos senhores a esplêndida cobiça;

Em proveito dos reis a terra livre

Foi repartida, e os filhos teus — escravos —

Viram descer um véu de luto à pátria

E apagar-se na história a glória tua.

 

A glória, não! — É glória o cativeiro,

Quando a cativa, como tu, não perde

A aliança de Deus, a fé que alenta,

E essa união universal e muda

Que faz comuns a dor, o ódio, a esperança.

Um dia, quando o cálice da amargura,

Mártir, até às fezes esgotaste,

Longo tremor correu as fibras tuas;

Em teu ventre de mãe, a liberdade

Parecia soltar esse vagido

Que faz rever o céu no olhar materno;

Teu coração estremeceu; teus lábios

Trêmulos de ansiedade e de esperança,

Buscaram aspirar a longos tragos

A vida nova nas celestes auras.

Então surgiu Kosciusko;

Pela mão do Senhor vinha tocado;

A fé no coração, a espada em punho,

E na ponta da espada a torva morte,

Chamou aos campos a nação caída.

De novo entre o direito e a força bruta

Empenhou-se o duelo atroz e infausto

Que a triste humanidade

Inda verá por séculos futuros.

Foi longa a luta; os filhos dessa terra

Ah! não pouparam nem valor nem sangue!

A mãe via partir sem pranto os filhos,

A irmã o irmão, a esposa o esposo,

E todas abençoavam

A heróica legião que ia à conquista

Do grande livramento.

 

Coube às hostes da força

Da pugna o alto prêmio;

A opressão jubilosa

Cantou essa vitória de ignomínia;

E de novo, ó cativa, o véu de luto

Correu sobre teu rosto!

Deus continha

Em suas mãos o sol da liberdade,

E inda não quis que nesse dia infausto

Teu macerado corpo alumiasse.

Resignada à dor e ao infortúnio,

A mesma fé, o mesmo amor ardente

Davam-te a antiga força.

Triste viúva, o templo abriu-te as portas;

Foi a hora dos hinos e das preces;

Cantaste a Deus, tua alma consolada

Nas asas da oração aos céus subia,

Como a refugiar-se e a refazer-se

No seio do infinito.

E quando a força do feroz cossaco

À casa do Senhor ia buscar-te,

Era ainda rezando

Que te arrastavas pelo chão da igreja.

Pobre nação! — é longo o teu martírio;

A tua dor pede vingança e termo;

Muito hás vertido em lágrimas e sangue;

É propícia esta hora. O sol dos livres

Como que surge no dourado Oriente.

Não ama a liberdade

Quem não chora contigo as dores tuas;

E não pede, e não ama, e não deseja

Tua ressurreição, finada heróica!

 

 

 

ERRO

 

Erro é teu. Amei-te um dia

Com esse amor passageiro

Que nasce na fantasia

E não chega ao coração;

Não foi amor, foi apenas

Uma ligeira impressão;

Um querer indiferente,

Em tua presença, vivo,

Morto, se estavas ausente,

E se ora me vês esquivo,

Se, como outrora, não vês

Meus incensos de poeta

Ir eu queimar a teus pés,

É que, — como obra de um dia,

Passou-me essa fantasia.

 

Para eu amar-te devias

Outra ser e não como eras.

Tuas frívolas quimeras,

Teu vão amor de ti mesma,

Essa pêndula gelada

Que chamavas coração,

Eram bem fracos liames

Para que a alma enamorada

Me conseguissem prender;

Foram baldados tentames,

Saiu contra ti o azar,

E embora pouca, perdeste

A glória de me arrastar

Ao teu carro... Vãs quimeras!

Para eu amar-te devias

Outra ser e não como eras...

 

 

 

ELEGIA

 

A bondade choremos inocente

Cortada em flor que, pela mão da morte,

Nos foi arrebatada dentre a gente.

 

CAMÕES — Elegias

 

Se, como outrora, nas florestas virgens,

Nos fosse dado — o esquife que te encerra

Erguer a um galho de árvore frondosa

Certo não tinhas um melhor jazigo

Do que ali, ao ar livre, entre os perfumes

Da florente estação, imagem viva

De teus cortados dias, e mais perto

Do clarão das estrelas.

 

Sobre teus pobres e adorados restos,

Piedosa, a noite ali derramaria

De seus negros cabelos puro orvalho

À beira do teu último jazigo

Os alados cantores da floresta

Iriam sempre modular seus cantos;

Nem letra, nem lavor de emblema humano,

Relembraria a mocidade morta;

Bastava só que ao coração materno,

Ao do esposo, ao dos teus, ao dos amigos,

Um aperto, uma dor, um pranto oculto,

Dissesse: — Dorme aqui, perto dos anjos,

A cinza de quem foi gentil transunto

De virtudes e graças.

 

Mal havia transposto da existência

Os dourados umbrais; a vida agora

Sorria-lhe toucada dessas flores

Que o amor, que o talento e a mocidade

À uma repartiam.

 

Tudo lhe era presságio alegre e doce;

Uma nuvem sequer não sombreava,

Em sua fronte, o íris da esperança;

Era, enfim, entre os seus a cópia viva

Dessa ventura que os mortais almejam,

E que raro a fortuna, avessa ao homem.

Deixa gozar na terra.

 

Mas eis que o anjo pálido da morte

A pressentiu feliz e bela e pura,

E, abandonando a região do olvido,

Desceu à terra, e sob a asa negra

A fronte lhe escondeu; o frágil corpo

Não pôde resistir; a noite eterna

Veio fechar seus olhos;

Enquanto a alma, abrindo

As asas rutilantes pelo espaço.

Foi engolfar-se em luz, perpetuamente,

Tal a assustada pomba, que na árvore

O ninho fabricou, — se a mão do homem

Ou a impulsão do vento um dia abate

No seio do infinito;

O recatado asilo, — abrindo o vôo,

Deixa os inúteis restos

E, atravessando airosa os leves ares,

Vai buscar noutra parte outra guarida.

 

Hoje, do que era inda lembrança resta,

E que lembrança! Os olhos fatigados

Parecem ver passar a sombra dela;

O atento ouvido inda lhe escuta os passos;

E as teclas do piano, em que seus dedos

Tanta harmonia despertavam antes,

Como que soltam essas doces notas

Que outrora ao seu contato respondiam.

 

Ah! pesava-lhe este ar da terra impura,

Faltava-lhe esse alento de outra esfera,

Onde, noiva dos anjos, a esperavam

As palmas da virtude.

Mas, quando assim a flor da mocidade

Toda se esfolha sobre o chão da morte,

Senhor, em que firmar a segurança

Das venturas da terra? Tudo morre;

À sentença fatal nada se esquiva,

O que é fruto e o que é flor. O homem cego

Cuida haver levantado em chão de bronze

Um edifício resistente aos tempos,

Mas lá vem dia, em que, a um leve sopro,

O castelo se abate,

Onde, doce ilusão, fechado havias

Tudo o que de melhor a alma do homem

Encerra de esperanças.

 

Dorme, dorme tranqüila

Em teu último asilo; e se eu não pude

Ir espargir também algumas flores

Sobre a lájea da tua sepultura;

Se não pude, — eu que há pouco te saudava

Em teu erguer, estrela, — os tristes olhos

Banhar nos melancólicos fulgores,

Na triste luz do teu recente ocaso,

Deixo-te ao menos nesses pobres versos

Um penhor de saudade, e lá na esfera

Aonde aprouve ao Senhor chamar-te cedo,

Possas tu ler nas pálidas estrofes

A tristeza do amigo.

 

1861

 

 

 

SINHÁ

 

O teu nome é como o óleo derramado.

 

CÂNTICO DOS CÂNTICOS

 

Nem o perfume que expira

A flor, pela tarde amena,

Nem a nota que suspira

Canto de saudade e pena

Nas brandas cordas da lira;

Nem o murmúrio da veia

Que abriu sulco pelo chão

Entre margens de alva areia,

Onde se mira e recreia

Rosa fechada em botão;

 

Nem o arrulho enternecido

Das pombas nem do arvoredo

Esse amoroso arruído

Quando escuta algum segredo

Pela brisa repetido;

Nem esta saudade pura

Do canto do sabiá

Escondido na espessura,

Nada respira doçura

Como o teu nome, Sinhá!

 

 

 

HORAS VIVAS

 

Noite; abrem-se as flores...

Que esplendores!

Cíntia sonha amores

Pelo céu.

Tênues as neblinas

Às campinas

Descem das colinas,

Como um véu.

 

Mãos em mãos travadas

Animadas,

Vão aquelas fadas

Pelo ar;

Soltos os cabelos,

Em novelos,

Puros, louros, belos,

A voar.

 

— "Homem, nos teus dias

Que agonias,

Sonhos, utopias,

Ambições;

Vivas e fagueiras,

As primeiras,

Como as derradeiras

Ilusões!

 

— Quantas, quantas vidas

Vão perdidas,

Pombas malferidas

Pelo mal!

Anos após anos,

Tão insanos,

Vêm os desenganos

Afinal.

 

— Dorme: se os pesares

Repousares.

Vês? — por estes ares

Vamos rir;

Mortas, não; festivas,

E lascivas,

Somos — horas vivas

De dormir. —"

 

 

 

VERSOS A CORINA

 

Tacendo il nome di questa gentilíssima

 

DANTE

 

I

 

Tu nasceste de um beijo e de um olhar. O beijo

Numa hora de amor, de ternura e desejo,

Uniu a terra e o céu. O olhar foi do Senhor,

Olhar de vida, olhar de graça, olhar de amor;

Depois, depois vestindo a forma peregrina,

Aos meus olhos mortais, surgiste-me, Corina!

 

De um júbilo divino os cantos entoava

A natureza mãe, e tudo palpitava,

A flor aberta e fresca, a pedra bronca e rude,

De uma vida melhor e nova juventude.

 

Minh'alma adivinhou a origem do teu ser;

Quis cantar e sentir; quis amar e viver

A luz que de ti vinha, ardente, viva, pura,

Palpitou, reviveu a pobre criatura;

Do amor grande elevado abriram-se-lhe as fontes;

Fulgiram novos sóis, rasgaram-se horizontes;

Surgiu, abrindo em flor, uma nova região;

Era o dia marcado à minha redenção.

Era assim que eu sonhava a mulher. Era assim:

Corpo de fascinar, alma de querubim;

Era assim: fronte altiva e gesto soberano,

Um porte de rainha a um tempo meigo e ufano,

Em olhos senhoris uma luz tão serena,

E grave como Juno, e belo como Helena!

Era assim, a mulher que extasia e domina,

A mulher que reúne a terra e o céu: Corina!

 

Neste fundo sentir, nesta fascinação,

Que pede do poeta o amante coração?

Viver como nasceste, ó beleza, ó primor,

De uma fusão do ser, de uma efusão do amor.

 

Viver, — fundir a existência

Em um ósculo de amor,

Fazer de ambas — uma essência,

Apagar outras lembranças,

Perder outras ilusões,

E ter por sonho melhor

O sonho das esperanças

De que a única ventura

Não reside em outra vida,

Não vem de outra criatura;

Confundir olhos nos olhos,

Unir um seio a outro seio,

Derramar as mesmas lágrimas

E tremer do mesmo enleio,

Ter o mesmo coração,

Viver um do outro viver...

Tal era a minha ambição.

Donde viria a ventura

Desta vida? Em que jardim

Colheria esta flor pura?

Em que solitária fonte

Esta água iria beber'?

Em que incendido horizonte

Podiam meus olhos ver

Tão meiga, tão viva estrela,

Abrir-se e resplandecer?

Só em ti: — em ti que és bela,

Em ti que a paixão respiras,

Em ti cujo olhar se embebe

Na ilusão de que deliras,

Em ti, que um ósculo de Hebe

Teve a singular virtude

De encher, de animar teus dias,

De vida e de juventude...

 

Amemos! diz a flor à brisa peregrina,

Amemos! diz a brisa, arfando em torno à flor;

Cantemos esta lei e vivamos, Corina,

De uma fusão do ser, de uma efusão do amor.

 

II

 

A minha alma, talvez, não é tão pura,

Como era pura nos primeiros dias;

Eu sei; tive choradas agonias

De que conservo alguma nódoa escura,

 

Talvez. Apenas à manhã da vida

Abri meus olhos virgens e minha alma.

Nunca mais respirei a paz e a calma,

E me perdi na porfiosa lida.

 

Não sei que fogo interno me impelia

À conquista da luz, do amor, do gozo,

Não sei que movimento imperioso

De um desusado ardor minha alma enchia.

 

Corri de campo em campo e plaga em plaga,

(Tanta ansiedade o coração encerra!)

A ver o lírio que brotasse a terra,

A ver a escuma que cuspisse — a vaga.

 

Mas, no areal da praia, no horto agreste,

Tudo aos meus olhos ávidos fugia...

Desci ao chão do vale que se abria,

Subi ao cume da montanha alpestre.

 

Nada! Volvi o olhar ao céu. Perdi-me

Em meus sonhos de moço e de poeta;

E contemplei, nesta ambição inquieta,

Da muda noite a página sublime.

 

                

Tomei nas mãos a cítara saudosa

E soltei entre lágrimas um canto.

A terra brava recebeu meu pranto

E o eco repetiu-me a voz chorosa.

 

Foi em vão. Como um lânguido suspiro,

A voz se me calou, e do ínvio monte

Olhei ainda as linhas do horizonte,

Como se olhasse o último retiro.

 

Nuvem negra e veloz corria solta,

O anjo da tempestade anunciando;

Vi ao longe as alcíones cantando

Doidas correndo à flor da água revolta.

 

Desiludido, exausto, ermo, perdido,

Busquei a triste estância do abandono,

E esperei, aguardando o último sono,

Volver à terra, de que foi nascido.

 

— “Ó Cibele fecunda, é no remanso

Do teu seio que vive a criatura.

Chamem-te outros morada triste e escura,

Chamo-te glória, chamo-te descanso!”

 

Assim falei. E murmurando aos ventos

Uma blasfêmia atroz — estreito abraço

Homem e terra uniu, e em longo espaço

Aos ecos repeti meus vãos lamentos.

 

Mas, tu passaste... Houve um grito

Dentro de mim. Aos meus olhos

Visão de amor infinito,

Visão de perpétuo gozo

Perpassava e me atraía,

Como um sonho voluptuoso

De sequiosa fantasia.

Ergui-me logo do chão,

E pousei meus olhos fundos

Em teus olhos soberanos,

Ardentes, vivos, profundos,

Como os olhos da beleza

Que das escumas nasceu...

Eras tu, maga visão,

Eras tu o ideal sonhado

Que em toda a parte busquei,

E por quem houvera dado

A vida que fatiguei;

Por quem verti tanto pranto,

Por quem nos longos espinhos

Minhas mãos, meus pés sangrei!

 

Mas se minh'alma, acaso, é menos pura

Do que era pura nos primeiros dias,

Por que não soube em tantas agonias

Abençoar a minha desventura;

 

Se a blasfêmia os meus lábios poluíra,

Quando, depois de tempo e do cansaço,

Beijei a terra no mortal abraço

E espedacei desanimado a lira;

 

Podes, visão formosa e peregrina,

No amor profundo, na existência calma,

Desse passado resgatar minh'alma

E levantar-me aos olhos teus, — Corina!

 

III

 

Quando voarem minhas esperanças

Como um bando de pombas fugitivas;

E destas ilusões doces e vivas

Só me restarem pálidas lembranças;

 

E abandonar-me a minha mãe Quimera,

Que me aleitou aos seios abundantes;

E vierem as nuvens flamejantes

Encher o céu da minha primavera;

 

E raiar para mim um triste dia,

Em que, por completar minha tristeza,

Nem possa ver-te, musa da beleza,

Nem possa ouvir-te, musa da harmonia;

 

Quando assim seja, por teus olhos juro,

Voto minh'alma à escura soledade,

Sem procurar melhor felicidade,

E sem ambicionar prazer mais puro,

 

Como o viajor que, da falaz miragem

Volta desenganado ao lar tranqüilo

E procura, naquele último asilo,

Nem evocar memórias da viagem,

 

Envolvido em mim mesmo, olhos cerrados

A tudo mais, — a minha fantasia

As asas colherá com que algum dia

Quis alcançar os cimos elevados.

 

És tu a maior glória de minha alma,

Se o meu amor profundo não te alcança,

De que me servirá outra esperança?

Que glória tirarei de alheia palma? *

 

IV

 

Tu que és bela e feliz, tu que tens por diadema

A dupla irradiação da beleza e do amor;

E sabes reunir, como o melhor poema,

Um desejo da terra e um toque do Senhor;

 

Tu que, como a ilusão, entre névoas deslizas

Aos versos do poeta um desvelado olhar,

Corina, ouve a canção das amorosas brisas,

Do poeta e da luz, das selvas e do mar.

 

AS BRISAS

 

Deu-nos a harpa eólia a excelsa melodia

Que a folhagem desperta e torna alegre a flor,

Mas que vale esta voz, ó musa da harmonia,

Ao pé da tua voz, filha da harpa do amor?

 

Diz-nos tu como houveste as notas do teu canto?

Que alma de serafim volteia aos lábios teus?

Donde houveste o segredo e o poderoso encanto

Que abre a ouvidos mortais a harmonia dos céus?

 

A LUZ

 

Eu sou a luz fecunda, alma da natureza;

Sou o vivo alimento à viva criação.

Deus lançou-me no espaço. A minha realeza

Vai até onde vai meu vívido clarão.

 

Mas, se derramo vida a Cibele fecunda,

Que sou eu ante a luz dos teus olhos? Melhor,

A tua é mais do céu, mais doce, mais profunda,

Se a vida vem de mim, tu dás a vida e o amor.

 

AS ÁGUAS

 

Do lume da beleza o berço celebrado

Foi o mar; Vênus bela entre espumas nasceu.

Veio a idade de ferro, e o nume venerado

Do venerado altar baqueou: — pereceu.

 

Mas a beleza és tu. Como Vênus marinha,

Tens a inefável graça e o inefável ardor.

Se paras, és um nume; andas, uma rainha.

E se quebras um olhar, és tudo isso e és amor.

 

Chamam-te as águas, vem! tu irás sobre a vaga.

A vaga, a tua mãe que te abre os seios nus,

Buscar adorações de uma plaga a outra plaga.

E das regiões da névoa às regiões da luz!

 

AS SELVAS

 

Um silêncio de morte entrou no seio às selvas.

Já não pisa Diana este sagrado chão;

Nem já vem repousar no leito destas relvas

Aguardando saudosa o amor e Endimião.

 

Da grande caçadora a um solicito aceno

Já não vem, não acode o grupo jovial;

Nem o eco repete a flauta de Sileno,

Após o grande ruído a mudez sepulcral.

 

Mas Diana aparece. A floresta palpita,

Uma seiva melhor circula mais veloz;

É vida que renasce, é vida que se agita;

À luz do teu olhar, ao som da tua voz!

 

O  POETA

 

Também eu, sonhador, que vi correr meus dias

Na solene mudez da grande solidão,

E soltei, enterrando as minhas utopias,

O último suspiro e a última oração;

 

Também eu junto à voz da natureza,

E soltando o meu hino ardente e triunfal,

Beijarei ajoelhado as plantas da beleza,

E banharei minh'alma em tua luz, — Ideal!

 

Ouviste a natureza? Às súplicas e às mágoas

Tua alma de mulher deve de palpitar;

Mas que te não seduza o cântico das águas,

Não procures, Corina, o caminho do mar!

 

V

 

Guarda estes versos que escrevi chorando

Como um alívio à minha soledade,

Como um dever do meu amor; e quando

Houver em ti um eco de saudade,

Beija estes versos que escrevi chorando.

 

Único em meio das paixões vulgares,

Fui a teus pés queimar minh'alma ansiosa,

Como se queima o óleo ante os altares;

Tive a paixão indômita e fogosa,

Única em meio das paixões vulgares.

 

Cheio de amor, vazio de esperança,

Dei para ti os meus primeiros passos;

Minha ilusão fez-me, talvez, criança;

E eu pretendi dormir aos teus abraços,

Cheio de amor, vazio de esperança.

 

Refugiado à sombra do mistério

Pude cantar meu hino doloroso;

E o mundo ouviu o som doce ou funéreo

Sem conhecer o coração ansioso

Refugiado à sombra do mistério.

 

Mas eu que posso contra a sorte esquiva?

Vejo que em teus olhares de princesa

Transluz uma alma ardente e compassiva

Capaz de reanimar minha incerteza;

Mas eu que posso contra a sorte esquiva?

 

Como um réu indefeso e abandonado,

Fatalidade, curvo-me ao teu gesto;

E se a perseguição me tem cansado,

Embora, escutarei o teu aresto,

Como um réu indefeso e abandonado.

 

Embora fujas aos meus olhos tristes,

Minh'alma irá saudosa, enamorada,

Acercar-se de ti lá onde existes;

Ouvirás minha lira apaixonada,

Embora fujas aos meus olhos tristes.

 

Talvez um dia meu amor se extinga,

Como fogo de Vesta mal cuidado,

Que sem o zelo da Vestal não vinga;

Na ausência e no silêncio condenado

Talvez um dia meu amor se extinga.

 

Então não busques reavivar a chama.

Evoca apenas a lembrança casta

Do fundo amor daquele que não ama;

Esta consolação apenas basta;

Então não busques reavivar a chama.

 

Guarda estes versos que escrevi chorando,

Como um alívio à minha soledade,

Como um dever do meu amor; e quando

Houver em ti um eco de saudade,

Beija estes versos que escrevi chorando.

 

VI

 

Em vão! Contrário a amor é nada o esforço humano;

É nada o vasto espaço, é nada o vasto oceano.

Solta do chão abrindo as asas luminosas,

Minh'alma se ergue e voa às regiões venturosas,

Onde ao teu brando olhar, ó formosa Corina,

Reveste a natureza a púrpura divina!

 

Lá, como quando volta a primavera em flor,

Tudo sorri de luz, tudo sorri de amor;

Ao influxo celeste e doce da beleza,

Pulsa, canta, irradia e vive a natureza;

Mais lânguida e mais bela, a tarde pensativa

Desce do monte ao vale; e a viração lasciva

Vai despertar à noite a melodia estranha

Que falam entre si os olmos da montanha;

A flor tem mais perfume e a noite mais poesia;

O mar tem novos sons e mais viva ardentia;

A onda enamorada arfa e beija as areias,

Novo sangue circula, ó terra, em tuas veias!

 

O esplendor da beleza é raio criador:

Derrama a tudo a luz, derrama a tudo o amor.

Mas vê. Se o que te cerca é uma festa de vida,

Eu, tão longe de ti, sinto a dor mal sofrida

Da saudade que punge e do amor que lacera

E palpita e soluça e sangra e desespera.

Sinto em torno de mim a muda natureza

Respirando, como eu, a saudade e a tristeza;

É deste ermo que eu vou, alma desventurada,

Murmurar junto a ti a estrofe imaculada

Do amor que não perdeu, coa última esperança,

Nem o intenso fervor, nem a intensa lembrança.

 

Sabes se te eu amei, sabes se te amo ainda,

Do meu sombrio céu alma estrela bem-vinda!

Como divaga a abelha inquieta e sequiosa

Do cálice do lírio ao cálice da rosa,

Divaguei de alma em alma em busca deste amor;

Gota de mel divino, era divina a flor

Que o devia conter. Eras tu.

 

No delírio

De te amar — olvidei as lutas e o martírio;

Eras tu. Eu só quis, numa ventura calma,

Sentir e ver o amor através de uma alma;

De outras belezas vãs não valeu o esplendor,

A beleza eras tu: — tinhas a alma e o amor.

Pelicano do amor, dilacerei meu peito,

E com meu próprio sangue os filhos meus aleito;

Meus filhos: o desejo, a quimera, a esperança;

Por eles reparti minh'alma. Na provança

Ele não fraqueou, antes surgiu mais forte;

É que eu pus neste amor, neste último transporte,

Tudo o que vivifica a minha juventude:

O culto da verdade e o culto da virtude,

A vênia do passado e a ambição do futuro,

O que há de grande e belo, o que há de nobre e puro.

 

Deste profundo amor, doce e amada Corina,

Acorda-te a lembrança um eco de aflição?

Minh'alma pena e chora à dor que a desatina:

Sente tua alma acaso a mesma comoção?

 

Em vão! Contrário a amor é nada o esforço humano,

É nada o vasto espaço, é nada o vasto oceano!

 

Vou, sequioso espírito,

Cobrando novo alento,

N'asa veloz do vento

Correr de mar em mar;

Posso, fugindo ao cárcere,

Que à terra me tem preso,

Em novo ardor aceso,

Voar, voar, voar!

 

Então, se à hora lânguida

Da tarde que declina,

Do arbusto da colina

Beijando a folha e a flor,

A brisa melancólica

Levar-te entre perfumes

Uns tímidos queixumes

Ecos de mágoa e dor;

 

Então, se o arroio tímido

Que passa e que murmura

À sombra da espessura

Dos verdes salgueirais,

Mandar-te entre os murmúrios

Que solta nos seus giros,

Uns como que suspiros

De amor, uns ternos ais;

 

Então, se no silêncio

Da noite adormecida,

Sentires — mal dormida —

Em sonho ou em visão,

Um beijo em tuas pálpebras,

Um nome aos teus ouvidos,

E ao som de uns ais partidos

Pulsar teu coração;

 

Da mágoa que consome

O meu amor venceu;

Não tremas: — é teu nome,

Não fujas — que sou eu!

 

 

 

ÚLTIMA FOLHA

 

Musa, desce do alto da montanha

Onde aspiraste o aroma da poesia,

E deixa ao eco dos sagrados ermos

A última harmonia.

 

Dos teus cabelos de ouro, que beijavam

Na amena tarde as virações perdidas,

Deixa cair ao chão as alvas rosas

E as alvas margaridas.

 

Vês? Não é noite, não, este ar sombrio

Que nos esconde o céu. Inda no poente

Não quebra os raios pálidos e frios

O sol resplandecente.

 

Vês? Lá ao fundo o vale árido e seco

Abre-se, como um leito mortuário;

Espera-te o silêncio da planície,

Como um frio sudário.

 

Desce. Virá um dia em que mais bela,

Mais alegre, mais cheia de harmonias,

Voltes a procurar a voz cadente

Dos teus primeiros dias.

 

Então coroarás a ingênua fronte

Das flores da manhã, — e ao monte agreste,

Como a noiva fantástica dos ermos,

Irás, musa celeste!

 

Então, nas horas solenes

Em que o místico himeneu

Une em abraço divino

Verde a terra, azul o céu;

 

Quando, já finda a tormenta

Que a natureza enlutou,

Bafeja a brisa suave

Cedros que o vento abalou;

 

E o rio, a árvore e o campo,

A areia, a face do mar,

Parecem, como um concerto,

Palpitar, sorrir, orar;

 

Então sim, alma de poeta,

Nos teus sonhos cantarás

A glória da natureza

A ventura, o amor e a paz!

 

Ah! mas então será mais alto ainda;

Lá onde a alma do vate

Possa escutar os anjos,

E onde não chegue o vão rumor dos homens;

 

Lá onde, abrindo as asas ambiciosas,

Possa adejar no espaço luminoso,

Viver de luz mais viva e de ar mais puro,

Fartar-se do infinito!

 

Musa, desce do alto da montanha

Onde aspiraste o aroma da poesia,

E deixa ao eco dos sagrados ermos

A última harmonia.

 

 

LÚCIA

 

1860

 

(Alfred de Musset)

 

Nós estávamos sós; era de noite;

Ela curvara a fronte, e a mão formosa,

Na embriaguez da cisma,

Tênue deixava errar sobre o teclado;

Era um murmúrio; parecia a nota

De aura longínqua a resvalar nas balças

E temendo acordar a ave no bosque;

Em torno respiravam as boninas

Das noites belas as volúpias mornas;

Do parque os castanheiros e os carvalhos

Brando embalavam orvalhados ramos;

Ouvíamos a noite; entrefechada,

A rasgada janela

Deixava entrar da primavera os bálsamos;

A várzea estava erma e o vento mudo;

Na embriaguez da cisma a sós estávamos

E tínhamos quinze anos!

 

Lúcia era loira e pálida;

Nunca o mais puro azul de um céu profundo

Em olhos mais suaves refletiu-se.

Eu me perdia na beleza dela,

E aquele amor com que eu a amava — e tanto! —

Era assim de um irmão o afeto casto,

Tanto pudor nessa criatura havia!

 

Nem um som despertava em nossos lábios;

Ela deixou as suas mãos nas minhas;

Tíbia sombra dormia-lhe na fronte,

E a cada movimento — na minh’alma

Eu sentia, meu Deus, como fascinam

Os dous signos de paz e de ventura:

Mocidade da fronte

E primavera d’alma.

A lua levantada em céu sem nuvens

Com uma onda de luz veio inundá-la;

Ela viu sua imagem nos meus olhos,

Um riso de anjo desfolhou nos lábios

E murmurou um canto.

 

........................................

 

Filha da dor, ó lânguida harmonia!

Língua que o gênio para amor criara —

E que, herdara do céu, nos deu a Itália!

Língua do coração — onde alva idéia,

— Virgem medrosa da mais leve sombra, —

Passa envolta num véu e oculta aos olhos!

Que ouvirá, que dirá nos teus suspiros

Nascidos do ar, que ele respira — o infante?

Vê-se um olhar, uma lágrima na face,

O resto é um mistério ignoto às turbas,

Como o do mar, da noite e das florestas!

 

Estávamos a sós e pensativos.

Eu contemplava-a. Da canção saudosa

Como que em nós estremecia um eco.

Ela curvou a lânguida cabeça...

Pobre criança! — no teu seio acaso

Desdêmona gemia? Tu choravas,

E em tua boca consentias triste

Que eu depusesse estremecido beijo;

Guardou-a a tua dor ciosa e muda:

Assim, beijei-te descorada e fria,

Assim, depois tu resvalaste à campa;

Foi, com a vida, tua morte um riso,

E a Deus voltaste no calor do berço.

 

Doces mistérios do singelo teto

Onde a inocência habita;

Cantos, sonhos d’amor, gozos de infante,

E tu, fascinação doce e invencível,

Que à porta já de Margarida, — o Fausto

Fez hesitar ainda,

Candura santa dos primeiros anos

Onde parais agora?

            Paz à tua alma, pálida menina!

Ermo de vida, o piano em que tocavas

Já não acordará sob os teus dedos!

 

 

 

O DILÚVIO[i]

 

1863

 

E caiu a chuva sobre a terra quarenta

dias e quarenta noites.

 

GÊNESIS — cap.7, vers. 12

 

Do sol ao raio esplêndido,

Fecundo, abençoado,

A terra exausta e úmida

Surge, revive já;

Que a morte inteira e rápida

Dos filhos do pecado

Pôs termo à imensa cólera

Do imenso Jeová!

 

Que mar não foi! que túmidas

As águas não rolavam!

Montanhas e planícies

Tudo tornou-se um mar;

E nesta cena lúgubre

Os gritos que soavam

Era um clamor uníssono

Que a terra ia acabar.

 

Em vão, ó pai atônito,

Ao seio o filho estreitas;

Filhos, esposos, míseros,

Em vão tentais fugir!

Que as águas do dilúvio

Crescidas e refeitas,

Vão da planície aos píncaros

Subir, subir, subir!

 

Só, como a idéia única

De um mundo que se acaba,

Erma, boiava intrépida,

A arca de Noé;

Pura das velhas nódoas

De tudo o que desaba,

Leva no seio incólumes

A virgindade e a fé.

 

Lá vai! Que um vento alígero,

Entre os contrários ventos,

Ao lenho calmo e impávido

Abre caminho além...

Lá vai ! Em torno angústias,

Clamores e lamentos;

Dentro a esperança, os cânticos,

A calma, a paz e o bem.

 

Cheio de amor, solícito,

O olhar da divindade,

Vela os escapos náufragos

Da imensa aluvião.

Assim, por sobre o túmulo

Da extinta humanidade

Salva-se um berço; o vínculo

Da nova criação.

 

Íris, da paz o núncio,

O núncio do concerto,

Riso do Eterno em júbilo,

Nuvens do céu rasgou;

E a pomba, a pomba mística,

Voltando ao lenho aberto,

Do arbusto da planície

Um ramo despencou.

 

Ao sol e às brisas tépidas

Respira a terra um hausto,

Viçam de novo as árvores,

Brota de novo a flor;

E ao som de nossos cânticos,

Ao fumo do holocausto

Desaparece a cólera

Do rosto do Senhor.

 

 

 

 

1863

 

Mueveme enfin tu amor de tal manera

Que aunque no hubiera cielo yo te amara

 

SANTA TERESA DE JESUS

 

As orações dos homens

Subam eternamente aos teus ouvidos;

Eternamente aos teus ouvidos soem

Os cânticos da terra.

 

No turvo mar da vida

Onde os parcéis do crime a alma naufraga,

A derradeira bússola nos seja,

Senhor, tua palavra.

 

A melhor segurança

Da nossa íntima paz, Senhor, é esta;

Esta a luz que há de abrir à estância eterna

O fúlgido caminho.

 

Ah! feliz o que pode,

No extremo adeus às cousas deste mundo,

Quando a alma, despida de vaidade,

Vê quanto vale a terra;

 

Quando das glórias frias

Que o tempo dá e o mesmo tempo some,

Despida já, — os olhos moribundos

Volta às eternas glórias;

 

Feliz o que nos lábios,

No coração, na mente põe teu nome,

E só por ele cuida entrar cantando

No seio do infinito.

 

 

 

A CARIDADE

 

1861

 

Ela tinha no rosto uma expressão tão calma

Como o sono inocente e primeiro de uma alma

Donde não se afastou ainda o olhar de Deus;

Uma serena graça, uma graça dos céus,

Era-lhe o casto, o brando, o delicado andar,

E nas asas da brisa iam-lhe a ondear

Sobre o gracioso colo as delicadas tranças.

 

Levava pelas mãos duas gentis crianças.

 

Ia caminho. A um lado ouve magoado pranto.

Parou. E na ansiedade ainda o mesmo encanto

Descia-lhe às feições. Procurou. Na calçada

À chuva, ao ar, ao sol, despida, abandonada

A infância lacrimosa, a infância desvalida,

Pedia leito e pão, amparo, amor, guarida.

 

E tu, ó caridade, ó virgem do Senhor,

No amoroso seio as crianças tomaste,

E entre beijos — só teus — o pranto lhes secaste

Dando-lhes pão, guarida, amparo, leito e amor.

 

 

 

A JOVEM CATIVA[ii]

 

1861

 

(André Chenier)

 

— “Respeita a foice a espiga que desponta;

Sem receio ao lagar o tenro pâmpano

Bebe no estio as lágrimas da aurora;

Jovem e bela também sou; turvada

A hora presente de infortúnio e tédio

Seja embora; morrer não quero ainda!

 

De olhos secos o estóico abrace a morte;

Eu choro e espero; ao vendaval que ruge

Curvo e levanto a tímida cabeça.

Se há dias maus, também os há felizes!

Que mel não deixa um travo de desgosto?

Que mar não incha a um temporal desfeito?

 

Tu, fecunda ilusão, vives comigo.

Pesa em vão sobre mim cárcere escuro,

Eu tenho, eu tenho as asas da esperança:

Escapa da prisão do algoz humano,

Nas campinas do céu, mais venturosa,

Mais viva canta e rompe a filomela.

 

Deve acaso morrer? Tranqüila durmo,

Tranqüila velo; e a fera do remorso

Não me perturba na vigília ou sono;

Terno afago me ri nos olhos todos

Quando apareço, e as frontes abatidas

Quase reanima um desusado júbilo.

 

Desta bela jornada é longe o termo.

Mal começo; e dos olmos do caminho

Passei apenas os primeiros olmos.

No festim em começo da existência

Um só instante os lábios meus tocaram

A taça em minhas mãos ainda cheia.

 

Na primavera estou, quero a colheita

Ver ainda, e bem como o rei dos astros,

De sazão em sazão findar meu ano.

Viçosa sobre a haste, honra das flores,

Hei visto apenas da manhã serena

Romper a luz, — quero acabar meu dia.

 

Morte, tu podes esperar; afasta-te!

Vai consolar os que a vergonha, o medo,

O desespero pálido devora.

Pales inda me guarda um verde abrigo,

Ósculos o amor, as musas harmonias;

Afasta-te, morrer não quero ainda!”—

 

Assim, triste e cativa, a minha lira

Despertou escutando a voz magoada

De uma jovem cativa; e sacudindo

O peso de meus dias langorosos,

Acomodei à branda lei do verso

Os acentos da linda e ingênua boca.

 

Sócios meus de meu cárcere, estes cantos

Farão a quem os ler buscar solícito

Quem a cativa foi; ria-lhe a graça

Na ingênua fronte, nas palavras meigas;

De um termo à vinda há de tremer, como ela,

Quem aos seus dias for casar seus dias.

 

 

 

NO LIMIAR

 

1863

 

Caía a tarde. Do infeliz à porta,

Onde mofino arbusto aparecia,

De tronco seco e de folhagem morta,

 

Ele que entrava e Ela que saía

Um instante pararam; um instante

Ela escutou o que Ele lhe dizia;

 

— “Que fizeste? Teu gesto insinuante

Que lhe ensinou? Que fé lhe entrou no peito

Ao mago som da tua voz amante?

 

“Quando lhe ia o temporal desfeito

De que raio de sol o mantiveste?

E de que flores lhe forraste o leito?”

 

Ela, volvendo o olhar brando e celeste,

Disse: “— Varre-lhe a alma desolada,

Que nem um ramo, uma só flor lhe reste!

 

“Torna-lhe, em vez da paz abençoada,

Uma vida de dor e de miséria,

Uma morte contínua e angustiada.

 

“Essa é a tua missão torva e funérea.

Eu procurei no lar do infortunado

Dos meus olhos verter-lhe a luz etérea.

 

“Busquei fazer-lhe um leito semeado

De rosas festivais, onde tivesse

Um sono sem tortura nem cuidado.

 

“E por que o céu que mais se lhe enegrece,

Tivesse algum reflexo de ventura

Onde o cansado olhar espairecesse,

 

“Uma réstia de luz suave e pura

Fiz-lhe descer à erma fantasia,

De mel ungi-lhe o cálix da amargura.

 

“Foi tudo vão, — Foi tudo vã porfia,

A aventura não veio. A tua hora

Chega na hora que termina o dia.

 

“Entra”. — E o virgíneo rosto que descora

Nas mãos esconde. Nuvens que correram

Cobrem o céu que o sol já mal colora.

 

Ambos, com um olhar se compreenderam.

Um penetrou no lar com passo ufano;

Outra tomou por um desvio. Eram:

Ela a Esperança, Ele o Desengano.

 

 

 

ASPIRAÇÃO

 

1862

 

A F. X. DE NOVAIS

 

Qu’aperçois-tu, mon âme? Au fond, n’est-ce-pas Dieu?

Tu vais à lui...

 

V. DE LAPRADE

 

Sinto que há na minh’alma um vácuo imenso e fundo,

E desta meia morte o frio olhar do mundo

Não vê o que há de triste e de real em mim;

Muita vez, ó poeta, a dor é casta assim;

Refolha-se, não diz no rosto o que ela é,

E nem que o revelasse, o vulgo não põe fé

Nas tristes comoções da verde mocidade,

E responde sorrindo à cruel realidade.

 

Não assim tu, ó alma, ó coração amigo;

Nu, como a consciência, abro-me aqui contigo;

Tu que corres, como eu, na vereda fatal

Em busca do mesmo alvo e do mesmo ideal.

Deixemos que ela ria, a turba ignara e vã;

Nossas almas a sós, como irmão junto a irmã,

Em santa comunhão, sem cárcere, nem véus,

Conversarão no espaço e mais perto de Deus.

 

Deus quando abre ao poeta as portas desta vida

Não lhe depara o gozo e a glória apetecida;

Traja de luto a folha em que lhe deixa escritas

A suprema saudade e as dores infinitas.

Alma errante e perdida em um fatal desterro,

Neste primeiro e fundo e triste limbo do erro,

Chora a pátria celeste, o foco, o cetro, a luz,

Onde o anjo da morte, ou da vida, o conduz,

No dia festival do grande livramento;

Antes disso, a tristeza, o sombrio tormento,

O torvo azar, e mais, a torva solidão,

Embaciam-lhe n’alma o espelho da ilusão.

 

O poeta chora e vê perderem-se esfolhadas

Da verde primavera as flores tão cuidadas;

Rasga, como Jesus, no caminho das dores,

Os lassos pés; o sangue umedece-lhe as flores

Mortas ali, — e a fé, a fé mãe, a fé santa,

Ao vento impuro e mau que as ilusões quebranta,

Na alma que ali se vai muitas vezes vacila...

 

Oh! feliz o que pode, alma alegre e tranqüila,

A esperança vivaz e as ilusões floridas,

Atravessar cantando as longas avenidas

Que levam do presente ao secreto porvir!

Feliz esse! Esse pode amar, gozar, sentir,

Viver enfim! A vida é o amor, é a paz,

É a doce ilusão e a esperança vivaz;

Não esta do poeta, esta que Deus nos pôs

Nem como inútil fardo, antes como um algoz.

 

O poeta busca sempre o almejado ideal...

Triste e funesto afã! tentativa fatal!

Nesta sede de luz, nesta fome de amor,

O poeta corre à estrela, à brisa, ao mar, à flor;

Quer ver-lhe a luz na luz da estrela peregrina,

Quer–lhe o cheiro aspirar na rosa da campina,

Na brisa o doce alento, a voz na voz do mar,

Ó inútil esforço! Ó ímprobo lutar!

Em vez da luz, do aroma, ou do alento ou da voz,

Acha-se o nada, o torvo, o impassível algoz!

 

Onde te escondes, pois, ideal da ventura?

Em que canto da terra, em que funda espessura

Foste esconder, ó fada, o teu esquivo lar?

Dos homens esquecido, em ermo recatado,

Que voz do coração, que lágrima, que brado

Do sono em que ora estás te virá despertar?

 

A esta sede de amar só Deus conhece a fonte?

Jorra ele ainda além deste fundo horizonte

Que a mente não calcula, e onde se perde o olhar?

Que asas nos deste, ó Deus, para transpor o espaço?

Ao ermo do desterro inda nos prende um laço:

Onde encontrar a mão que o venha desatar?

 

Creio que só em ti há essa luz secreta,

Essa estrela polar dos sonhos do poeta,

Esse alvo, esse termo, esse mago ideal;

Fonte de todo o ser e fonte da verdade,

Nós vamos para ti, e em tua imensidade

É que havemos de ter o repouso final.

 

É triste quando a vida, erma, como esta, passa,

E quando nos impele o sopro da desgraça

Longe de ti, ó Deus, e distante do amor!

Mas guardemos, poeta, a melhor esperança:

Sucederá a glória à salutar provança:

O que a terra não deu, dar-nos-á o Senhor!       

 

 

 

CLEÓPATRA[iii]

Canto de um escravo

 

(Mme. Emile de Girardin)

 

Filha pálida da noite,

Nume feroz de inclemência,

Sem culto nem reverência,

Nem crentes e nem altar,

A cujos pés descarnados...

A teus negros pés, ó morte!

Só enjeitados da sorte

Ousam frios implorar;

 

Toma a tua foice aguda,

A arma dos teus furores;

Venho c’roado de flores

Da vida entregar-te a flor;

É um feliz que te implora

Na madrugada da vida,

Uma cabeça perdida

E perdida por amor.

 

Era rainha e formosa,

Sobre cem povos reinava,

E tinha uma turba escrava

Dos mais poderosos reis.

Eu era apenas um servo,

Mas amava-a tanto, tanto,

Que nem tinha um desencanto

Nos seus desprezos cruéis.

 

Vivia distante dela

Sem falar-lhe nem ouvi-la;

Só me vingava em segui-la

Para a poder contemplar;

Era uma sombra calada

Que oculta força levava,

E no caminho a aguardava

Para saudá-la e passar.

 

Um dia veio ela às fontes

Ver os trabalhos... não pude,

Fraqueou minha virtude,

Caí-lhe tremendo aos pés.

Todo o amor que me devora,

Ó Vênus, o íntimo peito,

Falou naquele respeito,

Falou naquela mudez.

 

Só lhe conquistam amores

O herói, o bravo, o triunfante;

E que coroa radiante

Tinha eu para oferecer?

Disse uma palavra apenas

Que um mundo inteiro continha:

— Sou um escravo, rainha,

Amo-te e quero morrer.

 

E a nova Ísis que o Egito

Adora curvo e humilhado

O pobre servo curvado

Olhou lânguida a sorrir;

Vi Cleópatra, a rainha,

Tremer pálida em meu seio;

Morte, foi-se-me o receio,

Aqui estou, podes ferir.

 

Vem! que as glórias insensatas

Das convulsões mais lascivas,

As fantasias mais vivas,

De mais febre e mais ardor,

Toda a ardente ebriedade

Dos seus reais pensamentos,

Tudo gozei uns momentos

Na minha noite de amor.

 

Pronto estou para a jornada

Da estância escura e escondida;

O sangue, o futuro, a vida

Dou-te, ó morte, e vou morrer;

Uma graça única — peço

Como última esperança:

Não me apagues a lembrança

Do amor que me fez viver.

 

Beleza completa e rara

Deram-lhe os numes amigos;

Escolhe dos teus castigos

O que infundir mais terror,

Mas por ela, só por ela

Seja o meu padecimento

E tenha o intenso tormento

Na intensidade do amor.

 

Deixa alimentar teus corvos

Em minhas carnes rasgadas,

Venham rochas despenhadas

Sobre o meu corpo rolar,

Mas não me tires dos lábios

Aquele nome adorado,

E ao meu olhar encantado

Deixa essa imagem ficar.

 

Posso sofrer os teus golpes

Sem murmurar da sentença;

A minha ventura é imensa

E foi em ti que eu a achei;

Mas não me apagues na fronte

Os sulcos quentes e vivos

Daqueles beijos lascivos

Que já me fizeram rei.

 

 

 

OS ARLEQUINS[iv]

Sátira

 

1864

 

Que deviendra dans l’éternité l’âme d’un

homme qui a fait Polichinelle toute sa vie?

 

MME. DE STAËL

 

Musa, depõe a lira!

Cantos de amor, cantos de glória esquece!

Novo assunto aparece

Que o gênio move e a indignação inspira.

Esta esfera é mais vasta,

E vence a letra nova a letra antiga!

Musa, toma a vergasta,

E os arlequins fustiga!

 

Como aos olhos de Roma,

— Cadáver do que foi, pávido império

De Caio e de Tibério, —

O filho de Agripina ousado assoma;

E a lira sobraçando,

Ante o povo idiota e amedrontado,

Pedia, ameaçando,

O aplauso acostumado;

 

E o povo que beijava

Outrora ao deus Calígula o vestido,

De novo submetido

Ao régio saltimbanco o aplauso dava.

E tu, tu não te abrias,

Ó céu de Roma, à cena degradante!

E tu, tu não caías,

Ó raio chamejante!

 

Tal na história que passa

Neste de luzes século famoso,

O engenho portentoso

Sabe iludir a néscia populaça;

Não busca o mal tecido

Canto de outrora; a moderna insolência

Não encanta o ouvido,

Fascina a consciência!

 

Vede; o aspecto vistoso,

O olhar seguro, altivo e penetrante,

E certo ar arrogante

Que impõe com aparências de assombroso;

Não vacila, não tomba,

Caminha sobre a corda firme e alerta;

Tem consigo a maromba

E a ovação é certa.

 

Tamanha gentileza,

Tal segurança, ostentação tão grande,

A multidão expande

Com ares de legítima grandeza.

O gosto pervertido

Acha o sublime neste abatimento,

E dá-lhe agradecido

O louro e o monumento.

 

Do saber, da virtude,

Logra fazer, em prêmio dos trabalhos,

Um manto de retalhos

Que à consciência universal ilude.

Não cora, não se peja

Do papel, nem da máscara indecente,

E ainda inspira inveja

Esta glória insolente!

 

Não são contrastes novos;

Já vêm de longe; e de remotos dias

Tornam em cinzas frias

O amor da pátria e as ilusões dos povos.

Torpe ambição sem peias

De mocidade em mocidade corre,

E o culto das idéias

Treme, convulsa e morre.

 

Que sonho apetecido

Leva o ânimo vil a tais empresas?

O sonho das baixezas:

Um fumo que se esvai e um vão ruído;

Uma sombra ilusória

Que a turba adora ignorante e rude;

E a esta infausta glória

Imola-se a virtude.

 

A tão estranha liça

Chega a hora por fim do encerramento,

E lá soa o momento

Em que reluz a espada da justiça.

Então, musa da história,

Abres o grande livro, e sem detença

À envilecida glória

Fulminas a sentença.

 

 

 

AS ONDINAS

(Noturno de H. Heine)

 

Beijam as ondas a deserta praia;

Cai do luar a luz serena e pura;

Cavaleiro na areia reclinado

Sonha em hora de amor e de ventura.

 

As ondinas, em nívea gaze envoltas,

Deixam do vasto mar o seio enorme;

Tímidas vão, acercam-se do moço,

Olham-se e entre si murmuram: “Dorme!”

 

Uma — mulher enfim — curiosa palpa

De seu penacho a pluma flutuante,

Outra procura decifrar o mote

Que traz escrito o escudo rutilante.

 

Esta, risonha, olhos de vivo fogo,

Tira-lhe a espada límpida e lustrosa,

E, apoiando-se nela, a contemplá-la

Perde-se toda em êxtase amorosa.

 

Fita-lhe aquela namorados olhos,

E, após girar-lhe em torno embriagada,

Diz: “Que formoso estás, ó flor da guerra,

Quanto te eu dera por te ser amada!”

 

Uma, tomando a mão ao cavaleiro,

Um beijo imprime-lhe; outra, duvidosa,

Audaz por fim, a boca adormecida

Casa num beijo à boca desejosa.

 

Faz-se de sonso o jovem; caladinho

Finge do sono o plácido desmaio,

E deixa-se beijar pelas ondinas

Da branca lua ao doce e brando raio.

 

 

 

MARIA DUPLESSIS[v]

 

(A. Dumas Filho)

 

1859

 

Fiz promessa, dizendo-te que um dia

Eu iria pedir-te o meu perdão;

Era dever ir abraçar primeiro

A minha doce e última afeição.

 

E quando ia apagar tanta saudade

Encontrei já fechada a tua porta;

Soube que uma recente sepultura

Muda fechava a tua fronte morta.

 

Soube que, após um longo sofrimento,

Agravara-se a tua enfermidade;

Viva esperança que eu nutria ainda

Despedaçou cruel fatalidade.

 

Vi, apertado de fatais lembranças,

A escada que eu subira tão contente;

E as paredes, herdeiras do passado,

Que vêm falar dos mortos ao vivente.

 

Subi e abri com lágrimas a porta

Que ambos abrimos a chorar um dia;

E evoquei o fantasma da ventura

Que outrora um céu de rosas nos abria

 

Sentei-me à mesa, onde contigo outrora

Em noites belas de verão ceava;

Desses amores plácidos e amenos

Tudo ao meu triste coração falava.

 

Fui ao teu camarim, e vi-o ainda

Brilhar com o esplendor das mesmas cores;

E pousei meu olhar nas porcelanas

Onde morriam inda algumas flores...

 

Vi aberto o piano em que tocavas;

Tua morte o deixou mudo e vazio,

Como deixa o arbusto sem folhagem,

Passando pelo vale, o ardente estio.

 

Tornei a ver o teu sombrio quarto

Onde estava a saudade de outros dias...

Um raio iluminava o leito ao fundo

Onde, rosa de amor, já não dormias.

 

As cortinas abri que te amparavam

Da luz mortiça da manhã, querida,

Para que um raio depusesse um toque

De prazer em tua fronte adormecida.

 

Era ali que, depois da meia-noite,

Tanto amor nós sonhávamos outrora;

E onde até o raiar da madrugada

Ouvíamos bater hora por hora!

 

Então olhavas tu a chama ativa

Correr ali no lar, como a serpente;

É que o sono fugia de teus olhos

Onde já te queimava a febre ardente.

 

Lembras-te agora, nesse mundo novo,

Dos gozos desta vida em que passaste?

Ouves passar, no túmulo em que dormes,

A turba dos festins que acompanhaste?

 

A insônia, como um verme em flor que murcha,

De contínuo essas faces desbotava;

E pronta para amores e banquetes

Conviva e cortesã te preparava.

 

Hoje, Maria, entre virentes flores,

Dormes em doce e plácido abandono;

A tua alma acordou mais bela e pura,

E Deus pagou-te o retardado sono.

 

Pobre mulher! em tua última hora

Só um homem tiveste à cabeceira;

E apenas dous amigos dos de outrora

Foram levar-te à cama derradeira.

 

 

 

AS ROSAS[vi]

 

A Caetano Filgueiras

 

Rosas que desabrochais,

Como os primeiros amores,

Aos suaves resplendores

Matinais;

 

Em vão ostentais, em vão,

A vossa graça suprema;

De pouco vale; é o diadema

Da ilusão.

 

Em vão encheis de aroma o ar da tarde;

Em vão abris o seio úmido e fresco

Do sol nascente aos beijos amorosos;

Em vão ornais a fronte à meiga virgem;

Em vão, como penhor de puro afeto,

Como um elo das almas,

Passais do seio amante ao seio amante;

Lá bate a hora infausta

Em que é força morrer; as folhas lindas

Perdem o viço da manhã primeira,

As graças e o perfume.

Rosas, que sois então? — Restos perdidos,

Folhas mortas que o tempo esquece, e espalha

Brisa do inverno ou mão indiferente.

 

Tal é o vosso destino,

Ó filhas da natureza;

Em que vos pese à beleza,

Pereceis;

Mas, não... Se a mão de um poeta

Vos cultiva agora, ó rosas,

Mais vivas, mais jubilosas,

Floresceis.

 

 

 

OS DOUS HORIZONTES

 

1863

 

A M. Ferreira Guimarães

 

Dous horizontes fecham nossa vida:

 

Um horizonte, — a saudade

Do que não há de voltar;

Outro horizonte, — a esperança

Dos tempos que hão de chegar;

No presente, — sempre escuro, —

Vive a alma ambiciosa

Na ilusão voluptuosa

Do passado e do futuro.

 

Os doces brincos da infância

Sob as asas maternais,

O vôo das andorinhas,

A onda viva e os rosais;

O gozo do amor, sonhado

Num olhar profundo e ardente,

Tal é na hora presente

O horizonte do passado.

 

Ou ambição de grandeza

Que no espírito calou,

Desejo de amor sincero

Que o coração não gozou;

Ou um viver calmo e puro

À alma convalescente,

Tal é na hora presente

O horizonte do futuro.

 

No breve correr dos dias

Sob o azul do céu, — tais são

Limites no mar da vida:

Saudade ou aspiração;

Ao nosso espírito ardente,

Na avidez do bem sonhado,

Nunca o presente é passado,

Nunca o futuro é presente.

 

Que cismas, homem? — Perdido

No mar das recordações,

Escuto um eco sentido

Das passadas ilusões.

Que buscas, homem? — Procuro,

Através da imensidade,

Ler a doce realidade

Das ilusões do futuro.

 

 Dous horizontes fecham nossa vida.

 

 

 

MONTE ALVERNE[vii]

 

1858

Ao padre-mestre A. J. da Silveira Sarmento

 

Morreu! — Assim baqueia a estátua erguida

No alto do pedestal;

Assim o cedro das florestas virgens

Cai pelo embate do corcel dos ventos

Na hora do temporal...

 

Morreu! — Fechou-se o pórtico sublime

De um paço secular;

Da mocidade a romaria augusta

Amanhã ante as pálidas ruínas

Há de vir meditar!

 

Tinha na fronte de profeta ungido

A inspiração do céu.

Pela escada do púlpito moderno

Subiu outrora festival mancebo

E Bossuet desceu!

 

Ah! que perdeste num só homem, claustro!

Era uma augusta voz;

Quando essa boca divinal se abria,

Mais viva a crença dissipava n’alma

Uma dúvida atroz!

 

Era tempo? — a argila se alquebrava

Num áspero crisol;

Corrido o véu pelos cansados olhos

Nem via o sol que lhe contava os dias,

Ele — fecundo sol!

 

A doença o prendia ao leito infausto

Da derradeira dor;

A terra reclamava o que era terra,

E o gelo dos invernos coroava

A fronte do orador.

 

Mas lá dentro o espírito fervente

Era como um fanal;

Não, não dormia nesse régio crânio

A alma gentil do Cícero dos púlpitos,

— Cuidadosa Vestal!

 

Era tempo! — O romeiro do deserto

Pára um dia também;

E ante a cidade que almejou por anos

Desdobra um riso nos doridos lábios,

Descansa e passa além!

 

Caíste! — Mas foi só a argila, o vaso,

Que o tempo derrubou;

Não todo à essa foi teu vulto olímpico;

Como deixa o cometa uma áurea cauda,

A lembrança ficou!

 

O que hoje resta era a terrena púrpura

Daquele gênio-rei;

A alma voou ao seio do infinito,

Voltou à pátria das divinas glórias

O apóstolo da lei.

 

Pátria, curva o joelho ante esses restos

Do orador imortal!

Por esses lábios não falava um homem.

Era uma geração, um século inteiro,

Grande, monumental!

 

Morreu! — Assim baqueia a estátua erguida

No alto do pedestal;

Assim o cedro das florestas virgens

Cai pelo embate do corcel dos ventos

Na hora do temporal!

 

 

 

AS VENTOINHAS

 

1863

 

Com seus olhos vaganaus,

Bons de dar, bons de tolher.

 

SÁ DE MIRANDA

 

A mulher é um cata-vento,

       Vai ao vento,

Vai ao vento que soprar;

Como vai também ao vento

       Turbulento,

Turbulento e incerto o mar.

 

Sopra o sul; a ventoinha

       Volta asinha,

Volta asinha para o sul;

Vem taful; a cabecinha

       Volta asinha,

Volta asinha ao meu taful.

 

Quem lhe puser confiança,

       De esperança,

De esperança mal está;

Nem desta sorte a esperança

       Confiança,

Confiança nos dará.

 

Valera o mesmo na areia

       Rija ameia,

Rija ameia construir;

Chega o mar e vai a ameia

       Com a areia,

Com a areia confundir.

 

Ouço dizer de umas fadas

       Que abraçadas,

Que abraçadas como irmãs,

Caçam almas descuidadas...

       Ah! que fadas!

Ah que fadas tão vilãs!

 

Pois, como essas das baladas,

       Umas fadas,

Umas fadas dentre nós,

Caçam, como nas baladas;

       E são fadas,

E são fadas de alma e voz.

 

É que — como o cata-vento,

       Vão ao vento,

Vão ao vento que lhes der;

Cedem três cousas ao vento:

       Cata-vento,

Cata-vento, água e mulher.

 

 

 

ALPUJARRA[viii]

 

(Mickiewicz)

 

1862

 

Jaz em ruínas o torrão dos mouros;

Pesados ferros o infiel arrasta;

Inda resiste a intrépida Granada;

Mas em Granada a peste assola os povos.

 

Cum punhado de heróis sustenta a luta

Fero Almansor nas torres de Alpujarra;

Flutua perto a hispânica bandeira;

Há de o sol d’amanhã guiar o assalto.

 

Deu sinal, ao romper do dia, o bronze;

Arrasam-se trincheiras e muralhas;

No alto dos minaretes erguem-se as cruzes;

Do castelhano a cidadela é presa.

 

Só, e vendo as coortes destroçadas,

O valente Almansor após a luta

Abre caminho entre as inimigas lanças,

Foge e ilude os cristãos que o perseguiam.

 

Sobre as quentes ruínas do castelo,

Entre corpos e restos da batalha,

Dá um banquete o Castelhano, e as presas

E os despojos pelos seus reparte.

 

Eis que o guarda da porta fala aos chefes:

“Um cavaleiro, diz, de terra estranha

Quer falar-vos; — notícias importantes

Declara que vos traz, e urgência pede”.

 

Era Almansor, o emir dos Muçulmanos,

Que, fugindo ao refúgio que buscara,

Vem entregar-se às mãos do Castelhano,

A quem só pede conservar a vida.

 

“Castelhanos”, exclama, o emir vencido

No limiar do vencedor se prostra;

Vem professar a vossa fé e culto

E crer no verbo dos profetas vossos.

 

“Espalhe a fama pela terra toda

Que um árabe, que um chefe de valentes,

Irmão dos vencedores quis tornar-se,

E vassalo ficar de estranho cetro!”

 

Cala no ânimo nobre ao Castelhano

Um ato nobre... O chefe comovido,

Corre a abraçá-lo, e à sua vez os outros

Fazem o mesmo ao novo companheiro.

 

Às saudações responde o emir valente

Com saudações. Em cordial abraço

Aperta ao seio o comovido chefe,

Toma-lhe das mãos e pende-lhe dos lábios.

 

Súbito cai, sem forças, nos joelhos;

Arranca do turbante, e com mão trêmula

O enrola aos pés do chefe admirado,

E junto dele arrasta-se por terra.

 

Os olhos volve em torno e assombra a todos:

Tinha azuladas, lívidas as faces,

Torcidos lábios por feroz sorriso,

Injetados de sangue ávidos olhos.

 

“Desfigurado e pálido me vedes,

Ó infiéis! Sabeis o que vos trago?

Enganei-vos: eu volto de Granada,

E a peste fulminante aqui vos trouxe”.

 

Ria-se ainda — morto já — e ainda

Abertos tinha as pálpebras e os lábios;

Um sorriso infernal de escárnio impresso

Deixara a morte nas feições do morto.

 

Da medonha cidade os castelhanos

Fogem. A peste os segue. Antes que a custo

Deixado houvessem de Alpujarra a serra,

Sucumbiram os últimos soldados.

 

 

 

VERSOS A CORINA[ix]

[Fragmento de III]

 

Que valem glórias vãs? A glória, a melhor glória

É esta que nos orna a poesia da história;

É a glória do céu, e a glória do amor.

É Tasso eternizando a princesa Leonor;

É Lídia ornando a lira ao venusino Horácio;

É a doce Beatriz, flor e honra do Lácio,

Seguindo além da vida as viagens do Dante;

É do cantor do Gama o hino triste e amante

Levando à eternidade o amor de Catarina;

É o amor que une Ovídio à formosa Corina;

O de Cíntia a Propércio, o de Lésbia a Catulo;

O da divina Délia ao divino Tibulo.

Esta a glória que fica, eleva, honra e consola;

Outra não há melhor.Se faltar esta esmola,

Corina, ao teu poeta, e se a doce ilusão,

Com que se alenta e vive o amante coração,

Deixar-lhe um dia o céu azul, tão tranqüilo,

Nenhuma glória mais há de nunca atraí-lo.

Irá longe do mundo e dos seus vãos prazeres,

Viver na solidão a vida de outros seres,

Vegetar como o arbusto, e murchar, como a flor,

Como um corpo sem alma ou alma sem amor.

 

 

 

EMBIRRAÇÃO[x]

 

(A Machado de Assis)

 

A balda alexandrina é poço imenso e fundo,

Onde poetas mil, flagelo deste mundo,

Patinham sem parar, chamando lá por mim.

Não morrerão, se um verso, estiradinho assim,

Da beira for do poço, extenso como ele é,

Levar-lhes grosso anzol; então eu tenho fé

Que volte um afogado, à luz da mocidade,

A ver no mundo seco a seca realidade.

 

 Por eles, e por mim, receio, caro amigo;

Permite o desabafo aqui, a sós contigo,

Que à moda fazer guerra, eu sei quanto é fatal;

Nem vence o positivo o frívolo ideal;

Despótica em seu mando, é sempre fátua e vã,

E até da vã loucura a moda é prima-irmã:

Mas quando venha o senso erguer-lhe os densos véus,

Do verso alexandrino há de livrar-nos Deus.

 

Deus quando abre ao poeta as portas desta vida,

Não lhe depara o gozo e a glória apetecida;

E o triste, se morreu, deixando mal escritas

Em verso alexandrino histórias infinitas,

Vai ter lá noutra vida insípido desterro,

Se Deus, por compaixão, não dá perdão ao erro;

Fechado em quarto escuro, à noite não tem luz,

E se é cá do meu gosto o guarda que o conduz,

Debalde, imerso em pranto, implora o livramento;

Não torna a ser, aqui, das Musas o tormento;

Castigo alexandrino, eterna solidão,

Terá lá no desterro, em prêmio da ilusão;

Verá queimar, à noite, as rosas esfolhadas,

Que a moda lhe ofertara, e trouxe tão cuidadas,

E ao pé do fogo intenso, ardendo em cruas dores,

Verá que versos tais são galhos, não dão flores;

Que, lendo-os a pedido, a criatura santa,

A paciência lhe foge, a fé se lhe quebranta,

 

Se vai dum verso ao fim; depois... treme... vacila...

Dormindo, cai no chão; mais tarde, já tranqüila,

Sonha com verso-verso, e as ilusões floridas,

Risonhas, vem mostrar-lhe as largas avenidas

Que o longo verso-prosa oculta, do porvir!

Sonhando, ao menos, pode amar, gozar, sentir,

Que um sono alexandrino a deixa ali em paz,

Dormir... dormir... dormir... erguer-se, enfim, vivaz,

Bradando: “Clorofórmio! O gênio que te pôs.

A palma cede ao metro esguio, teu algoz!”

 

E aspiras, vate, assim, da glória ao ideal?

Triste e funesto afã!... tentativa fatal!

Nesta sede de luz, nesta fome de amor,

O poeta corre a estrela, à brisa, ao mar, à flor;

Quer ver-lhe a luz na luz da estrela peregrina,

Quer-lhe o aroma sentir na rosa da campina,

Na brisa o doce alento, a voz na voz do mar;

Ó inútil esforço! Ó é ímprobo luta!

Em vez da luz, do aroma, ou do alento, ou da voz,

O verso alexandrino, o impassível algoz!...

 

Não cantas a tristeza, e menos a ventura;

Que em vez do sabiá gemendo na espessura,

Imitarás, no canto, o grilo atrás do lar;

Mas desse estreito asilo, escuro e recatado,

Alegre hás de fugir, que erguendo altivo brado,

A lírica harmonia há de ir-te despertar!

 

Verás de novo aberta a copiosa fonte!

Da poesia verás tão lúcido o horizonte,

Que a mente não calcula, e onde se perde o olhar,

Que nas asas do gênio, a voar pelo espaço,

Da perna sacudindo o alexandrino laço,

Hás de a mão bendizer que o soube desatar.

 

Do precipício foge, e segue a luz secreta,

Essa estrela polar dos sonhos do poeta;

Mas, noutro verso, amigo, onde ao mago ideal

A música se ligue, o senso e a verdade;

— Num destes vai-se, a ler, da vida a imensidade,

Da sílaba primeira à sílaba final!

 

Meu Deus! Esta existência é transitória e passa;

Se fraco fui aqui, pecando por desgraça;

Se já não tenho jus ao vosso puro amor;

Se nem da salvação nutrir posso a esperança,

Quero em chamas arder, sofrer toda a provança:

— Ler verso alexandrino... Oh! isso não Senhor!

                         

                                                             F.X. de Novaes

 

 

     

POSFÁCIO

CARTA AO DR. CAETANO FILGUEIRAS

 

Meu amigo. Agora que o leitor frio e severo pôde comparar o meu pobre livro com a tua crítica benévola e amiga, deixa-me dizer-te rapidamente duas palavras.

 

Recordaste os nossos amigos, poetas na adolescência, hoje idos para sempre dos nossos olhos e da glória que os esperava. Tão piedosa evocação será o paládio do meu livro, como o é a tua carta de recomendação.

 

Vai longe esse tempo. Guardo a lembrança dele, tão viva como a saudade que ainda sinto, mas já sem aquelas ilusões que o tornavam tão doce ao nosso espírito. O tempo não corre em vão para os que desde o berço foram condenados ao duelo infausto entre a aspiração e a realidade. Cada ano foi uma lufada que desprendeu da árvore da mocidade, não só uma alma querida, como uma ilusão consoladora.

 

A tua pena encontrou expressões de verdade e de sentimento para descrever as nossas confabulações de poetas, tão serenas e tão íntimas.

 

Tiveste o condão de transportar-me a essas práticas da adolescência poética; lendo a tua carta pareceu-me ouvir aqueles que hoje repousam nos seus túmulos, e ouvindo dentro de mim um ruído de aplauso sincero às tuas expressões, afigurava-se-me que eram eles que te aplaudiam, como no outro tempo, na tua pequena e faceira salinha.

 

Essa recordação bastava para felicitar o meu livro. Mas onde não vai a amizade e a crítica benevolente? Foste além: — traduziste para o papel as tuas impressões que eu, — mesmo despido desta modéstia oficial dos preâmbulos e dos epílogos, — não posso deixar de aceitar como parciais e filhas do coração. Bem sabes como o coração pode levar a injustiças involuntárias, apesar de todo o empenho em manter uma imparcialidade perfeita.

 

Não, o meu livro não vai aparecer como o resultado de uma vocação superior. Confesso o que me falta que é para ter direito de reclamar o pouco que possuo. O meu livro é esse pouco que tu caracterizaste tão bem atribuindo os meus versos a um desejo secreto de expansão; não curo de escolas ou teorias; no culto das musas não sou um sacerdote, sou um fiel obscuro da vasta multidão dos fiéis. Tal sou eu, tal deve ser apreciado o meu livro; nem mais, nem menos.

 

Foi assim que eu cultivei a poesia. Se cometi um erro, tenho cúmplices, tu e tantos outros, mortos, e ainda vivos. Animaram-me, e bem sabes o que vale uma animação para os infantes da poesia. Muitas vezes é a sua perdição. Sê-lo-ia para mim? O público que responda.

 

Não incluí neste volume todos os meus versos. Faltou-me o tempo para coligir e corrigir muitos deles, filhos das primeiras incertezas. Vão porém todos, ou quase todos os versos de recente data. Se um escrúpulo de não acumular muita cousa sem valor me não detivesse, este primeiro volume sairia menos magro do que é; entre os dois inconvenientes preferi o segundo.

 

Como sabes, publicando os meus versos cedo às solicitações de alguns amigos, a cuja frente te puseste. Devo declará-lo, para que não recaia sobre mim exclusivamente a responsabilidade do livro. Denuncio os cúmplices para que sofram a sentença.

 

Não te bastou animar-me a realizar esta publicação; a tua lealdade quis que tomasses parte no cometimento, e com a tua própria firma selaste a tua confissão. Agradeço-te o ato e o modo por que o praticaste. E se a tua bela carta não puder salvar o meu livro de um insucesso fatal, nem por isso deixarei de estender-te amigável e fraternalmente a mão.

 

MACHADO DE ASSIS

RIO DE JANEIRO, 1° DE SETEMBRO

DE 1864

 

 

 

 

 

 

 

* Os versos que se seguem, na primeira edição das “Crisálidas”, faziam parte da poesia “Versos a Corina”, e vinham precedidos de três asteriscos indicativos de pausa, após a série de quadras que termina:

 

És tu a maior glória de minha alma,

Se o meu amor profundo não te alcança,

De que me servirá outra esperança?

Que glória tirarei de alheia palma?

 

                               *

                          *       *

 

Que valem glórias vãs? A glória, a melhor glória,

É esta que nos orna a poesia da história;

É a glória do céu, e a glória do amor.

É Tasso eternizando a princesa Leonor;

É Lívia ornando a lira ao venusino Horácio;

É a doce Beatriz, flor e honra do Lácio,

Segundo além da vida as viagens do Dante;

É do doce cantor do Gama o hino triste a amante

Levando à eternidade o amor de Catarina;

É o amor que une Ovídio à formosa Corina;

O de Cíntia a Propércio, o de Lêsbia a Catulo;

O da divida Délia ao divino Tibulo.

Esta a glória que fica, eleva, honra e consola;

Outra não há melhor. Se faltar esta esmola,

Corina, ao teu poeta, e se a doce ilusão,

Com que alenta e vive o amante coração,

Deixar-lhe um dia o céu tão azul, tão tranqüilo,

Nenhuma glória mais há de nunca atraí-lo.

Irá longe do mundo e dos seus vãos prazeres,

Viver na solidão a vida de outros seres,

Vegetar como arbusto, e murchar, como a flor,

Como um corpo sem alma ou alma sem amor.

 

Entre estes versos encontra-se o célebre

 

 Esta a glória que fica, eleva, honra e consola,

 

que os acadêmicos escolheram para ser exarado no frontispício da Academia de Letras por baixo da estátua do autor de “Quincas Borba”.

 



[i] E ao som dos nossos cânticos; etc.

Estes versos são postos na boca de uma hebréia. Foram recitados no Ateneu Dramático pela eminente artista D. Gabriela da Cunha, por ocasião da exibição de um quadro do Cenógrafo João Caetano, representando o dilúvio universal.

 

[ii] Foi com alguma hesitação que eu fiz inserir no volume estes versos. Já bastava o arrojo de traduzir a maviosa elegia de Chenier. Poderia eu conservar a grave simplicidade do original? A animação de um amigo decidiu-me a não imolar o trabalho já feito; aí fica a poesia; se me sair mal, corre por conta do amigo anônimo.

[iii] Este canto é tirado de uma tragédia de M.me Emile de Girardin. O escravo, tendo visto coroado o seu amor pela rainha do Egito, é condenado a morrer. Com a taça em punho, entoa o belo canto de que fiz esta mal amanhada paráfrase.

[iv] Esta poesia foi recitada no Clube Fluminense, num sarau literário. Pareceu então que eu fazia sátira pessoal. Não fiz. A sátira abrange uma classe que se encontra em todas as cenas políticas, — é a classe daqueles que, como se exprime um escritor, depois de darem ao povo todas as insígnias da realeza, quiseram completar-lha, fazendo-se eles próprios os bobos do povo.

[v] Em 1858, eu e o meu finado amigo F. Gonçalves Braga resolvemos fazer uma tradução livre ou paráfrase destes versos de Alexandre Dumas filho. No dia aprazado apresentamos e confrontamos o nosso trabalho. A tradução dele foi publicada, não me lembro em que jornal.

[vi] ............. Se a mão de um poeta

Vos cultiva agora, ó rosas, etc.

O Dr. Caetano Filgueiras trabalha há tempos num livro de que são as rosas o título e o objeto. É um trabalho curioso de erudição e de fantasia; o assunto requer, na verdade, um poeta e um erudito. É a isso que aludem estes últimos versos.

[vii] A dedicatória desta poesia ao padre-mestre Silveira Sarmento é um justo tributo pago ao talento, e à amizade que sempre me votou este digno sacerdote. Pareceu-me que não podia fazer nada mais próprio do que falar-lhe de Monte Alverne, que ele admirava, como eu.

Não há nesta poesia só um tributo de amizade e de admiração: há igualmente a lembrança de um ano de minha vida. O padre-mestre, alguns anos mais velho do que eu, fazia-se nesse tempo um modesto preceptor e um agradável companheiro. Circunstâncias da vida nos separaram até hoje.

[viii] Este canto é extraído de um poema do poeta polaco Mickiewicz, denominado Conrado Wallenrod. Não sei como corresponderá ao original; eu servi-me da tradução francesa do polaco Christiano Ostrowski.

[ix] As três primeiras poesias desta coleção foram publicadas sob o anônimo nas colunas do Correio Mercantil; a quarta e quinta saíram no Diário do Rio, sendo esta última assinada. A sexta é inteiramente inédita.

[x] Esta poesia, como se terá visto, é a resposta que me deu o meu amigo F. X. de Novaes, a quem foram dirigidos os versos anteriores. Tão bom amigo e tão belo nome tinham direito de figurar neste livro. O leitor apreciará, sem dúvida, a dificuldade vencida pelo poeta que me respondeu em estilo faceto, no mesmo tom e pelos mesmos consoantes.