Falenas

 


 

Texto-fonte:

Obra Completa, Machado de Assis, vol. II,

Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

 

Publicado originalmente no Rio de Janeiro, por B.-L. Garnier, em 1870.

 

 

 

 

 

 

ÍNDICE

 

Flor da Mocidade

 

Quando Ela Fala

 

Manhã de Inverno

 

La Marchesa de Miramar

 

Sombras

 

Ite, Missa Est

 

Ruínas

 

Musa dos Olhos Verdes

 

Noivado

 

A Elvira

 

Lágrimas de Cera

 

Livros e Flores

 

Pássaros

 

O Verme

 

Un Vieux Pays

 

Luz entre Sombras

 

Lira Chinesa

 

Uma Ode de Anacreonte

 

Pálida Elvira

 

 

 

POEMAS PRESENTES Na primeira edição

 

PRELÚDIO

 

VISÃO

 

MENINA E MOÇA

 

NO ESPAÇO

 

OS DEUSES DA GRÉCIA

 

CEGONHAS E RODOVALHOS

 

A UM LEGISTA

 

ESTÂNCIAS A EMA

 

A MORTE DE OFÉLIA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FLOR DA MOCIDADE

 

 

Eu conheço a mais bela flor;

És tu, rosa da mocidade,

Nascida, aberta para o amor.

Eu conheço a mais bela flor.

Tem do céu a serena cor,

E o perfume da virgindade.

Eu conheço a mais bela flor,

És tu, rosa da mocidade.

 

Vive às vezes na solidão,

Como filha da brisa agreste.

Teme acaso indiscreta mão;

Vive às vezes na solidão.

Poupa a raiva do furacão

Suas folhas de azul-celeste.

Vive às vezes na solidão,

Como filha da brisa agreste.

 

Colhe-se antes que venha o mal,

Colhe-se antes que chegue o inverno;

Que a flor morta já nada vale.

Colhe-se antes que venha o mal.

Quando a terra é mais jovial

Todo o bem nos parece eterno.

Colhe-se antes que venha o mal,

Colhe-se antes que chegue o inverno.

 

 

 

QUANDO ELA FALA

 

She speaks!

O speak again, bright angel!

 

SHAKESPEARE

 

Quando ela fala, parece

Que a voz da brisa se cala;

Talvez um anjo emudece

Quando ela fala.

 

Meu coração dolorido

As suas mágoas exala.

E volta ao gozo perdido

Quando ela fala.

 

 

Pudesse eu eternamente,

Ao lado dela, escutá-la,

Ouvir sua alma inocente

Quando ela fala.

 

 

Minh'alma, já semimorta,

Conseguira ao céu alçá-la,

Porque o céu abre uma porta

Quando ela fala.

 

 

 

MANHÃ DE INVERNO

 

Coroada de névoas surge a aurora

Por detrás das montanhas do oriente;

Vê-se um resto de sono e de preguiça

Nos olhos da fantástica indolente.

 

Névoas enchem de um lado e de outro os morros

Tristes como sinceras sepulturas,

Essas que têm por simples ornamento

Puras capelas, lágrimas mais puras.

 

A custo rompe o sol; a custo invade

O espaço todo branco; e a luz brilhante

Fulge através do espesso nevoeiro,

Como através de um véu fulge o diamante.

 

Vento frio, mas brando, agita as folhas

Das laranjeiras úmidas da chuva;

Erma de flores, curva a planta o colo,

E o chão recebe o pranto da viúva.

 

Gelo não cobre o dorso das montanhas,

Nem enche as folhas trêmulas a neve;

Galhardo moço, o inverno deste clima

Na verde palma a sua história escreve.

 

Pouco a pouco, dissipam-se no espaço

As névoas da manhã; já pelos montes

Vão subindo as que encheram todo o vale;

Já se vão descobrindo os horizontes.

 

Sobe de todo o pano, eis aparece

Da natureza o esplêndido cenário;

Tudo ali preparou cos sábios olhos

A suprema ciência do empresário.

 

Canta a orquestra dos pássaros no mato

A sinfonia alpestre, — a voz serena

Acorda os ecos tímidos do vale;

E a divina comédia invade a cena.

 

 

 

LA MARCHESA DE MIRAMAR [1]

 

A misérrima Dido

Pelos paços reais vaga ululando.

 

GARÇÃO

 

De quanto sonho um dia povoaste

A mente ambiciosa,

Que te resta? Uma página sombria,

A escura noite e um túmulo recente.

 

Ó abismo! Ó fortuna! Um dia apenas

Viu erguer, viu cair teu frágil trono.

Meteoro do século, passaste,

Ó triste império, alumiando as sombras.

A noite foi teu berço e teu sepulcro!

Da tua morte os goivos inda acharam

Frescas as rosas dos teus breves dias;

E no livro da história uma só folha

A tua vida conta: sangue e lágrimas.

 

No tranqüilo castelo,

Ninho d'amor, asilo de esperanças,

A mão de áurea, fortuna preparara,

Menina e moça, um túmulo aos teus dias.

Junto do amado esposo,

Outra c'roa cingias mais segura,

A coroa do amor, dádiva santa

Das mãos de Deus. No céu de tua vida

Uma nuvem sequer não sombreava

A esplêndida manhã; estranhos eram

Ao recatado asilo

Os rumores do século.

Estendia-se

Em frente o largo mar, tranqüila face

Como a da consciência alheia ao crime,

E o céu, cúpula azul do equóreo leito.

Ali, quando ao cair da amena tarde,

No tálamo encantado do ocidente,

O vento melancólico gemia,

E a onda murmurando,

Nas convulsões do amor beijava a areia,

Ias tu junto dele, as mãos travadas,

Os olhos confundidos,

Correr as brandas, sonolentas águas,

Na gôndola discreta. Amenas flores

Com suas mãos teciam

As namoradas Horas; vinha a noite,

Mãe de amores, solícita descendo,

Que em seu regaço a todos envolvia,

O mar, o céu, a terra, o lenho e os noivos...

Mas além, muito além do céu fechado,

O sombrio destino, contemplando

A paz do teu amor, a etérea vida,

As santas efusões das noites belas,

O terrível cenário preparava

A mais terríveis lances.

Então surge dos tronos

A profética voz que anunciava

Ao teu crédulo esposo:

"Tu serás rei, Macbeth!" Ao longe, ao longe,

No fundo do oceano, envolto em névoas,

Salpicado de sangue, ergue-se um trono.

Chamam-no a ele as vozes do destino.

Da tranqüila mansão ao novo império

Cobrem flores a estrada, — estéreis flores

Que mal podem cobrir o horror da morte.

Tu vais, tu vais também, vítima infausta;

O sopro da ambição fechou teus olhos...

Ah! quão melhor te fora

No meio dessas águas

Que a régia nau cortava, conduzindo

Os destinos de um rei, achar a morte:

A mesma onda os dois envolveria.

Uma só convulsão às duas almas

O vínculo quebrara, e ambas iriam,

Como raios partidos de uma estrela,

À eterna luz juntar-se.

 

Mas o destino, alçando a mão sombria,

Já traçara nas páginas da história

O terrível mistério. A liberdade

Vela naquele dia a ingênua fronte.

Pejam nuvens de fogo o céu profundo.

Orvalha sangue a noite mexicana...

Viúva e moça, agora em vão procuras

No teu plácido asilo o extinto esposo.

Interrogas em vão o céu e as águas.

Apenas surge ensangüentada sombra

Nos teus sonhos de louca, e um grito apenas,

Um soluço profundo reboando

Pela noite do espírito, parece

Os ecos acordar da mocidade.

No entanto, a natureza alegre e viva,

Ostenta o mesmo rosto.

Dissipam-se ambições, impérios morrem,

Passam os homens como pó que o vento

Do chão levanta ou sombras fugitivas,

Transformam-se em ruína o templo e a choça.

Só tu, só tu, eterna natureza,

Imutável, tranqüila,

Como rochedo em meio do oceano

Vês baquear os séculos.

Sussurra

Pelas ribas do mar a mesma brisa;

O céu é sempre azul, as águas mansas;

Deita-se ainda a tarde vaporosa

No leito do ocidente;

Ornam o campo as mesmas flores belas...

Mas em teu coração magoado e triste,

Pobre Carlota! o intenso desespero

Enche de intenso horror o horror da morte,

Viúva da razão, nem já te cabe

A ilusão da esperança.

Feliz, feliz, ao menos, se te resta,

Nos macerados olhos,

O derradeiro bem: — algumas lágrimas!

 

 

 

SOMBRAS

 

Quando, assentada, à noite, a tua fronte inclinas,

E cerras descuidada as pálpebras divinas,

E deixas no regaço as tuas mãos cair,

E escutas sem falar, e sonhas sem dormir,

Acaso uma lembrança, um eco do passado,

Em teu seio revive?

O túmulo fechado 

Da ventura que foi, do tempo que fugiu,

Por que razão, mimosa, a tua mão o abriu?

Com que flor, com que espinho, a importuna memória

Do teu passado escreve a misteriosa história?

Que espectro ou que visão ressurge aos olhos teus?

Vem das trevas do mal ou cai das mãos de Deus?

É saudade ou remorso? é desejo ou martírio?

Quando em obscuro templo a fraca luz de um círio

Apenas alumia a nave e o grande altar

E deixa todo o resto em treva, — e o nosso olhar

Cuida ver ressurgindo, ao longe, dentre as portas

As sombras imortais das criaturas mortas,

Palpita o coração de assombro e de terror;

O medo aumenta o mal. Mas a cruz do Senhor,

Que a luz do círio inunda, os nossos olhos chama;

O ânimo esclarece aquela eterna chama;

Ajoelha-se contrito, e murmura-se então

A palavra de Deus, a divina oração.

 

Pejam sombras, bem vês, a escuridão do templo;

Volve os olhos à luz, imita aquele exemplo;

Corre sobre o passado impenetrável véu;

Olha para o futuro e vem lançar-te ao céu.

 

 

 

ITE, MISSA EST

 

Fecha o missal do amor e a bênção lança

À pia multidão

Dos teus sonhos de moço e de criança,

Soa a hora fatal, — reza contrito

As palavras do rito:

Ite, missa est.

 

Foi longo o sacrifício; o teu joelho

De curvar-se cansou;

E acaso sobre as folhas do Evangelho

A tua alma chorou.

Ninguém viu essas lágrimas (ai tantas!)

Cair nas folhas santas.

Ite, missa est.

 

De olhos fitos no céu rezaste o credo,

O credo do teu deus;

Oração que devia, ou tarde ou cedo,

Travar nos lábios teus;

Palavra que se esvai qual fumo escasso

E some-se no espaço.

Ite, missa est.

 

Votaste ao céu, nas tuas mãos alçadas,

A hóstia do perdão,

A vítima divina e profanada

Que chamas coração.

Quase inteiras perdeste a alma e a vida

Na hóstia consumida.

Ite, missa est.

 

Pobre servo do altar de um deus esquivo,

É tarde, beija a cruz;

Na lâmpada em que ardia o fogo ativo,

Vê, já se extingue a luz.

Cubra-te agora o rosto macilento

O véu do esquecimento.

Ite, missa est.

 

 

 

RUÍNAS

 

No hay pájaros en los nidos de antaño.

 

PROVÉRBIO ESPANHOL

 

Cobrem plantas sem flor crestados muros;

Range a porta anciã; o chão de pedra

Gemer parece aos pés do inquieto vate.

Ruína é tudo: a casa, a escada, o horto,

Sítios caros da infância.

Austera moça

Junto ao velho portão o vate aguarda;

Pendem-lhe as tranças soltas

Por sobre as roxas vestes;

Risos não tem, e em seu magoado gesto

Transluz não sei que dor oculta aos olhos,

— Dor que à face não vem, — medrosa e casta,

Intima e funda; — e dos cerrados cílios

Se uma discreta e muda

Lágrima cai, não murcha a flor do rosto;

Melancolia tácita e serena,

Que os ecos não acorda em seus queixumes,

Respira aquele rosto. A mão lhe estende

O abatido poeta. Ei-los percorrem

Com tardo passo os relembrados sítios,

Ermos depois que a mão da fria morte

Tantas almas colhera. Desmaiavam,

Nos serros do poente.

As rosas do crepúsculo.

"Quem és? pergunta o vate; o solo que foge

No teu lânguido olhar um raio deixa;

— Raio quebrado e frio; — o vento agita

Tímido e frouxo as tuas longas tranças.

Conhecem-te estas pedras; das ruínas

Alma errante pareces condenada

A contemplar teus insepultos ossos.

Conhecem-te estas árvores. E eu mesmo

Sinto não sei que vaga e amortecida

Lembrança de teu rosto."

 

Desceu de todo a noite,

Pelo espaço arrastando o manto escuro

Que a loura Vésper nos seus ombros castos,

Como um diamante, prende. Longas horas

Silenciosas correram. No outro dia,

Quando as vermelhas rosas do oriente

Ao já próximo sol a estrada ornavam,

Das ruínas saíam lentamente

Duas pálidas sombras...

 

 

 

MUSA DOS OLHOS VERDES

 

Musa dos olhos verdes, musa alada,

Ó divina esperança,

Consolo do ancião no extremo alento,

E sonho da criança;

 

Tu que junto do berço o infante cinges

Cos fúlgidos cabelos;

Tu que transformas em dourados sonhos

Sombrios pesadelos;

 

Tu que fazes pulsar o seio às virgens;

Tu que às mães carinhosas

Enches o brando, tépido regaço

Com delicadas rosas;

 

Casta filha do céu, virgem formosa

Do eterno devaneio,

Sê minha amante, os beijos recebe,

Acolhe-me em teu seio!

 

Já cansada de encher lânguidas flores

Com as lágrimas frias,

A noite vê surgir do oriente a aurora

Dourando as serranias.

 

Asas batendo à luz que as trevas rompe,

Piam noturnas aves,

E a floresta interrompe alegremente

Os seus silêncios graves.

 

Dentro de mim, a noite escura e fria

Melancólica chora;

Rompe estas sombras que o meu ser povoam;

Musa, sê tua a aurora!

 

 

 

NOIVADO

 

Vês, querida, o horizonte ardendo em chamas?

Além desses outeiros

Vai descambando o sol, e à terra envia

Os raios derradeiros;

A tarde, como noiva que enrubesce,

Traz no rosto um véu mole e transparente;

No fundo azul a estrela do poente

Já tímida aparece.

 

Como um bafo suavíssimo da noite,

Vem sussurrando o vento,

As árvores agita e imprime às folhas

O beijo sonolento.

A flor ajeita o cálix: cedo espera

O orvalho, e entanto exala o doce aroma;

Do leito do oriente a noite assoma;

Como uma sombra austera.

 

Vem tu, agora, ó filha de meus sonhos,

Vem, minha flor querida;

Vem contemplar o céu, página santa

Que amor a ler convida;

Da tua solidão rompe as cadeias;

Desce do teu sombrio e mudo asilo;

Encontrarás aqui o amor tranqüilo...

Que esperas? que receias?

 

Olha o templo de Deus, pomposo e grande;

Lá do horizonte oposto

A lua, como lâmpada, já surge

A alumiar teu rosto;

Os círios vão arder no altar sagrado,

Estrelinhas do céu que um anjo acende;

Olha como de bálsamos rescende

A c'roa do noivado.

 

Irão buscar-te em meio do caminho

As minhas esperanças;

E voltarão contigo, entrelaçadas

Nas tuas longas tranças;

No entanto eu preparei teu leito à sombra

Do limoeiro em flor; colhi contente

Folhas com que alastrei o solo ardente

De verde e mole alfombra.

 

Pelas ondas do tempo arrebatados,

Até à morte iremos,

Soltos ao longo do baixel da vida

Os esquecidos remos.

Firmes, entre o fragor da tempestade,

Gozaremos o bem que amor encerra,

Passaremos assim do sol da terra

Ao sol da eternidade.

 

 

 

A ELVIRA

 

(LAMARTINE)

 

Quando, contigo a sós, as mãos unidas,

Tu, pensativa e muda, e eu, namorado,

Às volúpias do amor a alma entregando,

Deixo correr as horas fugidias;

Ou quando às solidões de umbrosa selva

Comigo te arrebato; ou quando escuto

Tão só eu, — teus terníssimos suspiros;

E de meus lábios solto

Eternas juras de constância eterna;

Ou quando, enfim, tua adorada fronte

Nos meus joelhos trêmulos descansa,

E eu suspendo meus olhos em teus olhos,

Como às folhas da rosa ávida abelha;

Ai, quanta vez então dentro em meu peito

Vago terror penetra, como um raio!

Empalideço, tremo;

E no seio da glória em que me exalto,

Lágrimas verto que a minha alma assombram!

Tu, carinhosa e trêmula,

Nos teus braços me cinges, — e assustada,

Interrogando em vão, comigo choras!

"Que dor secreta o coração te oprime?"

Dizes tu. "Vem, confia os teus pesares...

Fala! eu abrandarei as penas tuas!

Fala! eu consolarei tua alma aflita!"

Vida do meu viver, não me interrogues!

Quando enlaçado nos teus níveos braços

A confissão de amor te ouço, e levanto

Lânguidos olhos para ver teu rosto,

Mais ditoso mortal o céu não cobre!

Se eu tremo, é porque nessas esquecidas

Afortunadas horas,

Não sei que voz do enleio me desperta,

E me persegue e lembra

Que a ventura coo tempo se esvaece,

E o nosso amor é facho que se extingue!

De um lance, espavorida,

Minha alma voa às sombras do futuro,

E eu penso então: "Ventura que se acaba

Um sonho vale apenas".

 

 

 

LÁGRIMAS DE CERA

 

Passou; viu a porta aberta.

Entrou; queria rezar.

A vela ardia no altar.

A igreja estava deserta.

 

Ajoelhou-se defronte

Para fazer a oração,

Curvou a pálida fronte

E pôs os olhos no chão.

 

Vinha trêmula e sentida.

Cometera um erro. A cruz

É a âncora da vida,

A esperança, a força, a luz.

 

Que rezou? Não sei. Benzeu-se

Rapidamente. Ajustou

O véu de rendas. Ergueu-se

E à pia se encaminhou.

 

Da vela benta que ardera,

Como tranqüilo fanal,

Umas lágrimas de cera

Caíam no castiçal.

 

Ela porém não vertia

Uma lágrima sequer.

Tinha fé, — a chama a arder, —

Chorar é que não podia.

 

 

 

LIVROS E FLORES

 

 

Teus olhos são meus livros.

Que livro há aí melhor,

Em que melhor se leia

A página do amor? 

Flores me são teus lábios.

Onde há mais bela flor,

Em que melhor se beba

O bálsamo do amor?

 

 

 

PÁSSAROS

 

Je veux changer mes pensées en oiseaux.

 

C. MAROT

 

Olha como, cortando os leves ares,

Passam do vale ao monte as andorinhas;

Vão pousar na verdura dos palmares,

Que, à tarde, cobre transparente véu;

Voam também como essas avezinhas

Meus sombrios, meus tristes pensamentos;

Zombam da fúria dos contrários ventos,

Fogem da terra, acercam-se do céu.

 

Porque o céu é também aquela estância

Onde respira a doce criatura,

Filha de nosso amor, sonho da infância,

Pensamento dos dias juvenis.

Lá, como esquiva flor, formosa e pura,

Vives tu escondida entre a folhagem,

Ó rainha do ermo, ó fresca imagem

Dos meus sonhos de amor calmo e feliz!

 

Vão para aquela estância enamorados,

Os pensamentos de minh'alma ansiosa;

Vão contar-lhe os meus dias mal gozados

E estas noites de lágrimas e dor. 

 

Na tua fronte pousarão, mimosa,

Como as aves no cimo da palmeira,

Dizendo aos ecos a canção primeira

De um livro escrito pela mão do amor.

 

Dirão também como conservo ainda

No fundo de minh'alma essa lembrança

De tua imagem vaporosa e linda,

Único alento que me prende aqui.

E dirão mais que estrelas de esperança

Enchem a escuridão das noites minhas.

Como sobem ao monte as andorinhas,

Meus pensamentos voam para ti.

 

 

 

O VERME

 

Existe uma flor que encerra

Celeste orvalho e perfume.

Plantou-a em fecunda terra

Mão benéfica de um nume.

 

Um verme asqueroso e feio,

Gerado em lodo mortal,

Busca esta flor virginal

E vai dormir-lhe no seio.

 

Morde, sangra, rasga e mina,

Suga-lhe a vida e o alento;

A flor o cálix inclina;

As folhas, leva-as o vento.

 

Depois, nem resta o perfume

Nos ares da solidão...

Esta flor é o coração,

Aquele verme o ciúme.

 

 


UN VIEUX PAYS [2]

 

 ...juntamente choro e rio.

 

CAMÕES

 

 

Il est un vieux pays, plein d'ombre et de lumière,

Où l'on rêve le jour, où l'on pleure le soir;

Un pays de blasphème, autant que de prière,

Né pour la doute et pour l'espoir.

 

On n'y voit point de fleurs sans un ver qui les ronge,

Point de mer sans tempête, ou de soleil sans nuit;

Le bonheur y paraît quelquefois dans un songe

Entre les bras du sombre ennui.

 

L'amour y va souvent, mais c'est tout un délire,

Un désespoir sans fin, une énigme sans mot;

Parfois il rit gaîment, mais de cet affreux rire

Qui n'est peut-être qu'un sanglot.

 

On va dans ce pays de misère et d'ivresse,

Mais on le voit à peine, on en sort, on a peur;

Je l'habit pourtant, j'y passe na jeunesse...

Hélas! ce pays, c'est mon coeur.

 

 

 

LUZ ENTRE SOMBRAS

 

É noite medonha e escura,

Muda como o passamento,

Uma só no firmamento

Trêmula estrela fulgura.

 

Fala aos ecos da espessura

A chorosa harpa do vento,

E num canto sonolento

Entre as árvores murmura.

 

Noite que assombra a memória,

Noite que os medos convida

Erma, triste, merencória.

 

No entanto... minh'alma olvida

Dor que se transforma em glória,

Morte que se rompe em vida.

 

 

 

LIRA CHINESA [3]

 

I

O POETA A RIR

(HAN-TIÊ)

 

Taça d’água parece o lago ameno;

Têm os bambus a forma de cabanas,

Que as árvores em flor, mais altas, cobrem

Com verdejantes tetos.

 

As pontiagudas rochas entre flores,

Dos pagodes o grave aspecto ostentam...

Faz-me rir ver-te assim, ó natureza,

Cópia servil dos homens.

 

II

A UMA MULHER

(TCHÊ-TSI)

 

Cantigas modulei ao som da flauta,

Da minha flauta d'ébano;

Nelas minh'alma segredava à tua

Fundas, sentidas mágoas.

 

Cerraste-me os ouvidos. Namorados

Versos compus de júbilo,

Por celebrar teu nome, as graças tuas,

Levar teu nome aos séculos.

 

Olhaste, e, meneando a airosa frente,

Com tuas mãos puríssimas,

Folhas em que escrevi meus pobres versos

Lançaste às ondas trêmulas.

 

Busquei então por encantar tu'alma

Uma safira esplêndida,

Fui depô-la a teus pés... tu descerraste

Da tua boca as pérolas.

 

III

O IMPERADOR

(THU-FU)

 

Olha. O Filho do Céu, em trono de ouro,

E adornado com ricas pedrarias,

Os mandarins escuta: — um sol parece

De estrelas rodeado.

 

Os mandarins discutem gravemente

Coisas muito mais graves. E ele? Foge-lhe

O pensamento inquieto e distraído

Pela janela aberta.

 

Além, no pavilhão de porcelana,

Entre donas gentis está sentada

A imperatriz, qual flor radiante e pura

Entre viçosas folhas.

 

Pensa no amado esposo, arde por vê-lo,

Prolonga-se-lhe a ausência, agita o leque...

Do imperador ao rosto um sopro chega

De recendente brisa.

 

"Vem dela este perfume", diz, e abrindo

Caminho ao pavilhão da amada esposa,

Deixa na sala, olhando-se em silêncio,

Os mandarins pasmados.

 

IV

O LEQUE

(TAN-JO-LU)

 

Na perfumada alcova a esposa estava,

Noiva ainda na véspera. Fazia

Calor intenso; a pobre moça ardia,

Com fino leque as faces refrescava.

Ora, no leque em boa letra feito

Havia neste conceito:

"Quando, imóvel o vento e o ar pesado,

Arder o intenso estio,

Serei por mão amiga ambicionado;

Mas, volte o tempo frio,

Ver-me-eis a um canto logo abandonado.”

 

Lê a esposa este aviso, e o pensamento

Volve ao jovem marido.

"Arde-lhe o coração neste momento

(Diz ela) e vem buscar enternecido

Brandas auras de amor. Quando mais tarde

Tornar-se em cinza fria

O fogo que hoje lhe arde,

Talvez me esqueça e me desdenhe um dia."

 

V

A FOLHA DO SALGUEIRO

(TCHAN-TIÚ-LIN)

 

Amo aquela formosa e terna moça

Que, à janela encostada, arfa e suspira;

Não porque tem do largo rio à margem

Casa faustosa e bela.

 

Amo-a, porque deixou das mãos mimosas

Verde folha cair nas mansas águas.

 

Amo a brisa de leste que sussurra,

Não porque traz nas asas delicadas

O perfume dos verdes pessegueiros

Da oriental montanha.

 

Amo-a, porque impeliu coas tênues asas

Ao meu batel a abandonada folha.

 

Se amo a mimosa folha aqui trazida,

Não é porque me lembre à alma e aos olhos

A renascente, a amável primavera,

Pompa e vigor dos vales.

 

Amo a folha por ver-lhe um nome escrito,

Escrito, sim, por ela, e esse... é meu nome.

 

VI

AS FLORES E OS PINHEIROS

(TIN-TUN-SING)

 

Vi os pinheiros no alto da montanha

Ouriçados e velhos;

E ao sopé da montanha, abrindo as flores

Os cálices vermelhos.

 

Contemplando os pinheiros da montanha,

As flores tresloucadas

Zombam deles enchendo o espaço em torno

De alegres gargalhadas.

 

Quando o outono voltou, vi na montanha

Os meus pinheiros vivos,

Brancos de neve, e meneando ao vento

Os galhos pensativos.

 

Volvi o olhar ao sítio onde escutara

Os risos mofadores;

Procurei-as em vão; tinham morrido

As zombeteiras flores.

 

VII

REFLEXOS

(THU-FU)

 

Vou rio abaixo vogando

No meu batel e ao luar;

Nas claras águas fitando,

Fitando o olhar.

 

Das águas vejo no fundo,

Como por um branco véu

Intenso, calmo, profundo,

O azul do céu.

 

Nuvem que no céu flutua,

Flutua n'água também;

Se a lua cobre, à outra lua

Cobri-la vem.

 

Da amante que me extasia,

Assim, na ardente paixão,

As raras graças copia

Meu coração.

 

VIII

CORAÇÃO TRISTE FALANDO AO SOL

(SU-TCHON)

 

          

No arvoredo sussurra o vendaval do outono,

Deita as folhas à terra, onde não há florir,

E eu contemplo sem pena esse triste abandono,

Só eu as vi nascer, vejo-as só eu cair.

 

Como a escura montanha, esguia e pavorosa,

Faz, quando o sol descamba, o vale enoitecer,

Esta montanha da alma, a tristeza amorosa,

Também de ignota sombra enche todo o meu ser.

 

Transforma o frio inverno a água em pedra dura,

Mas torna a pedra em água um raio de verão;

Vem, ó sol, vem, assume o trono teu na altura,

Vê se podes fundir meu triste coração.

 

 

 

UMA ODE DE ANACREONTE

(A MANUEL DE MELO)

 

PERSONAGENS:

 

LÍSIAS

CLEON

MIRTO

TRÊS ESCRAVOS

 

A cena é em Samos.

 

Sala de festim em casa de Lísias. À esquerda a mesa do festim; à direita uma mesa tendo em cima uma lâmpada apagada, e junto da lâmpada um rolo de papiro.

 

CENA I

 

LÍSIAS, CLEON, MIRTO

 

(Estão no fim de um banquete, os dois homens deitados à maneira antiga, MIRTO sentada entre as dois leitos. Três escravos.)

 

LÍSIAS       Melancólica estás, bela Mirto. Bebamos!

                Aos prazeres!

 

CLEON                          Eu bebo à memória de Samos.

                Samos vai terminar os seus dourados dias;

                Adeus, terra em que achei consolo às agonias

                Da minha mocidade; adeus, Samos, adeus!

 

MIRTO        Querem-lhe os deuses mal?

 

CLEON                                             Não; dois olhos, os teus.

 

LÍSIAS       Bravo, Cleon!

 

MIRTO                          Poeta! os meus olhos?

 

CLEON                                                       São lumes

                Capazes de abrasar até os próprios numes.

                Samos é nova Tróia, e tu és outra Helena.

                Quando Lesbos, a mãe de Safo, a ilha amena,

                Não vir a bela Mirto, a alegre cortesã,

                Armar-se-á contra nós

 

LÍSIAS                                    Lesbos é boa irmã.

 

MIRTO        Outras belezas tem, dignas da loura Vênus.

 

CLEON        Menos dignas que tu.

 

MIRTO                                    Mais do que eu.

 

LÍSIAS                                                      Muito menos.

 

CLEON        Tens vergonha de ser formosa e festejada,

                Mirto? Vênus não quer beleza envergonhada.

                Pois que dos imortais houveste esse condão

                De inspirar quantos vês, inspira-os, Mirto.

 

MIRTO                                                                Não;

                São teus olhos, poeta, eu não tenho a beleza

                Que arrasta corações.

 

CLEON                                    Divina singeleza!

 

LÍSIAS       (à parte)

                Vejo através do manto as galas da vaidade.

                (alto)

                Vinho, escravo!

                (O escravo deita vinho na taça de Lísias).

                                   Poeta, um brinde à mocidade.

                Trava da lira e invoca o deus inspirador.

 

CLEON        "Feliz quem junto a ti, ouve a tua fala, amor!"

 

MIRTO        Versos de Safo!

 

CLEON                          Sim.

 

LÍSIAS                                    Vês? é modéstia pura.

                Ele é na poesia o que és na formosura.

                Faz versos de primor e esconde-os ao profano;

                Tem vergonha. Eu não sei se o vício é lesbiano...

 

MIRTO        Ah! tu és...

 

CLEON                          Lesbos foi minha pátria também,

                Lesbos, a flor do Egeu.

 

MIRTO                                    Já não é?

 

CLEON                                                       Lesbos tem

                Tudo o que me fascina e tudo o que me mata:

                As festas do prazer e os olhos de uma ingrata.

                Fugi da pátria e achei, já curado e tranqüilo,

                Em Lísias um irmão, em Samos um asilo.

                Bem hajas tu que vens encher-me o coração!

 

LÍSIAS       Insaciável! Não tens em Lísias um irmão?

 

MIRTO        Volto à pátria.

 

CLEON                          Pois quê! tu vais?

 

MIRTO                                                       Em poucos dias...

 

LÍSIAS       Fazes mal; tens aqui os moços e as folias,

                O gozo, a adoração; que te falta?

 

MIRTO                                                       Os meus ares.

 

CLEON        A que vieste então?

 

MIRTO                                    Sucessos singulares.

                Vim por acompanhar Lisicles, mercador

                De Naxos, tanto pode a constância no amor!

                Corremos todo o Egeu e a costa iônia; fomos

                Comprar o vinho a Creta e a Tênedos os pomos.

                Ah! como é doce o amor na solidão das águas!

                Tem-se vida melhor; esquecem-se-lhe as mágoas.

                Zéfiro ouviu por certo os ósculos febris,

                Os júbilos do afeto, as falas juvenis;

                Ouviu-os, delatou ao deus que o mar governa

                A indiscreta ventura, a efusão doce e terna.

                Para a fúria acalmar da sombria deidade,

                Nave e bens varreu tudo a horrível tempestade.

                Foi assim que eu perdi a Lisicles, assim

                Que eu, semimorta e fria, à tua plaga vim.

 

CLEON        Oh! coitada!

 

LÍSIAS                          O infortúnio os ânimos apura;

                As feridas que faz o mesmo Amor as cura;

                Brandem armas iguais Aquiles e Cupido.

                Queres ver noutro amor o teu amor perdido?

                Samos o tem de sobra.

 

CLEON                                             Eu, Mirto, eu sei amar

                Não fio o coração da inconstância do mar.

                Não tenho galeões rompendo o seio a Tétis,

                Estrada tanta vez ao torvo e obscuro Letes.

                Aqui me tens; sou teu; escreve a minha sorte;

                Podes doar-me a vida ou decretar-me a morte.

 

MIRTO        Mas, se eu volto...

 

CLEON                                    Pois bem! aonde quer que te vás

                Irei contigo; a deusa indômita e falaz

                Ser-me-á hóspede amiga; ao pé de ti a escura

                Noite parece aurora, e é berço a sepultura.

 

MIRTO        Quando fala o dever, a vontade obedece;

                Eu devo ir só; tu ficas, ama-me um pouco e esquece.

 

LÍSIAS       Tens razão, bela Mirto; escuta o teu dever.

 

MIRTO        Ai! é fácil amar, difícil esquecer.

 

LÍSIAS       (a MIRTO)

                Queres pôr termo à festa? Um brinde a Vênus, filha

                Do mar azul, beleza, encanto, maravilha;

                Nascida para ser perpetuamente amada.           

                A Vênus!

(Depois do brinde os escravos trazem os vasos com água perfumada em que os convivas lavam as mãos; os escravos saem, levando os restos do banquete. Levantam-se todos.)

                                   Queres tu, mimosa naufragada,

                Ouvir de hemônia serva, em lira de marfim,

                Uma alegre canção? Preferes o jardim?

                O pórtico talvez?

 

MIRTO                                    Lísias, sou indiscreta;

                Quisera antes ouvir a voz do teu poeta.

 

LÍSIAS       Nume não pede, impõe.

 

CLEON                                             O mando é lisonjeiro.

 

LÍSIAS       Pois começa.

 

CENA II

 

Os mesmos, um escravo.

 

ESCRAVO Procura a Mirto um mensageiro.

 

MIRTO        Um mensageiro! a mim!

 

LÍSIAS                                    Manda-o entrar.

 

ESCRAVO                                                            Não quer.

 

LÍSIAS       Vai, Mirto.

 

MIRTO        (saindo) 

                                   Volto já.

 

(Sai o ESCRAVO).

 

CENA III

 

LÍSIAS, CLEON.

 

CLEON        (Olhando para o lugar por onde MIRTO saiu)

                                            Oh! deuses! que mulher!

 

LÍSIAS       Ah! que pérola rara!

                                            Onde a encontraste?

 

LÍSIAS                                                                Achei-a

                Com Partênis que dava uma esplêndida ceia;

                Partênis, ex-bonita, ex-jovem, ex-da-moda,

                Sabes que vê fugir-lhe a enfastiada roda;

                E, para não perder o grupo adorador,

                Fez do templo deserto uma escola de amor.

                Foi ela quem achou a náufraga perdida,

                Exposta ao vento e ao mar, quase a expirar-lhe a vida.

                A beleza pagava o emprego de uma esmola;

                Dentro em pouco era Mirto a flor de toda a escola.

 

CLEON        Lembrou-te convidá-la então para um festim?

 

LÍSIAS       Foi um pouco por ela e um pouco mais por mim.

 

CLEON        Também amas?

 

LÍSIAS                                    Eu sou mestre em matéria de amor.

                Vênus e o louro Apolo, a poesia e a beleza.

 

CLEON        Oh! a beleza, sim! Viste já tanta graça,

                Tão celestes feições?

 

LÍSIAS                                    Cuidado! Aquela caça

                Zomba dos tiros vãos de ingênuo caçador!

 

CLEON        Incrédulo !

 

LÍSIAS                          Eu sou mestre em matéria de amor.

                Se tu, atento e calmo, a narração lhe ouvisses

                Conheceras melhor o engenho desta Ulisses.

                Aquele ardente amor a Lisicles, aquele

                Fundo e intenso pesar que à sua pátria a impele,

                Armas são com que a astuta os ânimos seduz.

 

CLEON        Oh! não creio.

 

LÍSIAS                          Por quê?

 

CLEON                                             Não vês como lhe luz

                Tanta expressão sincera em seus olhos divinos?

 

LÍSIAS       Sim, tem muita expressão... para iludir meninos.

 

CLEON        Pois tu não crês?

 

LÍSIAS                                    Em quê? No naufrágio? Decerto.

                Em Lisicles? Talvez. No amor? É mais incerto.

                Na intenção de voltar a Lesbos? Isso não!

                Sabes o que ela quer? Prender um coração.

 

CLEON        Impossível!

 

LÍSIAS                          Poeta! estás na alegre idade

                Em que a ciência da vida é a credulidade.

                Vês tudo azul e em flor; eu já me não iludo.

                Pois amar cortesãs! isso demanda estudo,

                Não vai assim, que as tais abelhitas do amor

                Correm de bolsa em bolsa e não de flor em flor.

 

CLEON        Mas não as amas tu?

 

LÍSIAS                                    Decerto à minha moda,

                Meu grande coração cos vícios se acomoda;

                Sacrifícios de amor não sonha nem procura;

                Não lhes pede ilusões, pede-lhes só ternura.

                Não me empenho em achar alma ungida no céu:

                Se é crime este sentir, confesso-me, sou réu.

                Não peço amor ao vinho; irei pedi-lo às damas?

                Delas e dele exijo apenas estas chamas

 Que ardem sem consumir, na pira dos desejos. 

                Assim é que eu estimo as ânforas e os beijos.

                Lá protestos de amor, eternos e leais,

                Tudo isso é fumo vão. Que queres? Os mortais

                Somos todos assim.

 

CLEON                                    Ai, os mortais! dize antes

                Os filósofos maus, ridículos pedantes

                Os que não sabem crer, os fartos já de amores,

                Esses sim. Os mortais!

 

LÍSIAS                                             Refreia os teus furores,

                Poeta; eu não quisera amargurar-te, e enfim

                Não podia supor que a amasses tanto assim.

                Cáspite! Vais depressa!

 

CLEON        Ai, Lísias, é verdade,

                Amo-a, como não amo a vida e a mocidade;

                De que modo nasceu esta afeição que encerra

                Todo o meu ser, ignoro. Acaso sabe a terra

                Por que é mais bela ao sol e às auras matinais?

                Amores estes são terríveis e fatais.

 

LÍSIAS       Vês com olhos do céu coisas que são do mundo;

                Acreditas achar esse afeto profundo,

                Nestas filhas do mal! Se a todo o transe queres

                Obter a casta flor dos célicos prazeres,

                Deixa a alegre Corinto e todo o luxo seu;

                Outro porto acharás: procura o gineceu.

                Escolhe aquele amor doce, inocente e puro,

                Que ainda não tem passado e vive do futuro.

                Para mim, já to disse, o caso é diferente;

                Não me importa um nem outro; eu vivo no presente.

 

CLEON        Deu-te amiga Fortuna um grande cabedal:

                Viver, sem ilusões, no bem como no mal;

                Não conhecer o amor que morde, que se nutre

                Do nosso sangue, o amor funesto, o amor abutre;

                Não beber gota a gota este brando veneno

                Que requeima e destrói; não ver em mar sereno

                Subitamente erguer-se a voz dos aquilões.

                Afortunado és tu.

 

LÍSIAS                                    Lei de compensações!

                Sou filósofo mau, ridículo pedante,

                Mas invejas-me a sorte; oh! lógica de amante.

 

CLEON        É a do coração.

 

LÍSIAS                                    Terrível mestre!

 

CLEON                                                                Ensina

                Dos seres imortais a transfusão divina!

 

LÍSIAS       A lição é profunda e escapa ao meu saber;

                Outra escola professo, a escola do prazer!

 

CLEON        Tu não tens coração.

 

LÍSIAS                                    Tenho, mas não me ilude,

                É Circe que perdeu o encanto e a juventude.

 

CLEON        Velho Sátiro!

 

LÍSIAS                          Justo: um semideus silvestre.

                Nestas coisas do amor nunca tive outro mestre.

                Tu gostas de chorar; eu cá prefiro rir,

                Três artigos de lei: gozar, beber, dormir.

 

CLEON        Compras com isso a paz; a mim coube-me o tédio,

                A solidão e a dor.

 

LÍSIAS                                    Queres um bom remédio,

                Um filtro da Tessália, um bálsamo infalível?

                Esquece empresas vãs, não tentes o impossível;

                Prende o teu coração nos laços de Himeneu;

                Casa-te; encontrarás o amor no gineceu.

                Mas cortesãs! Jamais! São Górgones! Medusas!

 

CLEON        Essas que conheceste e tão severo acusas

                — Pobres moças! — não são o universal modelo;

                De outras sei a quem coube um coração singelo,

                Que preferem a tudo a glória singular

                De conhecer somente a ciência de amar;

                Capazes de sentir o ardor da intensa chama

                Que eleva, que resgata a vida que as infama.

 

LÍSIAS       Se achares tal milagre, eu mesmo irei pedir-to.

 

CLEON        Basta um passo, achá-lo-ei.

 

LÍSIAS                                             Bravo ! chama-se?

 

CLEON                                                                         Mirto,

                Que pode conquistar até o amor de um deus!

 

LÍSIAS       Crês nisso?

 

CLEON                          Por que não?

                                                      Tu és um néscio; adeus!

 

CENA IV

 

CLEON        Vai, cético! tu tens o vicio da riqueza:

                Farto, não crês na fome... A minha singeleza

                Faz-te rir; tu não vês o amor que absorve e mata;

                Mirto, vinga-me tu da calúnia insensata;

                Amemo-nos. É ela!

 

CENA V

 

CLEON, MIRTO

 

MIRTO                                    Estás triste!

 

CLEON                                                       Oh! que não,

                Mas deslumbrado, sim, como se uma visão...

 

MIRTO        A visão vai partir.

 

CLEON                                    Mas muito tarde...

 

MIRTO                                                                Breve.

 

CLEON        Quem te chama?

 

MIRTO                                    O destino. E sabes quem me escreve?

 

CLEON        Tua mãe.

 

MIRTO                          Já morreu.

 

CLEON                                             Algum antigo amante?

 

MIRTO        Lisicles.

 

CLEON                 Vive?

 

MIRTO                          Sim. Depois de andar errante

                Numa tábua, à mercê das ondas, quis o céu

                Que viesse encontrá-lo um barco do Pireu.

                Pobre Lisicles! teve em tão cruenta lida

                A dor da minha morte e a dor da própria vida.

                Em vão interrogava o mar cioso e mudo.

                Perdera, de uma vez, numa só noite, tudo,

                A ventura, a esperança, o amor, e perdeu mais:

                Naufragaram com ele os poucos cabedais.

                Entrou em Samos pobre, inquieto, semimorto,

                Um barqueiro, que a tempo atravessava o porto,

                Disse-lhe que eu vivia, e contou-lhe a aventura

                Da malfadada Mirto.

 

CLEON                                    É isso, a sorte escura

                Voltou-se contra mim; não consente, não quer

                Que eu me farte de amor no amor de uma mulher.

                Vejo em cada paixão o fado que me oprime;

                O amar é já sofrer a pena do meu crime.

                Ixion foi mais audaz amando a deusa augusta;

                Transpôs o obscuro lago e sofre a pena justa;

                Mas eu não. Antes de ir às regiões infernais

                São as graças comigo Eumênides fatais!

 

MIRTO        Caprichos de poeta! Amor não falta às damas;

                Damas, tem-las aqui; inspira-lhe essas chamas.

 

CLEON        Impõe-se leis ao mar? O coração é isto;

                Ama o que lhe convém; convém amar a Egisto

                Clitemnestra, convém a Cíntia Endimião;

                É caprichoso e livre o mar do coração;

                De outras sei que eu houvera em meus versos cantado;

                Não lhes quero... não posso.

 

MIRTO                                             Ai, triste enamorado!

 

CLEON        E tu zombas de mim!

 

MIRTO                                    Eu zombar? Não, lamento

                A tua acerba dor, o teu fatal tormento.

                Não conheço eu também esse cruel penar?

                Só dois remédios tens; esquecer, esperar.

                De quanto almeja e quer o amor nem tudo alcança;

                Contenta-se ao nascer coas auras da esperança;

                Vive da própria mágoa; a própria dor o alenta.

 

CLEON        Mas, se a vida é tão curta, a agonia é tão lenta!

 

MIRTO        Não sabes esperar? Então cumpre esquecer.

                Escolhe entre um e outro; é preciso escolher.

 

CLEON        Esquecer? sabes tu, Mirto, se a alma esquece

                O prazer que a fulmina, e a dor que a fortalece?

 

MIRTO        Tens na ausência e no tempo os velhos pais do olvido;

                O bem não alcançado é como o bem perdido,

                Pouco a pouco se esvai na mente e coração;

                Põe o mar entre nós... dissipa-se a ilusão.

 

CLEON        Impossível!

 

MIRTO                          Então espera; algumas vezes

                A fortuna transforma em glórias os reveses.

 

CLEON        Mirto, valem bem pouco as glórias já tardias.

 

MIRTO        Um só dia de amor compensa estéreis dias.

 

CLEON        Compensará, mas quando? A mocidade em flor

                Bem cedo morre, e é essa a que convém a amor.

                Vejo cair no ocaso o sol da minha vida.

 

MIRTO        Cabeça de poeta, exaltada e perdida!

                Pensas estar no ocaso o sol que mal desponta?

 

CLEON        A clepsidra do amor não conta as horas, conta

                As ilusões; velhice é perdê-las assim;

                Breve a noite abrira seus véus por sobre mim.

 

MIRTO        Não hás de envelhecer; as ilusões contigo

 

                Flores são que respeita Éolo brando e amigo.

                Guarda-as, talvez um dia, e não tarde, as colhamos.

 

CLEON        Se eu a Lesbos não vou.

 

MIRTO                                             Podem colher-se em Samos.

 

CLEON        Voltas breve?

 

MIRTO                          Não sei.

 

CLEON                                    Oh! sim, deves voltar!

 

MIRTO        Tenho medo.

 

CLEON        De quê?

 

MIRTO        Tenho medo... do mar.

 

CLEON        Teu sepulcro já foi; o medo é justo; fica.

                Lesbos é para ti mais formosa e mais rica.

                Mas a pátria é o amor; o amor transmuda os ares.

                Muda-se o coração? Mudam-se os nossos lares.

                Da importuna memória o teu passado exclui;

                Vida nova nos chama, outro céu nos influi.

                Fica; eu disfarçarei com rosas este exílio;

                A vida é um sonho mau: façamo-la um idílio.

                Cantarei a teus pés a nossa mocidade,

                A beleza que impõe, o amor que persuade,

                Vênus que faz arder o fogo da paixão,

                Teu olhar, doce luz que vem do coração.

                Péricles não amou com tanto ardor a Aspásia,

                Nem esse que morreu entre as pombas da Ásia,

                A Laís siciliana. Aqui as Horas belas

                Tecerão para ti vivíssimas capelas.

                Nem morrerás; teu nome em meus versos há de ir,

                Vencendo o tempo e a morte, aos séculos por vir.

 

MIRTO        Tanto me queres tu!

 

CLEON                                    Imensamente. Anseio

                Por sentir, bela Mirto, arfar teu brando seio,

                Bater teu coração, tremer teu lábio puro,

                Todo viver de ti.

 

MIRTO                                    Confia no futuro.

 

CLEON        Tão longe!

 

MIRTO                          Não, bem perto.

 

CLEON                                                       Ah! que dizes?

 

MIRTO                                                                         Adeus!

(Passa junto da mesa da direita e vê o rolo de papiro)

                Curiosa que sou!

 

 CLEON                                   São versos.

 

 MIRTO                                                      Versos teus?

 

(LÍSIAS aparece ao fundo)

 

CLEON        De Anacreonte, o velho, o amável, o divino.

 

MIRTO        A musa é toda iônia, e o estro é peregrino.

 

(Abre o papiro e lê)

 

                "Fez-se Niobe em pedra e Filomena em pássaro.

                                            Assim

                Folgaria eu também me transformasse Júpiter

                                            A mim.

                Quisera ser o espelho em que o teu rosto mágico

                                            Sorri;

                A túnica feliz que sempre se está próxima

                                            De ti;

                O banho de cristal que esse teu corpo cândido

                                            Contém;

                O aroma de teu uso e donde eflúvios mágicos

                                            Provém;

                Depois esse listão que de teu seio túrgido

                                            Faz dois;

                Depois do teu pescoço o rosicler de pérolas;

                                            Depois...

                Depois, ao ver-ter assim, a única e tão sem êmulas

                                            Qual és,

                Até quisera ser teu calçado, e pisassem-me

                                            Teus pés". [4]

                Que magníficos são!

 

CLEON                                    Minha alma assim te fala.

 

MIRTO        Atendendo ao poeta eu pensava escutá-la.

 

CLEON        Eco do meu sentir foi o velho amador;

                Tais os desejos são do meu profundo amor.

                Sim, eu quisera ser tudo isto, — o espelho, o banho,

                O calçado, o colar... Desejo acaso estranho,

                Louca ambição talvez de peta exaltado...

 

MIRTO        Tanto sentes por mim?

 

CENA VI

 

CLEON, MIRTO, LÍSIAS

 

LÍSIAS       (entrando)

                                   Amor, nunca sonhado.

                Se a musa dele és tu!

 

CLEON                                    Lísias!

 

MIRTO                                             Ouviste?

 

LÍSIAS                                                                Ouvi.

                Versos que Anacreonte houvera feito a ti,

                Se vivesses no templo em que, pulsando a lira,

                Estas odes compôs que a velha Grécia admira.

 

                (A CLEON)

 

                Quer falar-te um sujeito, um Clínias, um colega,

                Ex-mercador, como eu.

 

MIRTO                                             Ai, que importuno!

      

 

LÍSIAS                                                                         Alega

 Que não pode esperar, que isto não pode ser,

                Que um processo... Afinal não no pude entender.

                Pode ser que contigo o homem se acomode.

                Prometeste talvez compor-lhe alguma ode?

 

CLEON        Não. Adeus, bela Mirto; espera-me um instante.

 

MIRTO        Não tardes!

 

LÍSIAS       (à parte)

                                   Indiscreta!

 

CLEON                                             Espera.

 

LÍSIAS                                                                Petulante!

 

CENA VII

 

MIRTO, LÍSIAS

 

 

MIRTO        Sou curiosa. Quem é Clínias, ex-mercador?

                Amigo dele?

 

LÍSIAS                          Mais do que isso; é um credor.

 

MIRTO        Ah!

 

LÍSIAS                 Que belo rapaz! que alma fogosa e pura,

                Bem digna de aspirar-te um hausto de ventura!

                Queira o céu pôr-lhe termo à profunda agonia,

                Surja enfim para ele o sol de um novo dia.

                Merece-o. Mas vê lá se há destino pior;

                Que o alado Mercúrio obstar o alado Amor.

                Com beijos não se paga a pompa do vestido,

                O espetáculo e a mesa; e se o gentil Cupido

                Gosta de ouvir canções, o outro não vai com elas;

                Vale uma dracma só vinte odezinhas belas.

                Um poema não compra um simples borzeguim.

                Versos! são bons de ler, mais nada; eu penso assim.

 

MIRTO        Pensas mal! A poesia é sempre um dom celeste;

                Quando o gênio o possui quem há que o não requeste?

                Hermes, com ser o deus dos graves mercadores,

                Tocou lira também.

 

LÍSIAS                                    Já sei que estás de amores.

 

MIRTO        Que esperança! Bem vês que eu já não posso amar.

 

LÍSIAS       Perdeste o coração?

 

MIRTO                                    Sim; perdi-o no mar.

 

LÍSIAS       Pesquemo-lo; talvez essa pérola fina

                Venha ornar-me a existência agourada e mofina.

 

MIRTO        Mofina?

 

LÍSIAS                 Pois então? Enfaram-me estas belas

                Da terra samiana; assaz vivi por elas.

                Outras desejo amar, filhas do azul Egeu.

                Varia de feições o Amor, como Proteu.

 

MIRTO        Seu caráter melhor foi sempre o ser constante.

 

LÍSIAS       Serei menos fiel, não sou menos amante.

                Cada beleza em si toda a paixão resume.

                Pouco me importa a flor; importa-me o perfume.

 

MIRTO        Mas quem quer o perfume afaga um pouco a flor;

                Nem fere o objeto amado a mão que implora o amor.

 

LÍSIAS       Ofendo-te com isto? Esquece a minha ofensa.

 

MIRTO        Já a esqueci; passou.

 

LÍSIAS                                    Quem fala como pensa

                Arrisca-se a perder ou por sobra ou por míngua.

                Eu confesso o meu mal; não sei tentear a língua.

                Pois que me perdoaste, escuta-me. Tu tens

                A graça das feições, o sumo bem dos bens;

                Moça, trazes na fronte o doce beijo de Hebe;

                Como um filtro de amor que, sem sentir, se bebe,

                De teus olhos destila a eterna juventude;

                De teus olhos que um deus, por lhes dar mais virtude,

                Fez azuis como o céu, profundos como o mar.

                Quem tais dotes reúne, ó Mirto, deve amar.

 

MIRTO        Falas como um poeta, e zombas da poesia!

 

LÍSIAS       Eu, poeta? jamais.

 

MIRTO                                    A tua fantasia

                Respirou certamente o ar do monte Himeto.

                Tem a expressão tão doce!

 

LÍSIAS                                             É a expressão do afeto.

                Sou em coisas de Apolo um simples amador.

                A minha grande musa é Vênus, mãe de Amor.

                No mais não aprendi (os fados meus adversos

                Vedaram-mo!) a cantar bons e sentidos versos.

                Cleon, esse é que sabe acender tantas almas,

                Conquistar de um só lance os corações e as palmas.

 

MIRTO        Conquistar, oh! que não!

 

LÍSIAS                                             Mas agradar?

 

MIRTO                                                                Talvez.

 

LÍSIAS       Isso mesmo; é já muito. O que o poeta fez

                Fá-lo-ei jamais? Contudo, inda tentá-lo quero;

                Se não me inspira a musa, alma filha de Homero,

                Inspira-me o desejo, a musa que delira,

                E o seu canto concerta aos sons da eterna lira.

 

MIRTO        Também desejas ser alguma coisa?

 

LÍSIAS                                                      Não;

                Eu caso o meu amor às regras da razão.

                Cleon quisera ser o espelho em que teu rosto

                Sorri; eu, bela Mirto, eu tenho melhor gosto.

                Ser espelho! ser banho! e túnica! Tolice!

                Estéril ambição! loucura! criancice!

                Por Vênus! sei melhor o que a mim me convém.

                Homem sisudo e grave outros desejos tem.

                Fiz, a este respeito, aprofundado estudo;

                Eu não quero ser nada; eu quero dar-te tudo.

                Escolhe o mais perfeito espelho do aço fino,

                A túnica melhor de pano tarentino,

                Vasos de óleo, um colar de pérolas, — enfim

                Quanto enfeita uma dama aceitá-lo-ás de mim:

                Brincos que vão ornar-te a orelha graciosa;

                Para os dedos o anel de pedra preciosa,

                A tua fronte pede áureo, rico anadema;

                Tê-lo-ás, divina Mirto. É este o meu poema.

 

MIRTO        É lindo!                  

 

Queres tu, outras estrofes mais?

LÍSIAS       Dar-tas-ei quais as teve a celebrada Laís.

                Casa, rico jardim, servas de toda a parte;

                E estátuas e painéis, e quantas obras d'arte

                Podem servir de ornato ao templo da beleza,

                Tudo haverás de mim. Nem gosto nem riqueza

                Te há de faltar, mimosa, e só quero um penhor.

                Quero... quero-te a ti.

 

MIRTO                                             Pois quê! já quer a flor,

                Quem desdenhando a flor, só lhe pede o perfume?

 

LÍSIAS       Esqueceste o perdão?

 

MIRTO                                    Ficou-me este azedume.

 

LÍSIAS       Vênus pode apagá-lo.

 

MIRTO                                    Eu sei! creio e não creio.

 

LÍSIAS       Hesitar é ceder; agrada-me o receio.

                Em assunto de amor vontade que flutua

                Estás prestes a entregar-se. Entregas-te?

 

MIRTO                                                                Sou tua!

 

CENA VIII

 

LÍSIAS, MIRTO, CLEON

 

CLEON        Demorei-me demais?

 

LÍSIAS                                    Apenas o bastante

                Para que fosse ouvido um coração amante.

                A Lesbiana é minha.

 

CLEON                                    És dele, Mirto!

 

MIRTO                                                                Sim.

                Eu ainda hesitava, ele falou por mim.

 

CLEON        Quantos amores tens, filha do mal?

 

LÍSIAS                                                      Pressinto

                Uma lamentação inútil. “A Corinto

                Não vai quem quer”, lá diz aquele velho adágio.

                Navegavas sem leme; era certo o naufrágio.

                Não me viste sulcar as mesmas águas?

 

CLEON                                                                Vi,

                Mas contava com ela, e confiava em ti.

                Mais duas ilusões! Que importa? Inda são poucas;

                Desfaçam-se uma a uma estas quimeras loucas.

                Ó árvore bendita, ó minha juventude,

                Vão-te as flores caindo ao vento áspero e rude!

                Não vos maldigo, não; eu não maldigo o mar

                Quando a nave soçobra, o erro é confiar.

                Adeus, formosa Mirto; adeus, Lísias; não quero

                Perturbar vosso amor, eu que já nada espero;

                Eu que vou arrancar as profundas raízes

                Desta paixão funesta; adeus, sede felizes!

 

LÍSIAS       Adeus! Saudemos nós a Vênus e a Lieu.

 

AMBOS       Io Poean! ó Baco! Himeneu! Himeneu!

 

 

 

PÁLIDA ELVIRA

 

A Francisco Paz

 

Ulysse, jeté sur les rives d'Ithaque, ne les

reconnaît pas et pleure sa patrie. Ainsi l'homme

dans le bonheur possédé ne reconnait pas son

rêve et soupire.

 

DANIEL STERN

 

I

 

Quando, leitora amiga, no ocidente

Surge a tarde esmaiada e pensativa;

E entre a verde folhagem recendente

Lânguida geme viração lasciva;

E já das tênues sombras do oriente

Vem apontando a noite, e a casta diva

Subindo lentamente pelo espaço,

Do céu, da terra observa o estreito abraço;

 

II

 

Nessa hora de amor e de tristeza,

Se acaso não amaste e acaso esperas

Ver coroar-te a juvenil beleza

Casto sonho das tuas primaveras;

Não sentes escapar tua alma acesa

Para voar às lúcidas esferas?

Não sentes nessa mágoa e nesse enleio

Vir morrer-te uma lágrima no seio?

 

III

 

Sente-lo? Então entenderás, Elvira,

Que assentada à janela, erguendo o rosto,

O vôo solta à alma que delira

E mergulha no azul de um céu de agosto;

Entenderás então por que suspira,

Vítima já de um íntimo desgosto,

A meiga virgem, pálida e calada,

Sonhadora, ansiosa e namorada.

 

IV

 

Mansão de riso e paz, mansão de amores

Era o vale. Espalhava a natureza,

Com dadivosa mão, palmas e flores

De agreste aroma e virginal beleza;

Bosques sombrios de imortais verdores,

Asilo próprio à inspiração acesa,

Vale de amor, aberto às almas ternas

Neste vale de lágrimas eternas.

 

V

 

A casa, junto à encosta de um outeiro

Alva pomba entre folhas parecia;

Quando vinha a manhã, o olhar primeiro

Ia beijar-lhe a verde gelosia;

Mais tarde a fresca sombra de um coqueiro

Do sol quente a janela protegia;

Pouco distante, abrindo o solo adusto,

Um fio d’água murmurava a custo.

 

VI

 

Era uma jóia a alcova em que sonhava

Elvira, alma de amor. Tapete fino

De apurado lavor o chão forrava.

De um lado oval espelho cristalino

Pendia. Ao fundo, à sombra, se ocultava

Elegante, engraçado, pequenino

Leito em que, repousando a face bela,

De amor sonhava a pálida donzela.

 

VII

 

Não me censure o crítico exigente

O ser pálida a moça é meu costume

Obedecer à lei de toda a gente

Que uma obra compõe de algum volume.

Ora, no nosso caso, é lei vigente

Que um descorado rosto o amor resume.

Não tinha Miss Smolen outras cores;

Não as possui quem sonha com amores.

 

VIII

 

Sobre uma mesa havia um livro aberto;

Lamartine, o cantor aéreo e vago,

Que enche de amor um coração deserto;

Tinha-o lido; era a página do Lago.

Amava-o; tinha-o sempre ali bem perto,

Era-lhe o anjo bom, o deus, o orago;

Chorava aos cantos da divina lira...

É que o grande poeta amava Elvira!

 

IX

 

Elvira! o mesmo nome! A moça os lia,

Com lágrimas de amor, os versos santos,

Aquela eterna e lânguida harmonia

Formada com suspiros e com prantos;

Quando escutava a musa da elegia

Cantar de Elvira os mágicos encantos,

Entrava-lhe a voar a alma inquieta,

E com o amor sonhava de um poeta.

 

X

 

Ai, o amor de um poeta! amor subido!

Indelével, puríssimo, exaltado,

Amor eternamente convencido,

Que vai além de um túmulo fechado,

E que através dos séculos ouvido,

O nome leva do objeto amado,

Que faz de Laura um culto, e tem por sorte

Negra foice quebrar nas mãos da morte.

 

Xl

 

Fosse eu moça e bonita... Neste lance

Se o meu leitor é já homem sisudo,

Fecha tranqüilamente o meu romance,

Que não serve a recreio nem a estudo;

Não entendendo a força nem o alcance

De semelhante amor, condena tudo;

Abre um volume sério, farto e enorme,

Algumas folhas lê, boceja... e dorme.

 

XII

 

Nada perdes, leitor, nem perdem nada

As esquecidas musas; pouco importa

Que tu, vulgar matéria condenada,

Aches que um tal amor é letra morta.

Podes, cedendo à opinião honrada,

Fechar à minha Elvira a esquiva porta.

Almas de prosa chã, quem vos daria

Conhecer todo o amor que há na poesia?

 

XIII

 

Ora, o tio de Elvira, o velho Antero,

Erudito e filósofo profundo,

Que sabia de cor o velho Homero,

E compunha os anais do Novo Mundo;

Que escrevera uma vida de Severo,

Obra de grande tomo e de alto fundo;

Que resumia em si a Grécia e Lácio,

E num salão falava como Horácio;

 

XIV

 

Disse uma noite à pálida sobrinha:

“Elvira, sonhas tanto! devaneias!

Que andas a procurar, querida minha?

Que ambições, que desejos ou que idéias

Fazem gemer tua alma inocentinha?

De que esperança vã, meu anjo, anseias?

Teu coração de ardente amor suspira;

“Que tens?" — "Eu? nada", respondia Elvira.

 

XV

 

“Alguma coisa tens!” tornava o tio;

Por que olhas tu as nuvens do poente,

Vertendo às vezes lágrimas a fio,

Magoada expressão d'alma doente?

Outras vezes olhando a água do rio,

Deixas correr o espírito indolente

Como uma flor que ao vento ali tombara,

E a onda murmurando arrebatara.

 

XVI

 

 Latet anguis in herba... Neste instante

Entrou a tempo o chá... Perdão, leitores,

Eu bem sei que é preceito dominante

Não misturar comidas com amores;

Mas eu não vi, nem sei se algum amante

Vive de orvalho ou pétalas de flores;

Namorados estômagos consomem;

Comem Romeus, e Julietas comem.

 

XVII

 

Entrou a tempo o chá, e foi servi-lo,

Sem responder, a moça interrogada,

Cum ar tão soberano e tão tranqüilo

Que o velho emudeceu. Ceia acabada,

Fez o escritor o costumado quilo,

Mas um quilo de espécie pouco usada,

Que consistia em ler um livro velho;

Nessa noite acertou ser o Evangelho.

 

XVIII

 

Abrira em São Mateus, naquele passo

Em que o filho de Deus diz que a açucena

Não labora nem fia, e o tempo escasso

Vive, coo ar e o sol, sem dor nem pena;

Leu e estendendo o já trêmulo braço

À triste, à melancólica pequena,

Apontou-lhe a passagem da Escritura

Onde lera lição tão reta e pura.

 

XIX

 

“Vês? diz o velho, escusas de cansar-te;

Deixa em paz teu espírito, criança:

Se existe um coração que deva amar-te,

Há de vir; vive só dessa esperança.

As venturas do amor um deus reparte;

Queres tê-las? põe nele a confiança.

Não persigas com súplicas a sorte;

Tudo se espera; até se espera a morte!

 

XX

 

A doutrina da vida é esta: espera,

Confia, e colherás a ansiada palma;

Oxalá que eu te apague essa quimera.

Lá diz o bom Demófilo que à alma,

Como traz a andorinha a primavera,

A palavra do sábio traz a calma.

O sábio aqui sou eu. Ris-te, pequena?

Pois melhor; quero ver-te uma açucena!"

 

XXI

 

Falava aquele velho como fala

Sobre cores um cego de nascença.

Pear a juventude! Condená-la

Ao sono da ambição vivaz e intensa!

Coas leves asas da esperança orná-la

E não querer que rompa a esfera imensa!

Não consentir que esta manhã de amores

Encha com frescas lágrimas as flores!

 

XXII

 

Mal o velho acabava e justamente

Não rija porta ouviu-se urna pancada.

Quem seria? Uma serva diligente,

Travando de uma luz, desceu a escada.

Pouco depois rangia brandamente

A chave, e a porta aberta dava entrada

A um rapaz embuçado que trazia

Uma carta, e ao doutor falar pedia.

 

XXIII

 

Entrou na sala, e lento, e gracioso,

Descobriu-se e atirou a capa a um lado;

Era um rosto poético e viçoso

Por soberbos cabelos coroado;

Grave sem gesto algum pretensioso,

Elegante sem ares de enfeitado;

Nos lábios frescos um sorriso amigo,

Os olhos negros e o perfil antigo.

 

XXIV

 

Demais, era poeta. Era-o. Trazia

Naquele olhar não sei que luz estranha

Que indicava um aluno da poesia,

Um morador da clássica montanha,

Um cidadão da terra da harmonia,

Da terra que eu chamei nossa Alemanha,

Nuns versos que hei de dar um dia a lume,

Ou nalguma gazeta, ou num volume.

 

XXV

 

Um poeta! e de noite! e de capote!

Que é isso, amigo autor? Leitor amigo,

Imaginas que estás num camarote

Vendo passar em cena um drama antigo.

Sem lança não conheço D. Quixote,

Sem espada é apócrifo um Rodrigo;

Herói que às regras clássicas escapa,

Pode não ser herói, mas traz a capa.

 

XXVI

 

Heitor (era o seu nome) ao velho entrega

Uma carta lacrada; vem do Norte.

Escreve-lhe um filósofo colega

Já quase a entrar no tálamo da morte.

Recomenda-lhe o filho, e lembra, e alega

A provada amizade, o esteio forte,

Com que outrora, acudindo-lhe nos transes,

Salvou-lhe o nome de terríveis lances.

 

XXVII

 

Dizia a carta mais: "Crime ou virtude,

É meu filho poeta; e corre fama

Que já faz honra à nossa juventude

Coa viva inspiração de etérea chama;

Diz ele que, se o gênio não o ilude,

Camões seria se encontrasse um Gama.

Deus o fade; eu perdôo-lhe tal sestro;

Guia-lhe os passos, cuida-lhe do estro.''

 

XXVIII

 

Lida a carta, o filósofo erudito

Abraça o moço e diz em tom pausado:

"Um sonhador do azul e do infinito!

É hóspede do céu, hóspede amado.

Um bom poeta é hoje quase um mito.

Se o talento que tem é já provado,

Conte coo meu exemplo e o meu conselho;

Boa lição é sempre a voz de um velho."

 

XXIX

 

E trava-lhe da mão, e brandamente

Leva-o junto d'Elvira. A moça estava

Encostada à janela, e a esquiva mente

Pela extensão dos ares lhe vagava.

Voltou-se distraída, e de repente

Mal nos olhos de Heitor o olhar fitava,

Sentiu... Inútil fora relatá-lo;

Julgue-o quem não puder experimentá-lo.

 

XXX

 

Ó santa e pura luz do olhar primeiro!

Elo de amor que duas almas liga!

Raio de sol que rompe o nevoeiro

E casa a flor à flor! palavra amiga

Que, trocada um momento passageiro,

Lembrar parece uma existência antiga!

Língua, filha do céu, doce eloqüência

Dos melhores momentos da existência!

 

XXXI

 

Entra a leitora numa sala cheia;

Vai isenta, vai livre de cuidado:

Na cabeça gentil nenhuma idéia,

Nenhum amor no coração fechado.

Livre como a andorinha que volteia

E corre loucamente o ar azulado.

Venham dois olhos, dois, que a alma buscava.

Eras senhora? ficarás escrava!

 

XXXII

 

Cum só olhar escravos ele e ela

Já lhes pulsa mais forte o sangue e a vida;

Rápida corre aquela noite, aquela

Para as castas venturas escolhida;

Assoma já nos lábios da donzela

Lampejo de alegria esvaecida.

Foi milagre de amor, prodígio santo.

Quem mais fizera? Quem fizera tanto?

 

XXXIII

 

Preparara-se ao moço um aposento.

Oh! reverso da antiga desventura!

Tê-lo perto de si! viver do alento

De um poeta, alma lânguida, alma pura!

Dá-lhe, ó fonte do casto sentimento,

Águas santas, batismo de ventura!

Enquanto o velho, amigo de outra fonte,

Vai mergulhar-se em pleno Xenofonte.

 

XXXIV

 

Devo agora contar, dia por dia,

O romance dos dois? Inútil fora;

A história é sempre a mesma; não varia

A paixão de um rapaz e uma senhora.

Vivem ambos do olhar que se extasia

E conversa coa alma sonhadora;

Na mesma luz de amor os dois se inflamam,

Ou, como diz Filinto: "Amados, amam".

 

XXXV

 

Todavia a leitora curiosa

Talvez queira saber de um incidente;

A confissão dos dois; — cena espinhosa

Quando a paixão domina a alma que sente.

Em regra, confissão franca e verbosa

Revela um coração independente;

A paz interior tudo confia,

Mas o amor, esse hesita e balbucia.

 

XXXVI

 

O amor faz monossílabos; não gasta

O tempo com análises compridas;

Nem é próprio de boca amante e casta

Um chuveiro de frases estendidas;

Um volver d'olhos lânguido nos basta

A conhecer as chamas comprimidas;

Coração que discorre e faz estilo,

Tem as chaves por dentro e está tranqüilo.

 

XXXVII

 

Deu-se o caso uma tarde em que chovia,

Os dois estavam na varanda aberta

A chuva peneirava, e além cobria

Cinzento véu o ocaso; a tarde incerta

Já nos braços a noite recebia,

Como amorosa mãe que a filha aperta

Por enxugar-lhe os prantos magoados.

Eram ambos imóveis e calados.

 

XXXVIII

 

Juntos, ao parapeito da varanda,

Viam cair da chuva as gotas finas,

Sentindo a viração fria, mas branda,

Que balançava as frouxas casuarinas.

Raras, ao longe, de uma e de outra banda,

Pelas do céu tristíssimas campinas,

Via correr da tempestade as aves

Negras, serenas, lúgubres e graves.

 

XXXIX

 

De quando em quando vinha uma rajada

Borrifar e agitar a Elvira as tranças.

Como se fora a brisa perfumada

Que à palmeira sacode as tênues franças.

A fronte gentilíssima e engraçada

Sacudia coa chuva as más lembranças;

E ao passo que chorava a tarde escura

Ria-se nela a aurora da ventura.

 

XL

 

"Que triste a tarde vai! que véu de morte

Cobrir parece a terra! (o moço exclama).

Reprodução fiel da minha sorte,

“Sombra e choro.” — “Por quê? pergunta a dama;

Diz que teve dos céus uma alma forte..."

"É forte o cedro e não resiste à chama;

Leu versos meus em que zombei do fado?

Ilusões de poeta malogrado!

 

XLI

 

Somos todos assim. É nossa glória

Contra o destino opor alma de ferro;

Desafiar o mal, eis nossa história,

E o tremendo duelo é sempre um erro.

Custa-nos caro uma falaz vitória

Que nem consola as mágoas do desterro,

O desterro, — esta vida obscura e rude

Que a dor enfeita e as vítimas ilude.

 

XLII

 

Contra esse mal tremendo que devora

A seiva toda à nossa mocidade,

Que remédio haveríamos, senhora,

Senão versos de afronta e liberdade?

No entanto, bastaria acaso um’hora,

Uma só, mas de amor, mas de piedade,

Para trocar por séculos de vida

Estes de dor acerba e envilecida.”

 

XLIII

 

Al não disse, e, fitando olhos ardentes

Na moça, que de enleio enrubescia,

Com discursos mais fortes e eloqüentes

Na exposição do caso prosseguia;

A pouco e pouco as mãos inteligentes

Travaram-se; e não sei se conviria

Acrescentar que um ósculo... Risquemos,

Não é bom mencionar estes extremos.

 

XLIV

 

Duas sombrias nuvens afastando,

Tênue raio de sol rompera os ares,

E, no amoroso grupo desmaiando,

Testemunhou-lhe as núpcias singulares.

A nesga azul do ocaso contemplando,

Sentiram ambos irem-lhes os pesares,

Como noturnas aves agoureiras

Que à luz fogem medrosas e ligeiras.

 

XLV

 

Tinha mágoas o moço? A causa delas?

Nenhuma causa; fantasia apenas;

O eterno devanear das almas belas,

Quando as dominam férvidas camenas;

Uma ambição de conquistar estrelas,

Como se colhem lúcidas falenas;

Um desejo de entrar na eterna lida,

Um querer mais do que nos cede a vida.

 

XLVI

 

Com amores sonhava, ideal formado

De celestes e eternos esplendores,

A ternura de um anjo destinado

A encher-lhe a vida de perpétuas flores.

Tinha-o, enfim, qual fora antes criado

Nos seus dias de mágoas e amargores;

Madrugavam-lhe n'alma a luz e o riso;

Estava à porta enfim do paraíso.

 

XLVII

 

Nessa noite, o poeta namorado

Não conseguiu dormir. A alma fugira

Para ir velar o doce objeto amado,

Por quem, nas ânsias da paixão, suspira;

E é provável que, achando o exemplo dado,

Ao pé de Heitor viesse a alma de Elvira;

De maneira que os dois, de si ausentes,

Lá se achavam mais vivos e presentes.

 

XLVIII

 

Ao romper da manhã, coo sol ardente,

Brisa fresca, entre as folhas sussurrando,

O não dormido vate acorda, e a mente

Lhe foi dos vagos sonhos arrancando.

Heitor contempla o vale resplendente

A flor abrindo, o pássaro cantando;

E a terra que entre risos acordava,

Ao sol do estio as roupas enxugava.

 

XLIX

 

Tudo então lhe sorria. A natureza,

As musas, o futuro, o amor e a vida;

Quanto sonhara aquela mente acesa

Dera-lhe a sorte, enfim, compadecida.

Um paraíso, uma gentil beleza,

E a ternura castíssima e vencida

De um coração criado para amores,

Que exala afetos como aroma as flores.

 

L

 

E ela? Se conheceste em tua vida,

Leitora, o mal do amor, delírio santo,

Dor que eleva e conforta a alma abatida,

Embriaguez do céu, divino encanto,

Se a tua face ardente e enrubescida

Palejou com suspiros e com prantos,

Se ardeste enfim, naquela intensa chama,

Entenderás o amor de ingênua dama.

 

LI

 

Repara que eu não falo desse enleio

De uma noite de baile ou de palestra;

Amor que mal agita a flor do seio,

E ao chá termina e acaba com a orquestra;

Não me refiro ao simples galanteio

Em que cada menina é velha mestra,

Avesso ao sacrifício, à dor e ao choro;

Falo do amor, não falo do namoro.

 

LII

 

Éden de amor, ó solidão fechada,

Casto asilo a que o sol dos novos dias

Vai mandar, como a furto, a luz coada

Pelas frestas das verdes gelosias,

Guarda-os ambos; conserva-os recatada.

Almas feitas de amor e de harmonias,

Tecei, tecei as vívidas capelas,

Deixai correr sem susto as horas belas.

 

LIII

 

Cá fora o mundo insípido e profano

Não dá, nem pode dar o enleio puro

Das almas novas, nem o doce engano

Não busqueis penetrar neste oceano

Com que se esquecem males do futuro.

Em que se agita o temporal escuro.

Por fugir ao naufrágio e ao sofrimento,

Tendes uma enseada, — o casamento.

 

LIV

 

Resumamos, leitora, a narrativa.

Tanta estrofe a cantar etéreas chamas

Pede compensação, musa insensiva,

Que fatigais sem pena o ouvido às damas.

Demais, é regra certa e positiva

Que muitas vezes, as maiores famas

Perde-as uma ambição de tagarela;

Musa, aprende a lição; musa, cautela!

 

LV

 

Meses depois da cena relatada

Nas estrofes, a folhas, — o poeta

Ouviu do velho Antero uma estudada

Oração cicerônica e seleta;

A conclusão da arenga preparada

Era mais agradável que discreta.

Dizia o velho erguendo olhos serenos:

"Pois que se adoram, casem-se, pequenos!"

 

LVI

 

Lágrima santa, lágrima de gosto

Vertem olhos de Elvira; e um riso aberto

Veio inundar-lhe de prazer o rosto

Como uma flor que abrisse no deserto.

Se iam já longe as sombras do desgosto;

Inda até li era o futuro incerto;

Fez-lhe certo o ancião; e a moça grata

Beija a mão que o futuro lhe resgata.

 

LVII

 

Correm os banhos, tiram-se dispensas,

Vai-se buscar um padre ao povoado;

Prepara-se o enxoval e outras pertenças

Necessárias agora ao novo estado.

Notam-se até algumas diferenças

No modo de viver do velho honrado,

Que sacrifica à noiva e aos deuses lares

Um estudo dos clássicos jantares.

 

LVIII

 

“— Onde vais tu? À serra! — Vou contigo.

— Não, não venhas meu anjo, é longa a estrada.

Se cansares? — Sou leve, meu amigo;

Descerei nos teus ombros carregada.

Vou compor encostado ao cedro antigo

Canto de núpcias. Seguirei calada;

Junto de ti, ter-me-ás mais em lembrança;

Musa serei sem perturbar. — Criança!"

 

LIX

 

Brandamente repele Heitor a Elvira;

A moça fica; o poeta lentamente

Sobe a montanha. A noiva repetira

O primeiro pedido inutilmente.

Olha-o de longe, e tímida suspira.

Vinha a tarde caindo frouxamente,

Não triste, mas risonha e fresca e bela,

Como a vida da pálida donzela.

 

LX

 

Chegando, enfim, à c'roa da colina,

Viram olhos de Heitor o mar ao largo,

E o sol, que despe a veste purpurina,

Para dormir no eterno leito amargo.

Surge das águas, pálida e divina,

Essa que tem por deleitoso encargo

Velar amantes, proteger amores,

Lua, musa dos cândidos palores.

 

LXI

 

Respira Heitor; é livre. O casamento?

Foi sonho que passou, fugaz idéia

Que não pôde durar mais que um momento,

Outra ambição a alma lhe incendeia.

Dissipada a ilusão, o pensamento

Novo quadro a seus olhos patenteia,

Não lhe basta aos desejos de sua alma

A enseada da vida estreita e calma.

 

LXII

 

Aspira ao largo; pulsam-lhe no peito

Uns ímpetos de vida; outro horizonte,

Túmidas vagas, temporal desfeito,

Quer com eles lutar fronte por fronte.

Deixa o tranqüilo amor, casto e perfeito,

Pelos bródios de Vênus de Amatonte;

A existência entre fores esquecida

Pelos rumores de mais ampla vida.

 

LXIII

 

Nas mãos da noite desmaiara a tarde;

Descem ao vale as sombras vergonhosas;

Noite que o céu, por mofa ou por alarde,

Torna propícia às almas venturosas.

O derradeiro olhar frio e covarde

E umas não sei que estrofes lamentosas

Solta o poeta, enquanto a triste Elvira,

Viúva antes de noiva, em vão suspira!

 

LXIV

 

Transpõe o mar Heitor, transpõe montanhas;

Tu, curiosidade, o ingrato levas

A ir ver o sol das regiões estranhas,

A ir ver o amor das peregrinas Evas.

Vai, em troco de palmas e façanhas,

Viver na morte, bracejar nas trevas;

Fazer do amor, que é livro aos homens dado,

Copioso almanaque namorado.

 

LXV

 

Inscreve nele a moça de Sevilha,

Longas festas e noites espanholas,

A indiscreta e diabólica mantilha

Que a fronte cinge a amantes e a carolas.

Quantos encontra corações perfilha,

Faz da bolsa e do amor largas esmolas;

Esquece o antigo amor e a antiga musa

Entre os beijos da lépida andaluza.

 

LXVI

 

Canta no seio túrgido e macio

Da fogosa, indolente italiana,

E dorme junto ao laranjal sombrio

Ao som de uma canção napolitana.

Dão-lhe, para os serões do ardente estio,

Asti, os vinhos, mulheres, a Toscana.

Roma adora, embriaga-se em Veneza,

E ama a arte nos braços da beleza.

 

LXVII

 

Vê Londres, vê Paris, terra das ceias,

Feira do amor a toda a bolsa aberta;

No mesmo laço, as belas como as feias.

Por capricho ou razão, iguais aperta;

A idade não pergunta às taças cheias;

Só pede o vinho que o prazer desperta;

Adora as outoniças, como as novas,

Torna-se herói de rua e herói de alcovas.

 

LXVIII

 

Versos, quando os compõe, celebram antes

O alegre vício que a virtude austera;

Canta os beijos e as noites delirantes,

O estéril gozo que a volúpia gera;

Troca a ilusão que o seduzia dantes

Por maior e tristíssima quimera;

Ave do céu, entre ósculos criada,

Espalha as plumas brancas pela estrada.

 

LXIX

 

Um dia, enfim, cansado e aborrecido,

Acorda Heitor; e, olhando em roda ao largo,

Vê um deserto, e do prazer perdido

Resta-lhe unicamente o gozo amargo;

Não achou o ideal apetecido

No longo e profundíssimo letargo;

A vida exausta em festas e esplendores,

Se algumas tinha, eram já murchas flores.

 

LXX

 

Ora, uma noite, costeando o Reno,

Ao luar melancólico, — buscava

Aquele gozo simples, doce, ameno,

Que à vida toda outrora lhe bastava;

Voz remota, cortando o ar sereno,

Em derredor os ecos acordava;

Voz aldeã que o largo espaço enchia,

E uma canção de Schiller repetia.

 

LXXI

 

"A glória! diz Heitor, a glória é vida!

Por que busquei nos gozos de outra sorte

Esta felicidade apetecida,

Esta ressurreição que anula a morte?

Ó ilusão fantástica e perdida!

Ó mal gasto, ardentíssimo transporte!

Musa, restaura as apagadas tintas!

Revivei, revivei, chamas extintas!"

 

LXXII

 

A glória? Tarde vens, pobre exilado!

A glória pede as ilusões viçosas,

Estro em flor, coração eletrizado,

Mãos que possam colher etéreas rosas;

Mas tu, filho do ócio e do pecado,

Tu que perdeste as forças portentosas

Na agitação que os ânimos abate,

Queres colher a palma do combate?

 

LXXIII

 

Chamas em vão as musas; deslembradas,

À tua voz os seus ouvidos cerram;

E nas páginas virgens, preparadas,

Pobre poeta, em vão teus olhos erram;

Nega-se a inspiração; nas despregadas

Cordas da velha lira, os sons que encerram

Inertes dormem; teus cansados dedos

Correm debalde; esquecem-lhe os segredos.

 

LXXIV

 

Ah! se a taça do amor e dos prazeres

Já não guarda licor que te embriague;

Se nem musas nem lânguidas mulheres

Têm coração que o teu desejo apague;

Busca a ciência, estuda a lei dos seres,

Que a mão divina tua dor esmague;

Entra em ti, vê o que és, observa em roda,

Escuta e palpa a natureza toda.

 

LXXV

 

Livros compra, um filósofo procura;

Revolve a criação, perscruta a vida;

Vê se espancas a longa noite escura

Em que a estéril razão andou metida;

Talvez aches a palma da ventura

No campo das ciências escondida.

Que a tua mente as ilusões esqueça:

Se o coração morreu, vive a cabeça!

 

LXXVI

 

Ora, por não brigar coos meus leitores,

Dos quais, conforme a curta ou longa vista,

Uns pertencem aos grupos novadores

Da fria comunhão materialista;

Outros, seguindo exemplo dos melhores,

Defendem a teoria idealista;

Outros, enfim fugindo armas extremas,

Vão curando por ambos os sistemas;

 

LXXVII

 

Direi que o nosso Heitor, após o estudo

Da natureza e suas harmonias,

(Opondo à consciência um forte escudo

Contra divagações e fantasias);

Depois de ter aprofundado tudo,

Planta, homem, estrelas, noites, dias,

Achou esta lição inesperada:

Veio a saber que não sabia nada.

 

LXXVIII

 

"Nada! exclama um filósofo amarelo

Pelas longas vigílias, afastando

Um livro que há de dar um dia ao prelo,

E em cujas folhas ia trabalhando.

Pois eu, doutor de borla e de capelo,

Eu que passo os meus dias estudando,

Hei de ler o que escreve pena ousada,

Que a ciência da vida acaba em nada?"

 

LXXIX

 

Aqui convinha intercalar com jeito,

Sem pretensão, nem pompa nem barulho,

Uma arrancada apóstrofe do peito

Contra as vãs pretensões do nosso orgulho;

Conviria mostrar em todo o efeito

Essa que é dos espíritos entulho,

Ciência vã, de magnas leis tão rica,

Que ignora tudo, e tudo ao mundo explica.

 

LXXX

 

Mas, urgindo acabar este romance,

Deixo em paz o filósofo, e procuro

Dizer ao vate o doloroso trance

Quando se achou mais peco e mais escuro.

Valera bem naquele triste lance

Um sorriso do céu plácido e puro,

Raio do sol eterno da verdade,

Que a vida aquece e alenta a humanidade.

 

LXXXI

 

Quê! nem ao menos na ciência havia

Fonte que a eterna sede lhe matasse?

Nem do amor, nem no seio da poesia

Podia nunca repousar a face;

Atrás desse fantasma correria

Sem que jamais as formas lhe palpasse?

Seria acaso a sua ingrata sorte

A ventura encontrar nas mãos da morte?

 

LXXII

 

A morte! Heitor pensara momentos

Nessa sombria porta aberta à vida;

Pálido arcanjo dos finais alentos

De alma que o céu deixou desiludida;

Mão que, fechando os olhos sonolentos,

Põe o termo fatal à humana lida;

Templo de glória ou região do medo,

Morte, quem te arrancara o teu segredo?

 

LXXXIII

 

Vazio, inútil, ermo de esperanças

Heitor buscava a noiva ignota e fria,

Que o envolvesse então nas longas tranças

E o conduzisse à câmara sombria,

Quando, em meio de pálidas lembranças,

Surgiu-lhe a idéia de um remoto dia,

Em que cingindo a cândida capela

Estava a pertencer-lhe uma donzela.

 

LXXXIV

 

Elvira! o casto amor! a esposa amante!

Rosa de uma estação, deixada ao vento!

Riso dos céus! estrela rutilante

Esquecida no azul do firmamento!

Ideal, meteoro de um instante!

Glória da vida, luz do pensamento!

A gentil, a formosa realidade!

Única dita e única verdade!

 

LXXXV

 

Ah! por que não ficou terno e tranqüilo

Da ingênua moça nos divinos braços?

Por que fugira ao casto e alegre asilo?

Por que rompera os mal formados laços?

Quem pudera jamais restituí-lo

Aos estreitos, fortíssimos abraços

Com que Elvira apertava enternecida

Esse que lhe era o amor, a alma e a vida?

 

LXXXVI

 

Será tempo? Quem sabe? Heitor hesita;

Tardio pejo lhe enrubesce a face;

Punge o remorso; o coração palpita,

Como se vida nova o reanimasse;

Tênue fogo, entre a cinza, arde e se agita...

Ah! se o passado ali ressuscitasse

Reviveriam ilusões viçosas,

E a gasta vida rebentara em rosas!

 

LXXXVII

 

Resolve Heitor voltar ao vale amigo,

Onde ficara a noiva abandonada.

Transpõe o mar, afronta-lhe o perigo,

E chega enfim à terra desejada.

Sobe o monte, contempla o cedro antigo,

Sente abrir-se-lhe n'alma a flor murchada

Das ilusões que um dia concebera;

Rosa extinta da sua primavera!

 

LXXXVIII

 

Era a hora em que os serros do oriente

Formar parecem luminosas urnas;

E abre o sol a pupila resplendente

Que às folhas sorve as lágrimas noturnas;

Frouxa brisa amorosa e diligente

Vai acordando as sombras taciturnas;

Surge nos braços dessa aurora estiva

A alegre natureza rediviva.

 

LXXXIX

 

Campa era o mar; o vale estreito berço;

De um lado a morte, do outro lado a vida,

Canto do céu resumo do universo,

Ninho para aquecer a ave abatida.

Inda nas sombras todo o vale imerso,

Não acordara à costumada lida;

Repousava no plácido abandono

Da paz tranqüila e do tranqüilo sono.

 

XC

 

Alto já ia o sol, quando descera

Heitor a oposta face da montanha;

Nada do que deixou desaparecera;

O mesmo rio as mesmas ervas banha.

A casa como então, garrida e austera,

Do sol nascente a viva luz apanha;

Iguais flores, nas plantas renascidas...

Tudo ali fala de perpétuas vidas!

 

XCI

 

Desce o poeta cauteloso e lento.

Olha de longe; um vulto ao sol erguia

A veneranda fronte, monumento

De grave e celestial melancolia.

Como sulco de um fundo pensamento

Larga ruga na testa abrir se via,

Era a ruína talvez de uma esperança...

Nos braços tinha uma gentil criança

 

XCII

 

Ria a criança; o velho contemplava

Aquela flor que às auras matutinas

O perfumoso cálix desbrochava

E entrava a abrir as pétalas divinas.

Triste sorriso o rosto lhe animava,

Como um raio de lua entre ruínas.

Alegria infantil, tristeza austera,

O inverno torvo, a alegre primavera!

 

XCIII

 

Desce o poeta, desce, e preso, e fito

Nos belos olhos do gentil infante,

Treme, comprime o peito... e após um grito

Corre alegre, exaltado e delirante.

Ah! se jamais as vozes do infinito

Podem sair de um coração amante,

Teve-as aquele... Lágrimas sentidas

Lhe inundaram as faces ressequidas!

 

XCIV

 

"Meu filho!" exclama, e súbito parando

Ante o grupo ajoelha o libertino;

Geme, soluça, em lágrimas beijando

As mãos do velho e as tranças do menino.

Ergue-se Antero, e frio e venerando,

Olhos no céu, exclama: "Que destino!

Murchar-lhe, viva, a rosa da ventura;

Morta, insultar-lhe a paz da sepultura!"

 

XCV

 

"Morta! — Sim! — Ah! senhor! se arrependido

Posso alcançar perdão, se com meus prantos

Posso apiedar-lhe o coração ferido

Por tanta mágoa e longos desencantos;

Se este infante, entre lágrimas nascido,

Pode influir-me os seus afetos santos...

É meu filho, não é? perdão lhe imploro!

Veja senhor! eu sofro, eu creio, eu choro!"

 

XCVI

 

Olha-o com frio orgulho o velho honrado;

Depois, fugindo àquela cena estranha,

Entra em casa. O poeta, acabrunhado,

Sobe outra vez a encosta da montanha;

Ao cimo chega, e desce o oposto lado

Que a vaga azul entre soluços banha.

Como fria ironia a tantas mágoas,

Batia o sol de chapa sobre as águas.

 

XCVII

 

Pouco tempo depois ouviu-se um grito,

Som de um corpo nas águas resvalado;

À flor das vagas veio um corpo aflito...

Depois... o sol tranqüilo e o mar calado.

Depois... Aqui termina o manuscrito,

Que ora em letra de forma é publicado,

Nestas estrofes pálidas e mansas,

Para te divertir de outras lembranças.

 

 

 

PRELÚDIO

 

...land of dreams.

... land of song.

 

LONGFELLOW

 

Lembra-te a ingênua moça, imagem da poesia,

Que a André Roswein amou, e que implorava um dia,

Como infalível cura à sua mágoa estranha,

Uma simples jornada às terras da Alemanha?

O poeta é assim: tem, para a dor e o tédio,

Um refúgio tranqüilo, um suave remédio:

És tu, casta poesia, ó terra pura e santa!

Quando a alma padece, a lira exorta e canta;

E a musa que, sorrindo, os seus bálsamos verte,

Cada lágrima nossa em pérola converte.

 

Longe daquele asilo, o espírito se abate;

A existência parece um frívolo combate,

Um eterno ansiar por bens que o tempo leva,

Flor que resvala ao mar, luz que se esvai na treva,

Pelejas sem ardor, vitórias sem conquista!

Mas, quando o nosso olhar os páramos avista,

Onde o peito respira o ar sereno e agreste,

Transforma-se o viver. Então, à voz celeste,

Acalma-se a tristeza; a dor se abranda e cala;

Canta a alma e suspira; o amor vem resgatá-la;

O amor, gota de luz do olhar de Deus caída,

Rosa branca do céu, perfume, alento, vida.

Palpita o coração já crente, já desperto;

Povoa-se num dia o que era agro deserto;

Fala dentro de nós uma boca invisível;

Esquece-se o real e palpa-se o impossível.

A outra terra era má, o meu país é este;

Este o meu céu azul.

        Se um dia padeceste

Aquela dor profunda, aquele ansiar sem termo

Que leva o tédio e a morte ao coração enfermo;

Se queres mão que enxugue as lágrimas austeras,

Se te apraz ir viver de eternas primaveras,

Ó alma de poeta, ó alma de harmonia,

Volve às terras da musa, às terras da poesia!

 

Tens, para atravessar a azul imensidade,

Duas asas do céu: a esperança e a saudade.

Uma vem do passado, outra cai do futuro;

Com elas voa a alma e paira no éter puro,

Com elas vai curar a sua mágoa estranha.

 

A terra da poesia é a nossa Alemanha.

 

 

 

VISÃO

 

A LUÍS ALVARENGA PEIXOTO

 

Vi de um lado o Calvário, e do outro lado

O Capitólio, o templo-cidadela.

E torvo mar entre ambos agitado,

Como se agita o mar numa procela.

 

Pousou no Capitólio uma águia; vinha

Cansada de voar.

Cheia de sangue as longas asas tinha;

Pousou; quis descansar.

 

Era a águia romana, a águia de Quirino;

A mesma que, arrancando as chaves ao destino,

As portas do futuro abriu de par em par.

A mesma que, deixando o ninho áspero e rude,

Fez do templo da força o templo da virtude,

E lançou, como emblema, a espada sobre o altar.

 

Então, como se um deus lhe habitasse as entranhas,

A vitória empolgou, venceu raças estranhas,

Fez de várias nações um só domínio seu.

Era-lhe o grito agudo um tremendo rebate.

Se caía, perdendo acaso um só combate,

Punha as asas no chão e remontava Anteu.

 

Vezes três, respirando a morte, o sangue, o estrago,

Saiu, lutou, caiu, ergueu-se... e jaz Cartago;

É ruína; é memória; é túmulo. Transpõe,

Impetuosa, e audaz, os vales e as montanhas.

Lança a férrea cadeia ao colo das Espanhas.

Gália vence; e o grilhão a toda Itália põe.

 

Terras d'Ásia invadiu, águas bebeu do Eufrates,

Nem tu mesma fugiste à sorte dos combates,

Grécia, mãe do saber. Mas que pode o opressor,

Quando o gênio sorriu no berço de uma serva?

Palas despe a couraça e veste de Minerva;

Faz-se mestra a cativa; abre escola ao senhor.

 

Agora, já cansada e respirando a custo,

Desce; vem repousar no monumento augusto.

Gotejam-lhe ainda sangue as asas colossais.

A sombra do terror assoma-lhe à pupila.

Vem tocada das mãos de César e de Sila.

Vê quebrar-se-lhe a força aos vínculos mortais.

 

Dum lado e de outro, azulam-se

Os vastos horizontes;

Vida ressurge esplêndida

Por toda a criação.

Luz nova, luz magnífica

Os vales enche e os montes...

E, além, sobre o Calvário,

Que assombro! Que visão!

 

Fitei o olhar. Do píncaro

Da colossal montanha

Surge uma pomba, e plácida

Asas no espaço abriu.

Os ares rompe, embebe-se

No éter de luz estranha;

Olha-a minha alma atônita

Dos céus a que subiu.

 

Emblema audaz e lúgubre,

Da força e do combate,

A águia no Capitólio

As asas abateu.

Mas voa a pomba, símbolo

Do amor e do resgate,

Santo e apertado vínculo

Que a terra prende ao céu.

 

Depois... Às mãos de bárbaros,

Na terra em que nascera,

Após sangrentos séculos,

A águia expirou; e então

Desceu a pomba cândida

Que marca a nova era,

Pousou no Capitólio,

Já berço, já cristão.

 

 

 

MENINA E MOÇA

 

A Ernesto Cibrão

 

Está naquela idade inquieta e duvidosa,

Que não é dia claro e é já o alvorecer;

Entreaberto botão, entrefechada rosa,

Um pouco de menina e um pouco de mulher.

 

Às vezes recatada, outras estouvadinha,

Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor;

Tem coisas de criança e modos de mocinha,

Estuda o catecismo e lê versos de amor.

 

Outras vezes valsando, o seio lhe palpita,

De cansaço talvez, talvez de comoção.

Quando a boca vermelha os lábios abre e agita,

Não sei se pede um beijo ou faz uma oração.

 

Outras vezes beijando a boneca enfeitada,

Olha furtivamente o primo que sorri;

E se corre parece, à brisa enamorada,

Abrir asas de um anjo e tranças de uma huri.

 

Quando a sala atravessa, é raro que não lance

Os olhos para o espelho; é raro que ao deitar

Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance

Em que a dama conjugue o eterno verbo amar.

 

Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia,

A cama da boneca ao pé do toucador;

Quando sonha, repete, em santa companhia,

Os livros do colégio e o nome de um doutor.

 

Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra;

E quando entra num baile, é já dama do tom;

Compensa-lhe a modista os enfados da mestra;

Tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon.

 

Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo

Para ela é o estudo, excetuando talvez

A lição de sintaxe em que combina o verbo

To love, mas sorrindo ao professor de inglês.

 

Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço,

Parece acompanhar uma etérea visão;

Quantas cruzando ao seio o delicado braço

Comprime as pulsações do inquieto coração!

 

Ah! se nesse momento, alucinado, fores

Cair-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã,

Hás de vê-la zombar dos teus tristes amores,

Rir da tua aventura e contá-la à mamã.

 

É que esta criatura, adorável, divina,

Nem se pode explicar, nem se pode entender:

Procura-se a mulher e encontra-se a menina,

Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!

 

 

 

NO ESPAÇO

 

Il n'y a qu' une sorte d'amour, mais

il y en a mille différentes copies.

 

LA ROCHEFOUCAULD

 

Rompendo o último laço

Que ainda à terra as prendia,

Encontraram-se no espaço

Duas almas. Parecia

Que o destino as convocara

Para aquela mesma hora;

E livres, livres agora,

Correm a estrada do céu,

Vão ver a divina face:

Uma era a de Lovelace,

Era a outra a de Romeu.

 

Voavam... porém voando

Falavam ambas. E o céu

Ia as vozes escutando

Das duas almas. Romeu

De Lovelace indagava

Que fizera nesta vida

E que saudades levava.

 

"Eu amei ... mas quantas, quantas,

E como, e como não sei;

Não seria o amor mais puro,

Mas o certo é que as amei.

Se era tão fundo e tão vasto

O meu pobre coração!

Cada dia era uma glória,

Cada hora uma paixão

Amei todas; e na história

Dos amores que senti

Nenhuma daquelas belas

Deixou de escrever por si.

 

"Nem a patrícia de Helena,

De verde mirto c'roada,

Nascida como açucena

Pelos zéfiros beijada,

Aos brandos raios da lua,

À voz das ninfas do mar,

Trança loira, espádua nua.

Calma fronte e calmo olhar.

 

"Nem a beleza latina,

Nervosa, ardente, robusta,

Levantando a voz augusta

Pela margem peregrina,

Onde o eco em seus lamentos,

Por virtude soberana,

Repete a todos os ventos

A nota virgiliana.

 

“Nem a doce, aérea inglesa,

Que os ventos frios do norte

Fizeram fria de morte,

Mas divina de beleza,

Nem a ardente castelhana,

Corada ao sol de Madri,

Beleza tão soberana,

Tão despótica no amor,

Que troca os troféus de um Cid

Pelo olhar de um trovador.

 

"Nem a virgem pensativa

Que às margens do velho Reno,

Como a pura sensitiva,

Vive das auras do céu,

E murcha ao mais leve aceno

De mãos humanas; tão pura

Como aquela Margarida

Que a Fausto um dia encontrou.

 

"E muitas mais, e amei todas,

Todas minha alma encerrou.

Foi essa a minha virtude,

Era esse o meu condão.

Que importava a latitude?

Era o mesmo coração,

Os mesmos lábios, o mesmo

Arder na chama fatal...

Amei a todas e a esmo."

 

Lovelace concluíra;

Entravam ambos no céu;

E o Senhor que tudo ouvira,

Voltou os olhos imensos

Para a alma de Romeu:

 

“E tu?” — “Eu amei na vida

Uma só vez, e subi

Daquela cruenta lida,

Senhor, a acolher-me em ti”.

 

Das duas almas, a pura,

A formosa, olhando em face

A divindade ficou;

E a alma de Lovelace

De novo à terra baixou.

 

Daqui vem que a terra conta,

Por um decreto do céu,

Cem Lovelaces num dia

E em cem anos um Romeu.

 

 

 

OS DEUSES DA GRÉCIA [5]

 

(Schiller)

 

Quando, coos tênues vínculos de gozo,

Ó Vênus de Amatonte, governavas

Felizes raças, encantados povos

 Dos fabulosos tempos;

 

Quando fulgia a pompa do teu culto,

E o templo ornavam delicadas rosas,

Ai! quão diverso o mundo apresentava

 A face aberta em risos!

 

Na poesia envolvia-se a verdade;

Plena vida gozava a terra inteira;

E o que jamais hão de sentir na vida

 Então sentiam homens.

 

Lei era repousar no amor; os olhos

Nos namorados olhos se encontravam;

Espalhava-se em toda a natureza

 Um vestígio divino.

 

Onde hoje dizem que se prende um globo

Cheio de fogo, — outrora conduzia

Hélios o carro de ouro, e os fustigados

 Cavalos espumantes.

 

Povoavam Oréades os montes,

No arvoredo Doríades viviam,

E agreste espuma despejava em flocos

 A urna das Danaides.

 

Refúgio de uma ninfa era o loureiro;

Tantália moça as rochas habitava;

Suspiravam no arbusto e no caniço

 Sirinx, Filomela.

 

Cada ribeiro as lágrimas colhia

De Ceres pela esquiva Persefone;

E do outeiro chamava inutilmente

 Vênus o amado amante.

 

Entre as raças que o pio tessaliano

Das pedras arrancou, - os deuses vinham;

Por cativar uns namorados olhos

   Apolo pastoreava.

 

Vínculo brando então o amor lançava

Entre os homens, heróis e os deuses todos;

Eterno culto ao teu poder rendiam,

   Ó deusa de Amatonte!

 

Jejuns austeros, torva gravidade

Banidos eram dos festivos templos;

Que os venturosos deuses só amavam

   Os ânimos alegres.

 

Só a beleza era sagrada outrora;

Quando a pudica Tiêmone mandava,

Nenhum dos gozos que o mortal respira

   Envergonhava os deuses.

 

Eram ricos palácios vossos templos;

Lutas de heróis, festins, e o carro e a ode,

Eram da raça humana aos deuses vivos

    A jucunda homenagem.

 

Saltava a dança alegre em torno a altares;

Louros c'roavam numes; e as capelas

De abertas, frescas rosas, lhes cingiam

    A fronte perfumada.

 

Anunciava o galhofeiro Baco

O Tirso de Evoé; sátiros fulvos

Iam tripudiando em seu caminho;

    Iam bailando as Mênades.

 

A dança revelava o ardor do vinho;

De mão em mão corria a taça ardente,

Pois que ao fervor dos ânimos convida

    A face rubra do hóspede.

 

Nenhum espectro hediondo ia sentar-se

Ao pé do moribundo. O extremo alento

Escapava num ósculo, e voltava

    Um gênio a tocha extinta.

 

E além da vida, nos infernos, era

Um filho de mortal quem sustentava

A severa balança; e coa voz pia

    Vate ameigava as Fúrias.

 

Nos Elísios o amigo achava o amigo;

Fiel esposa ia encontrar o esposo;

No perdido caminho o carro entrava

    Do destro automedonte.

 

Continuava o poeta o antigo canto;

Admeto achava os ósculos de Alceste;

Reconhecia a Pílades o sócio,

    E o rei tessálio as flechas.

 

Nobre prêmio o valor retribuía

Do que andava nas sendas da virtude;

Ações dignas do céu, filhas dos homens,

    O céu tinham por paga.

 

Inclinavam-se os deuses ante aquele

Que ia buscar-lhe algum mortal extinto;

E os gêmeos lá no Olimpo alumiavam

    O caminho ao piloto.

 

Onde és, mundo de risos e prazeres?

Por que não volves, florescente idade?

Só as musas conservam os teus divinos

    Vestígios fabulosos.

 

Tristes e mudos vejo os campos todos;

Nenhuma divindade aos olhos surge;

Dessas imagens vivas e formosas

    Só a sombra nos resta.

 

Do norte ao sopro frio e melancólico,

Uma por uma, as flores se esfolharam;

E desse mundo rútilo e divino

    Outro colheu despojos.

 

Os astros interrogo com tristeza,

Selene, e não te encontro; à selva falo

Falo à vaga do mar, e à vaga, e à selva,

    Inúteis vozes mando.

 

Da antiga divindade despojada,

Sem conhecer os êxtases que inspira,

Desse esplendor que eterno a fronte lhe orna

    Não sabe a natureza.

 

Nada sente, não goza do meu gozo;

Insensível à força com que impera,

O pêndulo parece condenado

    Às frias leis que o regem.

 

Para se renovar, abre hoje a campa,

Foram-se os numes ao país dos vates;

Das roupas infantis despida, a terra

    Inúteis os rejeita.

 

Foram-se os numes, foram-se; levaram

Consigo o belo, e o grande, e as vivas cores,

Tudo que outrora a vida alimentava,

    Tudo que é hoje extinto.

 

Ao dilúvio dos tempos escapando,

Nos recessos do Pindo se entranharam:

O que sofreu na vida eterna morte,

    Imortalize a musa!

 

 

 

CEGONHAS E RODOVALHOS

 

(BOUILLET)

 

A ANÍSIO SEMPRÔNIO RUFO

 

Salve, rei dos mortais, Semprônio invicto,

Tu que estreaste nas romanas mesas

O rodovalho fresco e a saborosa

    Pedi-rubra cegonha!

Desentranhando os mármores de Frígia,

Ou já rompendo ao bronze o escuro seio,

Justo era que mandasse a mão do artista

    Teu nobre rosto aos evos.

 

Por que fosses maior aos olhos pasmos

Das nações do Universo, ó pai dos molhos,

Ó pai das comezainas, em criar-te

    Teu século esfalfou-se.

A tua vinda ao mundo prepararam

Os destinos, e acaso amiga estrela

Ao primeiro vagido de teus lábios

    Entre nuvens luzia.

 

Antes de ti, no seu vulgar instinto,

Que comiam romanos? Carne insossa

Dos seus rebanhos vis, e uns pobres frutos,

    Pasto bem digno deles;

A escudela de pau outrora ornava,

Com o saleiro antigo, a mesa rústica,

A mesa em que, três séculos contados,

    Comeram senadores.

 

E quando, por salvar a pátria em risco,

Os velhos se ajuntavam, quantas vezes

O cheiro do alho enchia a antiga cúria,

    O pórtico sombrio,

Onde vencidos reis o chão beijavam;

Quantas, deixando em meio a mal cozida,

A sensabor chanfana, iam de um salto

    À conquista do mundo!

 

Ao voltar dos combates, vencedores,

Carga de glória a nau trazia ao porto,

Reis vencidos, tetrarcas subjugados,

    E rasgadas bandeiras...

Iludiam-se os míseros! Bem hajas,

Bem hajas tu, grande homem, que trouxeste

Na tua ovante barca à ingrata Roma

    Cegonhas, rodovalhos!

 

Maior que esse marujo que estripava,

Coo rijo arpéu, as naus cartaginesas

Tu, Semprônio, coas redes apanhavas

    Ouriçado marisco;

Tu, glotão vencedor, cingida a fronte

Coo verde mirto, a terra percorreste,

Por encontrar os fartos, os gulosos

    Ninhos de finos pássaros.

 

Roma desconheceu teu gênio, ó Rufo!

Dizem até (vergonha!) que negara

Aos teimosos desejos que nutrias

    O voto da pretura.

Mas a ti, que te importa a voz da turba?

— Efêmero rumor que o vento leva

Como a vaga do mar. Não, não raiaram

    Os teus melhores dias.

 

Virão, quando aspirar a invicta Roma

As preguiçosas brisas do oriente;

Quando Coa mitra d'ouro, o descorado,

    O cidadão romano,

Pelo foro arrastar o tardo passo

E sacudir da toga roçagante,

Ás virações os tépidos perfumes

    Como um sátrapa assírio.

 

Virão, virão, quando na escura noite,

A orgia imperial encher o espaço

De viva luz, e embalsamar as ondas

    Com os seus bafos quentes;

Então do sono acordarás, e a sombra,

A tua sacra sombra irá pairando

Ao ruído das músicas noturnas

    Nas rochas de Capréia.

 

Ó mártir dos festins! Queres vingança?

Tê-las-ás e à farta, à tua grã memória;

Vinga-te o luxo que domina a Itália;

    Ressurgirás ovante

Ao dia em que na mesa dos romanos

Vier pompear o javali silvestre,

Prato a que der os finos molhos Tróia

    E rouxinol as línguas.

 

 

 

A UM LEGISTA

 

 

Tu foges à cidade?

Feliz amigo! Vão

Contigo a liberdade,

A vida e o coração.

 

A estância que te espera

É feita para o amor

Do sol coa primavera,

No seio de uma flor.

 

Do paço de verdura

Transpõe-me esses umbrais;

Contempla a arquitetura

Dos verdes palmeirais. 7

 

Esquece o ardor funesto

Da vida cortesã;

Mais val que o teu Digesto

A rosa da manhã.

 

Rosa... que se enamora

Do amante colibri,

E desde a luz da aurora

Os seios lhe abre e ri.

 

Mas Zéfiro brejeiro

Opõe ao beija-flor

Embargos de terceiro

Senhor e possuidor.

 

Quer este possuí-la,

Também o outro a quer,

A pobre flor vacila,

Não sabe a que atender.

 

O sol, juiz tão grave

Como o melhor doutor,

Condena a brisa e a ave

Aos ósculos da flor.

 

Zéfiro ouve e apela.

Apela o colibri.

No entanto a flor singela

Com ambos folga e ri.

 

Tal a formosa dama

Entre dois fogos, quer

Aproveitar a chama

Rosa, tu és mulher!

 

Respira aqueles ares,

Amigo. Deita ao chão

Os tédios e os pesares.

Revive. O coração.

 

É como passarinho,

Que deixa sem cessar

A maciez do ninho

Pela amplidão do ar.

 

Pudesse eu ir contigo,

Gozar contigo a luz;

Sorver ao pé do amigo

Vida melhor e a flux!

 

Ir escrever nos campos

Nas folhas dos rosais,

E à luz dos pirilampos,

Ó Flora, os teus jornais!

 

 Da estrela que mais brilha

 Tirar um raio, e então

 Fazer a gazetilha

 Da imensa solidão

 

 Vai tu, que podes. Deixa

 Os que não podem ir,

 Soltar a inútil queixa.

 Mudar é reflorir.

 

 

 

ESTÂNCIAS A EMA

 

(ALEX. DUMAS FILHO)

 

I - UM PASSEIO DE CARRO

 

Saímos, ela e eu, dentro de um carro,

Um ao outro abraçados; e como era

Triste e sombria a natureza em torno

Ia conosco a eterna primavera.

 

No cocheiro fiávamos a sorte

Daquele dia, o carro nos levava

Sem ponto fixo, onde aprouvesse ao homem;

Nosso destino em suas mãos estava.

 

Quadrava-lhe Saint-Cloud. Eia! pois vamos!

É um sítio de luz, de aroma e riso,

Demais, se as nossas almas conversavam,

Onde estivessem era o paraíso.

 

Fomos descer junto ao portão do parque;

Era deserto e triste e mudo; o vento

Rolava nuvens cor de cinza; estavam

Seco o arbusto, o caminho lamacento.

 

Rimo-nos tanto, vendo-te, ó formosa,

(E felizmente ninguém mais te via!)

Arregaçar a ponta do vestido

Que o lindo pé e a meia descobria!

 

Tinhas o gracioso acanhamento

Da fidalga gentil pisando a rua;

Desafeita ao andar, teu passo incerto

Deixava conhecer a raça tua.

 

Uma das tuas mãos alevantava

O vestido de seda; as saias finas

Iam mostrando as rendas e os bordados,

Lambendo o chão, molhando-te as botinas.

 

Mergulhavam teus pés a cada instante,

Como se o chão quisesse ali guardá-los.

E que afã! Mal podíamos nós ambos

Da cobiçosa terra libertá-los.

 

Doce passeio aquele! E como é belo

O amor no bosque, em tarde tão sombria!

Tinhas os olhos úmidos, - e a face

A rajada do inverno enrubescia.

 

Era mais belo que a estação das flores;

Nenhum olhar nos espreitava ali;

Nosso era o parque, unicamente nosso;

Ninguém! estava eu só ao pé de ti!

 

Perlustramos as longas avenidas

Que o horizonte cinzento limitava.

Sem mesmo ver as deusas conhecidas

Que o arvoredo sem folhas abrigava.

 

O tanque, onde nadava um níveo cisne

Placidamente, — o passo nos deteve;

Era a face do lago uma esmeralda

Que refletia o cisne alvo de neve.

 

Veio este a nós, e corno que pedia

Alguma coisa, uma migalha apenas;

Nada tinhas que dar; a ave arrufada

Foi-se cortando as águas tão serenas.

 

E nadando parou junto ao repuxo

Que de água viva aquele tanque enchia;

O murmúrio das gotas que tombavam

Era o único som que ali se ouvia.

 

Lá ficamos tão juntos um do outro,

Olhando o cisne e escutando as águas;

Vinha a noite; a sombria cor do bosque

Emoldurava as nossas próprias mágoas.

 

Num pedestal, onde outras frases ternas,

A mão de outros amantes escreveu,

Fui traçar, meu amor, aquela data

E junto dela pôr o nome teu!

 

Quando o estio volver àquelas árvores,

E à sombra delas for a gente a flux,

E o tanque refletir as folhas novas,

E o parque encher-se de murmúrio e luz,

 

Irei um dia, na estação das flores,

Ver a coluna onde escrevi teu nome,

O doce nome que minha alma prende,

E que o tempo, quem sabe? Já consome!

 

Onde estarás então? Talvez bem longe,

Separada de mim, triste e sombrio;

Talvez tenhas seguido a alegre estrada,

Dando-me áspero inverno em pleno estio.

 

Porque o inverno não é o frio e o vento,

Nem a erma alameda que ontem vi;

O inverno é o coração sem luz nem flores,

É o que eu hei de ser longe de ti!

 

II

 

Correu um ano desde aquele dia,

Em que fomos ao bosque; um ano, sim!

Eu já previa o fúnebre desfecho

Desse tempo feliz, — triste de mim!

 

O nosso amor nem viu nascer as flores;

Mal aquecia um raio de verão

Para sempre, talvez, das nossas almas

Começou a cruel separação.

 

Vi esta primavera em longes terras,

Tão ermo de esperanças e de amores,

Olhos fitos na estrada, onde esperava

Ver-te chegar, como a estação das flores.

 

Quanta vez meu olhar sondou a estrada

Que entre espesso arvoredo se perdia,

Menos triste, inda assim, menos escuro

Que a dúvida cruel que me seguia!

 

Que valia esse sol abrindo as plantas

E despertando o sono das campinas?

Inda mais altas que as searas louras,

Que valiam as flores peregrinas?

 

De que servia o aroma dos outeiros?

E o canto matinal dos passarinhos?

Que me importava a mim o arfar da terra,

E nas moitas em flor os verdes ninhos?

 

O sol que enche de luz a longa estrada,

Se me não traz o que minh'alma espera,

Pode apagar seus raios sedutores:

Não é o sol, não é a primavera!

 

Margaridas, caí, morrei nos campos,

Perdei o viço e as delicadas cores;

Se ela vos não aspira, o hálito brando,

o verão não sois, já não sois flores!

 

Prefiro o inverno desfolhado e mudo,

O velho inverno, cujo olhar sombrio

Mal se derrama nas cerradas trevas,

E vai morrer no espaço úmido e frio.

 

É esse o sol das almas desgraçadas;

Venha o inverno, somos tão amigos!

Nossas tristezas são irmãs em tudo:

Temos ambos o frio dos jazigos!

 

Contra o sol, contra Deus, assim falava

Dês que assomavam matinais albores;

Eu aguardava as tuas doces letras

Com que ao céu perdoasse as belas cores!

 

Iam assim, um após outro, os dias.

Nada. - E aquele horizonte tão fechado

Nem deixava chegar aos meus ouvidos

O eco longínquo do teu nome amado.

 

Só, durante seis meses, dia e noite

Chamei por ti na minha angústia extrema;

A sombra era mais densa a cada passo,

E eu murmurava sempre: - Oh! minha Ema!

 

Um quarto de papel - é pouca coisa;

Quatro linhas escritas - não é nada;

Quem não quer escrever colhe uma rosa,

No vale aberta, à luz da madrugada.

 

Mandam-se as folhas num papel fechado;

E o proscrito, ansiando de esperança,

Pode entreabrir nos lábios um sorriso

Vendo naquilo uma fiel lembrança.

 

Era fácil fazê-lo e não fizeste!

Meus dias eram mais desesperados.

Meu pobre coração ia secando

Como esses frutos no verão guardados.

 

Hoje, se o comprimissem, mal deitava

Uma gota de sangue; nada encerra.

Era uma taça cheia; uma criança,

De estouvada que foi, deitou-a em terra!

 

É este o mesmo tempo, o mesmo dia.

Vai o no tocando quase ao fim;

É esta a hora em que, formosa e terna,

Conversavas de amor, junto de mim.

 

O mesmo aspecto: as ruas estão ermas,

A neve coalha o lago preguiçoso;

O arvoredo gastou as roupas verdes,

E nada o cisne triste e silencioso.

 

Vejo ainda no mármore o teu nome,

Escrito quando ali comigo andaste.

Vamos! Sonhei, foi um delírio apenas,

Era um louco, tu não me abandonaste!

 

O carro espera: vamos. Outro dia,

Se houver bom tempo, voltaremos, não?

Corre este véu sobre teus olhos lindos,

Olha, não caias, dá-me a tua mão!

 

Choveu; a chuva umedeceu a terra.

Anda! Ai de mim! Em vão minh'alma espera.

Estas folhas que eu piso em chão deserto

São as folhas da outra primavera!

 

Não, não estás aqui, chamo-te embalde!

Era ainda uma última ilusão.

Tão longe desse amor fui inda o mesmo,

E vivi dois invernos sem verão.

 

Porque o verão não é aquele tempo

De vida e de calor que eu não vivi;

É a alma entornando a luz e as flores,

É o que hei de ser ao pé de ti!

 

 

 

A MORTE DE OFÉLIA

 

(Paráfrase)

 

 

Junto ao plácido rio

Que entre margens de relva e fina areia

Murmura e serpenteia,

O tronco se levanta,

O tronco melancólico e sombrio

De um salgueiro. Uma fresca e branda aragem

Ali suspira e canta,

Abraçando-se à trêmula folhagem

Que se espelha na onda voluptuosa.

Ali a desditosa,

A triste Ofélia foi sentar-se um dia

Enchiam-lhe o regaço umas capelas

Por suas mãos tecidas

De várias flores belas,

Pálidas margaridas,

E rainúnculos, e essas outras flores

A que dá feio nome o povo rude,

E a casta juventude

Chama — dedos da morte. — O olhar celeste

Alevantando aos ramos do salgueiro

Quis ali pendurar a ofrenda agreste.

Num galho traiçoeiro

Firmara os lindos pés, e já seu braço,

Os ramos alcançando,

Ia depor a ofrenda peregrina

De suas flores, quando

Rompendo o apoio escasso,

A pálida menina

Nas águas resvalou; foram com ela

Os seus — dedos da morte — e as margaridas.

As vestes estendidas

Algum tempo a tiveram sobre as águas,

Como sereia bela

Que abraça ternamente a onda amiga.

Então, abrindo a voz harmoniosa,

Não por chorar as suas fundas mágoas,

Mas por soltar a nota deliciosa

De uma canção antiga,

A pobre naufragada

De alegres sons enchia os ares tristes,

Como se ali não visse a sepultura

Ou fosse ali criada.

Mas de súbito as roupas embebidas

Da linfa calma e pura

Levam-lhe o corpo ao fundo da corrente,

Cortando-lhe no lábio a voz e o canto.

As águas homicidas,

Como a laje de um túmulo recente,

Fecharam-se; e sobre elas,

Triste emblema de dor e de saudade,

Foram nadando as últimas capelas.

 

 

 

FIM

 

 



[1] Maximiliano, quando estava em Miramar, costumava retratar fotograficamente a arquiduquesa, escrevendo por baixo do retrato: “La marchesa de Miramar”.

 

[2] Perdoem-se estes versos em francês; e para que de todo em todo não fique a página aqui perdida lhes dou a tradução que fez dos meus versos o talentoso poeta maranhense Joaquim Serra:

É um velho país, de luz e sombras,

Onde o dia traz pranto e a noite a cisma;

Um país de orações e de blasfêmia,

Nele a crença na dúvida se abisma.

 

Aí, mal nasce a flor, o verme a corta,

O mar é um escarcéu, e o sol sombrio;

Se a ventura num sonho transparece

A sufoca em seus braços o fastio.

 

Quando o amor, qual esfinge indecifrável,

Aí vai a bramir, perdido o siso...

Às vezes ri alegre, e outras vezes

É um triste soluço esse sorriso...

 

Vive-se nesse país com a mágoa e o riso;

Quem dele se ausentou treme a maldiz;

Mas aí, eu nele passo a mocidade,

Pois é meu coração esse país!

 

[3] Os poetas postos nesta coleção são todos contemporâneos. Encontrei-os no livro publicado em 1868 pela Sra. Judith Walter, distinta viajante que dizem conhecer profundamente a língua chinesa, e que os traduziu em simples e corrente prosa.

 

[4] É do Sr. Antônio Feliciano de Castilho a tradução desta odezinha, que de lugar à composição do meu quadro. Foi imediatamente à leitura da Lírica de Anacreonte, que eu tive a idéia de pôr em ação a ode do poeta de Tetos, tão portuguesmente saída das mãos do Sr. Castilho que mais parece original que tradução. A concha não vale a pérola, mas o delicado da pérola disfarçará o grosseiro da concha.

 

[5] Não sei alemão; traduzi estes versos pela tradução em prosa francesa de um dos mais conceituados intérpretes da língua de Schiller.