MACHADO DE ASSIS

 

uma apresentação

 

João Hernesto Weber

 

 

ÍNDICE

 

ESBOÇO DE UMA FORTUNA CRÍTICA E DE UM ROTEIRO DE LEITURA

 

O EXERCÍCIO DA CRÍTICA E O PROJETO ESTÉTICO-IDEOLÓGICO DE MACHADO DE ASSIS

 

O ROMANCE DE MACHADO DE ASSIS

 

Inserção no campo cultural e trajetória do romancista

 

Os romances da “primeira fase”

 

O esgotamento de um projeto e os romances da “segunda fase”

 

Um parêntese: Casa velha

 

OS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS

 

As “duas fases”, e faces, do conto de Machado de Assis

 

Algum conto da “primeira fase”

 

Os contos da “segunda fase”

 

O TEATRO DE MACHADO DE ASSIS

 

POESIA

 

A CRÔNICA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ESBOÇO DE UMA FORTUNA CRÍTICA E DE UM ROTEIRO DE LEITURA

 

Ler e reler Machado. “A um bruxo, com amor”, afirma um conhecido poema de Carlos Drummond de Andrade. Ler e reler Machado, um “bruxo”. Isso, por si só, já diz tudo: ler Machado deve significar lidar com o imponderável. Mesmo assim, ou por isso mesmo, não deixamos de fazê-lo.

 

A crítica, em geral, não tem deixado de fazê-lo. A extensa “fortuna crítica” da obra de Machado institui-se em pleno século XIX, com as figuras representativas de José Veríssimo e de Sílvio Romero, por exemplo, um a elogiá-lo como escritor “diserto e elegantíssimo”, outro a maldizê-lo por seu estilo “tartamudo”, gago e indeciso, ou pelo emprego do humour, de origem inglesa, o que não seria da índole do brasileiro, mais afeito ao riso desbragado[1]. Passa, depois, entre outros, por um Alcides Maya, a tratar do humour machadiano na contramão de Sílvio Romero[2]. Encontra, depois, um dos seus pontos altos em Lúcia Miguel- Pereira, que pretende explicar a obra pela vida do escritor, biografismo que, mais recentemente, mas em diapasão diferenciado, encontraria na construção da biografia sócio-intelectual do autor, a situar Machado no contexto do II Império, a sua consecução mais instigante, como ocorre com o excelente “Várias histórias para um homem célebre”, de Valentim Faccioli[3]. A fortuna crítica da obra de Machado conta, também, com o impressionismo crítico de Augusto Meyer, o crítico-poeta, como diz Alfredo Bosi, a apontar, na obra de Machado, o “homem subterrâneo”, no rastro de suas leituras de Dostoiévski[4]. Passa, posteriormente, por leituras contextualizantes como a de Astrojildo Pereira, um dos primeiros a apontar os vínculos do escritor com o II Reinado, já que Machado de Assis era visto, até meados do século passado, como um autor absenteísta, afastado das questões histórico-sociais de seu tempo[5]. Os vínculos de Machado com o II Império seriam alvo, também, de uma leitura sócio-tipológica, de largo fôlego, assentada em Max Weber, por parte de Raymundo Faoro, em seu A pirâmide e o trapézio[6]. Mais recentemente, a “fortuna crítica” de Machado recebeu a leitura que busca desvendar a hermenêutica do olhar, em que, sem desdenhar do contexto histórico, centra a análise do Autor no modo como ele vê, percebe e imprime seu olhar sobre “a máscara e a fenda” existentes entre sociedade, tipos sociais, indivíduos, pessoas, como O enigma do olhar, de Alfredo Bosi[7]. Também recente, há as leituras de John Gledson, que buscam as alegorias históricas entrevistas na ficção de Machado, Machado a compor intencionalmente um amplo painel histórico do II Império — por exemplo, o Pedro Rubião de Alvarenga, personagem de Quincas Borba, lembrando “rubiácea”, nome científico do café, e, também, Pedro de Alcântara, Rubião considerado alegoria de Dom Pedro II, o Pedro Café, cuja trajetória, em Quincas Borba, seria possível acompanhar desde o “boom” do café até à decadência do Império com os seus, de Rubião, delírios napoleônicos, Napoleão III representando D. Pedro II, farsa de uma farsa.[8]

 

A “fortuna crítica” de Machado passa, além disso, pelo rendimento de análises que buscam rastrear as “influências inglesas” de Machado, assim como o faz um Eugênio Gomes, ou, então, que buscam inserir Machado numa longa tradição da narrativa ocidental, em viés marginal, pois que até o século XIX a poesia se sobrepunha à prosa, com a inserção da obra de Machado na tradição da sátira menipéia, como se pode ler em Merquior, ou como o faz também Enylton de Sá Rego, na esteira de Merquior, a ler Machado como tributário da tradição “luciânica”.[9]

 

Isso, para não falar de outras leituras, como as que foram em busca da reconstituição de sua biografia e do legado efetivo de Machado, com pesquisas em jornais e revistas da época, como se pode ler em Galante de Souza e em Jean-Michel Massa[10]. Ou para não falar de ainda outras leituras, em outro viés, “pós-estruturalistas”, que constroem um Machado como um “desconstrucionista”, ou um “pós-moderno” em pleno século XIX[11].

 

Mas recuperar essas variadas linhas críticas não é, aqui, meu propósito, não obstante recorrer, quando oportuno, a elas. Minha intenção é outra: é ler Machado segundo uma determinada ótica, propositadamente não indicada acima, que o vê sob um olhar histórico-estrutural, na esteira da tradição crítica que, vinda já do século XIX, se forma no Brasil com Antonio Candido e Roberto Schwarz, tomando-se, aqui, a obra de Candido e Schwarz como apoio, muitas vezes implícito, a essa síntese que aqui se apresenta[12].

 

É isso, e também isto: o percurso que pretendo empreender toma em consideração três aspectos essenciais, a meu ver, a uma leitura histórico-estrutural da obra de Machado. Primeiro, considero que é necessário perseguir a construção da “poética machadiana”, entrevista, em sua obra crítica, como discurso sobre a prática literária. Machado, afinal, se forma em uma determinada tradição de composição literária e de leitura, e é através da consideração crítica dessa tradição, e do embate com ela, que consegue erguer a sua obra. Isso significa, para nós, leitores, ver a obra de Machado como a de um ficcionista que lê a tradição local, que lê os “clássicos”, lê os contemporâneos, e que reflete sobre o que lê, sobre o que é e sobre o que deva ser a literatura local, instâncias que explicita em seus textos críticos e pratica em sua criação literária. É a reflexão sobre o que significa fazer literatura, sobre o que aqui efetivamente se realiza, e sobre as suas lacunas, que Machado se constrói, enfim, como escritor. Isso, sem descurar a própria formação do público leitor, cujas expectativas de leitura Machado conhece, público a quem alicia, seduz, e a quem educa para novas leituras, para além das expectativas correntes no tempo, presas, ainda, ou ao romance-folhetim romântico, recheado de segredos, arroubos românticos, suspense, ou, em outra instância, à literatura real-naturalista de vertente francesa.

 

Em segundo, mas que remete ao anterior, é preciso ver que Machado constrói, em seu percurso como escritor, um determinado estilo, uma determinada dicção que lhe permite dar forma à formação social brasileira do século XIX. Os indícios da clareza de Machado sobre a forma que emprega são muitos ao longo de sua obra, como ainda veremos, e também ela, a forma, e o estilo, não surgem do nada: compara formas e fôrmas, na tradição local e européia, expurga umas e adota outras, em amplo diálogo formativo. É o estilo “ébrio”, diria o próprio Machado, dicção que se encontra na base daquilo que Roberto Schwarz viria a identificar como o “narrador volúvel”, dado ao mesmo tempo estrutural/formal e social de Memórias póstumas de Brás Cubas.

 

Em terceiro, é preciso ver um pouco mais essa questão, já aludida, da forma literária como abstração de uma forma social. Para tanto, recorro à tradição local, vale dizer, a Antonio Candido e a Roberto Schwarz, em sua interlocução, a deles, com as correntes críticas locais e as de fora, como o marxismo humanista europeu principalmente, Antonio Candido lendo o “Instinto de nacionalidade” de Machado, lendo também Sílvio Romero e José Veríssimo, para compor a Formação da literatura brasileira e, depois, ensaios fundamentais como “Literatura e subdesenvolvimento”, ou “A dialética da malandragem”, ou, ainda, os ensaios sobre O cortiço, numa obra extensa que seria devidamente seguida, embora nem sempre na mesma direção, por Roberto Schwarz, em seus ensaios sobre Machado de Assis e sobre o próprio Antonio Candido. Seria Antonio Candido, justamente, que se debruçaria, em seu longo percurso crítico, sobre a questão da forma literária como abstração de uma forma social, ou sobre a do “externo” que vira “interno”. Trata-se do que ele viria a chamar de “redução estrutural”: o texto literário precisa ser lido não em seus traços de superfície, simplesmente, que dão conta dos tipos sociais característicos, dos hábitos, costumes, paisagens, flora e fauna do País, mas em sua estrutura interna, buscando-lhe a ossatura, ou a dinâmica e lógica própria que compõem a sua forma; essa forma, dado estrutural, corresponde, de sua parte, se apreendida e construída coerentemente pelo artista, a uma determinada lógica que rege o social em determinado momento da sociedade brasileira.  Trata-se, nesse sentido, de se fazer uma leitura da forma literária e do processo social, descobrindo-se o princípio que perpassa a ambos. Daí o “externo”, ou o social, passa a ser não mero dado esparso no texto literário, espécie de penduricalho para situar a narrativa no Brasil ou alhures, mas dado essencial à própria composição da obra. 

 

É a Candido e Schwarz que recorro, e também, com alguma insistência, a John Gledson, lido na inflexão do que aqui se apontou. São leituras, todas, variações e reproduções que possivelmente fiquem bem aquém de quem as articulou e mesmo dos propósitos didáticos que aqui se impõem. Mas também isso é parte de um processo formativo.

 

Resta dizer, por fim, que a obra de Machado, que se estende por praticamente todos os gêneros literários, abrangendo, além da narrativa em prosa, a crônica, a poesia, o teatro, tem sido consagrada, leitura permanente, através do romance e do conto. A ênfase que aqui se imprime vai nesse sentido: a ênfase desta “apresentação” recai sobre o romance e o conto. Numa apresentação de intenções didáticas da obra de Machado, creio, esse deva ser o vetor. Pois não somente a crítica, de que traçamos, anteriormente, um breve esboço, dedicou grande parte de seus esforços para a leitura da prosa machadiana, principalmente o romance, mas também a circulação de seus textos tem-se detido na narrativa. Os romances e os contos permaneceram, diria, enquanto o exercício da crítica, por parte de Machado, por mais fundamental que o seja para a compreensão da sua própria obra, ou a crônica, assim como o teatro e a poesia, têm ficado restritos ao âmbito dos estudos acadêmicos especializados, como é o caso, por exemplo, dos estudos mais recentes de João Roberto Faria e de Helena Tornquist sobre o teatro machadiano[13]. São estudos de larga abrangência, buscando ver, como o faz o ensaio comparatista de Helena Tornquist, o “diálogo” — quando não a influência diretamente sofrida, embora rebaixada à cena local — de Machado com o teatro francês, observações que se alastram também para o campo da ficção, alargando-nos consideravelmente a compreensão da obra de Machado de Assis. Ainda assim: se Machado iniciou a sua carreira pelo jornalismo, pela poesia e pelo teatro, seja como cronista, tradutor, censor e autor teatral, sua obra ainda hoje em circulação atém-se à narrativa. É a ela, portanto, que dirigimos, em especial, o nosso olhar.

 


 

 

O EXERCÍCIO DA CRÍTICA E O PROJETO ESTÉTICO-IDEOLÓGICO DE MACHADO DE ASSIS

 

 

 

A atividade crítica, para o escritor Machado de Assis, sempre serviu não simplesmente ao comentário, análise e interpretação da obra de outros escritores, a crítica como atividade secundária portanto, mas, principalmente, à sua construção como artista. Isto está nas crônicas, nos textos diretamente críticos e, também, na própria obra de ficção, quando comenta, espécie de metaficção, seu próprio fazer literário. É possível, para estabelecer um panorama do exercício da crítica por Machado de Assis e, ao mesmo tempo, através dela, rastrear seu projeto estético-ideológico — que construiu ao longo de sua atividade como escritor — observar três textos críticos de Machado: o “Instinto de nacionalidade”, “O Primo Basílio” e “A nova geração”, sínteses de sua reflexão em torno do fazer artístico[14].

 

A atuação crítica e reflexiva de Machado data, é bem verdade, do início de sua atividade jornalística. Quando o Autor contava ainda menos de vinte anos de idade, escrevia, já, “O passado, o presente e o futuro da literatura”, espécie de rascunho daquele que viria a ser o seu mais conhecido ensaio crítico, o “Instinto de nacionalidade”. Nele, rastreava a tradição literária local, criticava Gonzaga pelo seu compromisso com a Arcádia, e louvava Basílio da Gama, que elaborara, a seu ver, poesia não nacional, mas indígena, diferenciada, ainda assim, ou por isso mesmo, da portuguesa. Passa pelos Andradas e outros, e pelas duas revoluções necessárias: a do sete de setembro e a da literatura, para quem não haveria “gritos de Ipiranga”. Trata, no ensaio, do romance, da poesia e do drama, afirmando a pobreza do último, concentrando a sua crítica no problema da proliferação das traduções do francês, inibidoras, a seu ver, da produção local, para o que propõe, como solução, o estabelecimento de uma espécie de “reserva de mercado” para o drama local. 

 

Em 30 de outubro de 1859, aos vinte anos de idade, portanto, vamos, entre outras intervenções, encontrá-lo a publicar uma crônica em “O Espelho”, intitulada “O Folhetinista”. A sua conclusão sobre a condição do folhetinista no Brasil é indicativa das “aflições estéticas”, digamos, por que já passava o jovem Machado, aflições que norteariam a sua atividade crítica e literária posterior:

 

“Força é dizê-lo: a cor nacional, em raríssimas exceções, tem tomado o folhetinista entre nós. Escrever folhetim e ficar brasileiro é na verdade difícil. Entretanto, como todas as dificuldades se aplanam, ele podia bem tomar mais cor local, mais feição americana. Faria assim menos mal à independência do espírito nacional, tão preso a essas imitações, a esses arremedos, a esse suicídio de originalidade e iniciativa”.

 

Quer dizer: aos dezenove, vinte anos, Machado já se preocupava com a adaptação de modelos europeus às circunstâncias locais. Referia-se, na passagem acima, ao folhetinista-cronista, tarefa do jornalista que, ao pé de página do jornal, comentava a vida social, imitando o folhetim francês. Machado, também folhetinista-cronista, criticava, portanto, já àquele tempo, a adesão, pura e simples, à imitação dos folhetins franceses. E o fazia de forma crítica, ao desenhar tipos como o fanqueiro e o parasita literário, como se pode ler nas crônicas de “O Espelho”. “O passado, o presente e o futuro da literatura” e “O folhetinista”, aqui citados, são textos bastante marcados, ainda, pelos índices de nacionalidade predicados pelas teses românticas, como facilmente se percebe quando reivindica, num, a primazia de Basílio da Gama sobre Gonzaga e, noutro, maior presença de “cor local” e mais “feição americana”. É um marco, ainda assim, para o que afirmaria, já o assinalava, no seu conhecido “Instinto de nacionalidade”, de 1873, em que Machado alça vôo, não para endossar pura e simplesmente as teses românticas, mas para estabelecer um diálogo produtivo com o Romantismo.

 

No “Instinto de nacionalidade”, Machado parte da constatação de que a literatura brasileira expressa um certo “instinto de nacionalidade”.  Afirma, também, que “todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país”. Até aí, percebe-se, Machado acompanha a tradição romântica, que passa, em termos críticos, por Ferdinand Denis, Gonçalves de Magalhães, Joaquim Norberto e Santiago Nunes Ribeiro, entre outros. Tanto que, a seguir, ele estabelece uma linha de continuidade na literatura brasileira que toma por base, justamente, a expressão das “cores do país”. Essa linha de continuidade teria Gonçalves Dias e Araújo Porto Alegre ao centro; projetar-se-ia ao passado nas obras de Basílio da Gama e Santa Rita Durão; e expandir-se-ia ao futuro através daquela geração que “agora madruga”. A existência dessa tradição, na visão de Machado, seria um ganho, e apontaria para um futuro promissor: “Interrogando a vida brasileira e a natureza americana, prosadores e poetas acharão ali farto manancial de inspiração e irão dando fisionomia própria ao pensamento nacional”.

 

Machado volta-se também à recepção das obras: o público, alicerçado nessa tradição, preferiria Basílio da Gama a Gonzaga, por exemplo. O público, em última instância, no ver de Machado, teria dado preferência à tradição romântica que buscava construir uma genealogia para a incipiente “nação”. Mas então vem ele e afirma que preferir Basílio da Gama ou Santa Rita Durão a Gonzaga seria “um erro”. Diz ele que valorizar a obra de Basílio da Gama ou de Santa Rita Durão em detrimento dos neoclássicos seria empregar um “critério injusto”: embora neoclássicos, não haveria por que censurá-los por “não haverem trabalhado para a independência literária, quando a independência política jazia ainda no ventre do futuro, e mais que tudo, quando entre a metrópole e a colônia criara a história a homogeneidade das tradições, dos costumes e da educação.” Além disso, era preciso ver, diz Machado, que Basílio da Gama e Durão pretendiam, muito mais do que tornar independente a literatura brasileira, ostentar certa cor local.

 

Percebe-se, aqui, o primeiro salto machadiano: enquanto recupera uma linha de força na literatura brasileira, que exclui os neoclássicos como Gonzaga, ele, ao mesmo tempo, a desautoriza, porque a exclusão seria equivocada, fruto de um anacronismo: não se deve, em suma, exigir de um tempo passado aquilo que ele não nos pode dar...

 

A partir daí, Machado retorna a Gonçalves Dias, destacando os argumentos daqueles que se opunham ao indianismo como índice de nacionalidade literária. Retoma, na verdade, a linhagem que se estende de Santa Rita Durão a Gonçalves Dias e lhe contrapõe os argumentos daqueles que a contestam, por afirmarem não haver relação da poesia brasileira com a “raça extinta”. Machado, assim como contestara a exclusão dos árcades, com seus idílios pastoris, contesta, na seqüência, também a exclusão do indianismo: tudo, para ele, é matéria de poesia:

 

“É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos da nossa personalidade literária. Mas se isto é verdade, não é menos certo que tudo é matéria de poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os elementos de que ele se compõe. Os que, segundo o Sr. Varnhagen, negam tudo aos primeiros povos deste país, esses podem logicamente excluí-los da poesia contemporânea. Parece-me, entretanto, que, depois das memórias que a este respeito escreveram os Srs. Magalhães e Gonçalves Dias, não é lícito arredar o elemento indiano da nossa aplicação intelectual. Erro seria constituí-lo um exclusivo patrimônio da literatura brasileira; erro igual fora certamente a sua absoluta exclusão”.

 

É importante observar, a partir dessa citação: Machado discorda das críticas ao indianismo, por tenderem à exclusão do “elemento indiano” como matéria de poesia; concorda com elas, de outra parte, na medida em que se opõe ao indianismo como matéria exclusiva de poesia.

 

Por outro lado, não estando no indígena todo o patrimônio da literatura brasileira, com o que ele concorda com as críticas ao indianismo vigente na literatura brasileira, estariam os escritores, afirma ele, buscando outras fontes de inspiração: o passado histórico, cenas do presente, a cor local da “natureza americana”. Evidentemente, esses escritores, ao incorporarem outros temas à literatura, estariam “abrindo o leque” do que significava fazer literatura brasileira. Ainda assim, haveria aqui uma “opinião errônea”, a de que só se deva atribuir espírito nacional às obras que tratam de assunto local:

 

“Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.”

 

A citação tem um sentido evidente: Machado “estoura” com a tradição do indigenismo, ao mesmo tempo em que rompe com aqueles que, mesmo alargando o leque do que pudesse significar literatura nacional, a encarceravam nos limites do local.

 

Esse o resumo da primeira parte do ensaio de Machado. E dele podemos extrair duas questões básicas, já indicadas anteriormente. A primeira é a de que o horizonte de Machado, em 1873, ano da publicação do ensaio, ainda é aquele desenhado pelo Romantismo: é forte a presença dos índices de nacionalidade literária românticos, como a cor-local, o indigenismo, a natureza americana, o que lhe permite construir e rastrear uma das linhas de continuidade da literatura brasileira, a se estender de Santa Rita Durão a Gonçalves Dias. A outra é que, se o horizonte discursivo de Machado ainda é o do Romantismo, esse discurso não é, pura e simplesmente, assimilado como tal: ao mesmo tempo em que Machado reconstitui o discurso romântico, ele o destrói em sua exclusividade.

 

Trata-se, na verdade, de um diálogo. Acompanhe-se a lógica argumentativa de Machado. Ele utiliza uma tática discursiva que afirma algo para, a seguir, negá-lo, sem excluir o negado. Se Machado identifica o “instinto de nacionalidade” com as “cores do país”, ele, em seguida, questiona a exclusividade desse critério; ao analisar o indianismo e a reação ao indianismo, nega o exclusivismo do indianismo, sem rejeitá-lo, no entanto, como uma das fontes de inspiração literária; se concorda com que os “costumes civilizados” e a natureza do país devam ser contemplados, nega, de outra parte, também o exclusivismo dessa noção, por considerá-la caudatária da concepção que somente identifica a presença do espírito nacional em obras que tratam de assunto local. Machado, assim agindo, constrói, revigora, revive os argumentos em voga em sua época, para, sempre, a seguir, desconstituí-los como tal, isto é, em sua exclusividade.

 

Em oposição, propõe a sua chave: a existência necessária de um certo “sentimento íntimo”, que torne o escritor “um homem de seu tempo e de seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”.

 

Essa lógica argumentativa, assim como a expusemos, leva, necessariamente, à transformação da tradição romântica: se Machado realiza uma síntese do pensamento romântico sobre a literatura brasileira, ele, ao mesmo tempo, coloca o Romantismo sob suspeita, não necessariamente negativa, através do constante afirmar e negar, sem excluir o negado. Ele, na verdade, desautoriza a exclusividade da concepção romântica. E se a literatura, à época em que escrevia o ensaio, abria o seu leque para assuntos como o sertanismo e a temática urbana, Machado abre ainda mais o leque: tudo é assunto para a literatura “nacional”, desde que se preserve o “sentimento íntimo”, ou seja, se preserve, diríamos hoje, o lugar de onde se observa o mundo.

 

Isso, quanto à primeira parte do ensaio de Machado, enquadrando-o diante do romantismo cor-localista. Antes de retornar a essa questão, cumpre, ainda, lançar um rápido olhar à segunda parte do texto, em que aborda os diferentes gêneros literários e sua expressão no País. Depois de lamentar a insuficiência da crítica, lacuna que ele próprio buscaria preencher, através de seus ensaios críticos, Machado tece uma breve apreciação a respeito do romance, a forma “mais apreciada” no Brasil, diante da inexistência, diz ele, de estudos especializados, como a filosofia, a lingüística, os estudos de crítica histórica, numa percepção, por sinal, extremamente avançada para a época sobre o papel fundamental exercido pela literatura no Brasil como meio de indagação sobre a ou construção da formação nacional — vale lembrar, a propósito, que os estudos, ainda assim de cunho ensaístico-literário, sobre a formação nacional brasileira iniciam-se somente nos anos trinta do século passado, com Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, ao lado de Caio Prado Júnior. Investigando, portanto, essa forma “mais apreciada” pelo público, dedica-se a mapear a temática do romance brasileiro existente à sua época:

 

“Aqui o romance, como tive ocasião de dizer busca sempre a cor local. A substância, não menos que os acessórios, reproduzem geralmente a vida brasileira em seus diferentes aspectos e situações. Naturalmente os costumes do interior são os que conservam melhor a tradição nacional; os da capital do país, e em parte, os de algumas cidades, muito mais chegados à influência européia, trazem já uma feição mista e ademanes diferentes. Por outro lado, penetrando no tempo colonial, vamos achar uma sociedade diferente, e dos livros em que ela é tratada, alguns há de mérito real”.

 

Num segundo momento, crucial para a produção ficcional de Machado, vêm as assertivas:

 

“Do romance de análise, raríssimo exemplar temos, ou porque a nossa índole não nos chame para aí, ou porque seja esta casta de obras ainda incompatível com a nossa adolescência literária”

 

“Pelo que respeita à análise de paixões e caracteres são muito menos comuns os exemplos que podem satisfazer à crítica; alguns há, porém, de merecimento incontestável. Esta é, na verdade, uma das partes mais difíceis do romance, e ao mesmo tempo das mais superiores. Naturalmente exige da parte do escritor dotes não vulgares de observação, que, ainda em literaturas mais adiantadas, não andam a rodo nem são partilha do maior número”

 

Não é preciso enfatizar, creio: enquanto Machado mapeia a produção romanesca local, aponta, na seqüência, assim como já o fizera para a atividade crítica, para uma lacuna que considera de vulto: a quase ausência de romances de análise, a análise “de paixões e caracteres”, em que, em sua produção romanesca, todos o sabemos, Machado iria justamente insistir: seus romances pautam-se pelo confronto de caracteres. A crítica, aqui, anda de mãos dadas com o seu projeto estético.

 

Situação similar ocorre com o conto. Dele Machado afirma serem as tentativas raras, decorrentes, talvez, da natureza do próprio gênero:

 

“É gênero difícil, a despeito de sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.”

 

Considerando-se a extensa produção de contos ao longo de sua carreira como ficcionista — mais de duzentos — pode-se afirmar que a lacuna entrevista por Machado, não obstante exercitasse o conto desde a década anterior, e, nesse sentido, pudesse, no ensaio, estar, no momento, a reivindicar a devida atenção a sua própria produção jornalística e ficcional, o levaria, em seu papel de ficcionista, ao longo da vida, a se transformar num exímio cultivador do gênero. 

 

É por isso que afirmava, anteriormente: Machado mapeia a produção local, dialoga com ela, e, importante, percebe-lhe as lacunas, a serem virtualmente preenchidas com a sua atividade ficcional. Pega, em outras palavras, a tradição local, a vira e a revira pelo avesso, percebe-lhe as falhas “formativas”, para saná-las. A isso se pode denominar de empenho crítico, no sentido de rastrear e estudar a tradição, e de se preparar para nela intervir. Também é nesse sentido que se pode afirmar que a obra de Machado não será fruto do acaso, ou da genialidade inata do escritor. Há o estudo, a aplicação, e não simplesmente a atividade até certo ponto lúdica do escritor de final de semana.

 

Mas retomemos o fio da meada, deixando, por ora, essas questões nas sombras, embora fundamentais para o que viria a ser o Machado ficcionista, para divisar as suas posições diante das grandes linhas que orientavam a literatura de sua época. Afirmava, anteriormente, que o Autor, no “Instinto”, dialogava com as posições românticas; ao negar, no entanto, o seu exclusivismo, aproximava-se das posições vigentes ao final do século, apontando, no mínimo, para elas. Aproxima-se das posições vigentes ao final do século, mas não converge para elas, ficando na transição entre o Romantismo e o Realismo, ao mesmo tempo em que os ultrapassa, como será possível ler nos textos críticos posteriores, em que aborda o Realismo: “O Primo Basílio”, de 1878; e “A nova geração”, de 1879. São textos que se situam às portas de um Memórias póstumas de Brás Cubas, portanto. Deixemos Machado falar por si mesmo, através de excertos que nos dêem uma possível chave para a leitura das narrativas ditas “maduras” de nosso Autor. Vejamos alguns.

 

De “O Primo Basílio”:

 

“Não peço, decerto, os estafados retratos do romantismo decadente; pelo contrário, alguma coisa há no realismo que pode ser colhido em proveito da imaginação e da arte. Mas sair de um excesso para cair em outro, não é regenerar nada: é trocar o agente da corrução”

 

“Resta-me concluir, e concluir aconselhando aos jovens talentos de ambas as terras da nossa língua, que não se deixem seduzir por uma doutrina caduca, embora no verdor dos anos. Este messianismo literário não tem a força da universalidade nem da vitalidade; traz consigo a decrepitude. Influi, decerto, em bom sentido e até certo ponto, não para substituir as doutrinas aceitas, mas corrigir o excesso de sua aplicação. Nada mais. Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o realismo, assim não sacrificaremos a verdade estética.”

 

De “A nova geração”:

 

“A nova geração chasqueia às vezes do romantismo. Não se pode exigir da extrema juventude a exata ponderação das coisas; não há impor a reflexão ao entusiasmo. De outra sorte, essa geração teria advertido que a extinção de um grande movimento literário não importa a condenação formal e absoluta de tudo o que afirmou; alguma coisa entra e fica no pecúlio do espírito humano. Mais do que ninguém, estava ela obrigada a não ver no romantismo um simples interregno, um brilhante pesadelo, um efeito sem causa, mas alguma coisa mais que, se não deu tudo o que prometia, deixa quanto basta para legitimá-lo. Morre porque é mortal.”

 

“Ia-me esquecendo uma bandeira hasteada por alguns, o realismo, a mais frágil de todas, porque é a negação mesma do princípio da arte.”

 

“(...) a realidade é boa, o realismo é que não presta para nada.”

 

O que nos evidenciam essas citações? Que Machado, coerentemente com o que já indicava o “Instinto”, se situa entre as teorias românticas, que não mais adota mas que não renega, e as teorias do Realismo, Naturalismo, diríamos hoje, que (re)conhece mas não acompanha. É nesse sentido que se pode afirmar que Machado, às vésperas do Memórias póstumas de Brás Cubas, percebe claramente o “brete” em que se encontrava não necessariamente a literatura brasileira, mas principalmente ele, como artista: ou se atinha aos velhos preceitos românticos, mesmo que mitigados, como em sua obra da “primeira fase”, ou aderia ao Real-naturalismo, que renegava. Ou, em última instância, buscava um outro caminho.

 

Afirmava que esses dois textos, acima citados, encontram-se no limiar de um Memórias Póstumas de Brás Cubas, que os nossos manuais, guiados por uma historiografia idealista de origem européia, insistem em classificar como “realista”. Memórias Póstumas é, evidentemente, um texto “realista”, se pensarmos no sentido lato da palavra; é, possivelmente, um dos textos mais brutais que já se escreveu sobre o comportamento de um segmento da classe dominante local; mas não é um texto realista, ou naturalista, em termos de escola literária. Machado o sabia e o dizia: “a realidade é boa, o realismo é que não presta para nada”.

 

Esta, portanto, é a sua poética: navegar entre dois mundos. Vejam a imagem que Machado constrói sobre o que seja a literatura nacional no “Instinto de nacionalidade”: ela é absolutamente fluida. O seu mundo não é mais o dos românticos, mas também o é, na medida em que não o descarta em termos absolutos; e também não o seria aquele mundo que estava a se forjar nos anos 70/80, como se pode perceber pelos textos críticos que abordam “O Primo Basílio” e “A nova geração”.

 

Aliás, é preciso perseguir um pouco mais esses textos, o primeiro em especial, para se perceber a concepção de Machado sobre o que era fazer literatura. No “O Primo Basílio”, afirma:

 

“Ora bem, compreende-se a ruidosa aceitação do Crime do Padre Amaro. Era realismo implacável, conseqüente, lógico, levado à puerilidade e à obscuridade. Víamos aparecer na nossa língua um realista sem rebuço, sem atenuações, sem melindres, resoluto a vibrar o camartelo no mármore da outra escola, que aos olhos do Sr. Eça de Queirós parecia uma simples ruína, uma tradição acabada. Não se conhecia no nosso idioma aquela reprodução fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis. Pela primeira vez, aparecia um livro em que o escuso e o — digamos o próprio termo, pois tratamos de repelir a doutrina, não o talento, e menos o homem, — em que o escuso e o torpe eram tratados com um carinho minucioso e relacionados com uma exação de inventário.”

 

“Porque a nova poética é isto, e só chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou esfregão de cozinha.”

 

A propósito da heroína Luísa, Machado escreveria ainda:

 

“A tarde e a noite gasta-as a pensar ora no primo, ora no marido. Tal é o intróito de uma queda, que nenhuma razão moral explica, nenhuma paixão, sublime ou subalterna, nenhum amor, nenhum despeito, nenhuma perversão sequer. Luísa resvala no lodo, sem vontade, sem repulsa, sem consciência.”

 

“Ora, a substituição do principal pelo acessório, a ação transplantada dos caracteres e dos sentimentos para o incidente, para o fortuito, eis o que me pareceu incongruente e contrário às leis da arte.”

 

“O lenço de Desdêmona tem larga parte na sua morte; mas a alma ciosa e ardente de Otelo, a perfídia de Iago e a inocência de Desdêmona, eis os elementos principais da ação. O drama existe porque está nos caracteres, nas paixões, na situação moral dos personagens: o acessório não domina o absoluto;”

 

Daí a necessidade de se ler o Machado “maduro” na contramão, sempre, do Realismo/Naturalismo à Eça: o que lhe interessa não é a descrição minuciosa do acessório; o que lhe interessa é o “drama moral” que habita as personagens, surgido do conflito entre caracteres distintos. Só para ilustrar: que drama, afinal, poderia ter um padre em Portugal ao saber que seria pai, se, em suas aldeias, e não na França, de onde vem o modelo de Eça, era usual os padres terem filhos? Trata-se, a seu ver, de um drama moral sem motivações, beirando o inverossímil. Para Machado, deve imperar o conflito de caracteres, derivado de situações narrativas verossímeis, e não a descrição do acessório.

 

É isso, e isto estará lá nas Memórias póstumas, ou em Dom Casmurro, para citar dois exemplos: a descrição não deve se sobrepor à narração. Intencionalmente, utilizei e destaquei os termos descrição e narração. É que a profunda percepção de Machado a respeito do que seja a narrativa lembra Georg Lukács, em “Narrar e descrever”[15], a destacar dois métodos de composição, a narração e a descrição, e lembra, também, o ensaio fundamental de Antonio Candido, “A Dialética da malandragem”, em O discurso e a cidade, a propósito dos penduricalhos em Memórias de um sargento de milícias, vistos como pontos fortes do romance por uma crítica de tradição romântica, nacionalizante, que enfatiza a cor-local, a exterioridade, enquanto a ação, as personagens em relação, oscilando entre a ordem e a desordem, traço típico de todo um segmento social do Brasil escravista, seria o grande trunfo do romance de Manuel Antônio de Almeida. Isso Machado já intuíra, em pleno século XIX, e explicitara, em sua atividade crítica; e o aplicaria, em sua atividade de ficcionista. Para a tradição local, esse achado seria de alcance inestimável: ele possibilitaria a Machado liquidar com o descritivismo cor-localista romântico, e, é bom assinalar, nacionalizante, e simultaneamente com o descritivismo naturalista, à Zola e Eça. Machado instaura, em suma, uma concepção literária antipenduricalho, em que o nacional não se encontra na descrição dos costumes locais, das procissões das festas do Divino, por exemplo, mas nas paixões e conflitos que se instalam entre personagens incrustados na dinâmica da vida local.

 

Mas voltando ao crítico Machado e a seu discurso entre o Romantismo e o Realismo/Naturalismo: esse discurso aberto, de fundo dialético, que através do constante afirmar para negar, sem excluir o negado, como vimos no “Instinto”, rechaça o Romantismo mas não o abjura, enquanto não adota os princípios da última moda, isto é, o Realismo de Zola e Eça, deve ter a ver com o tempo em que Machado escrevia. O escravismo brasileiro, nos anos 70, entra em crise, juntamente com as instituições que este alicerçava e que, de outra parte, o cimentavam, o Romantismo entre eles. No bojo da crise, frações “modernizantes” se agitam no sentido de se alçarem ao poder. Entre esses dois tempos, e lugares, afirmava, encontra-se Machado. Seus textos, emparedados entre dois diferentes projetos históricos, são espécie de elo, passagem entre esses tempos, mas também espaço de libertação, na medida em que não se confundem nem com um nem com outro.

 

Esse é um dado interessante, ao se pensar na condição de Machado como intelectual do II Império: a sua biografia sócio-intelectual indica uma extração social diferenciada do conjunto daqueles que compunham majoritariamente a nossa “República das Letras”. A sua história é a de um homem-livre que ascendeu socialmente durante a vigência do Império. Daí que se pode afirmar: ou se deixava cooptar; ou, outra alternativa, aderia ao “moderno”, o Naturalismo à Eça, ou, por último, e menos fácil, encontrava um outro caminho. Parece que Machado encontrou, utilizando a conhecida metáfora roseana, “a terceira margem do rio”: o Machado “maduro” não firma compromissos nem com o imaginário da nação monárquica, consubstanciada, literariamente, no Romantismo, nem com o imaginário que vinha sendo construído pelos grupos modernizantes que, a partir do alto, pretendiam transformar o regime escravista, com as conseqüentes reformas econômico-ideológico-políticas: mão-de-obra formalmente livre, republicanismo, federalismo... A sua saída seria o meio-termo, o discurso aberto, aparentemente “liso”, mas que tinha o dom de se abrir à história. A sua peculiar dialética estilística, “tartamuda”, no dizer de Sílvio Romero, como ainda veremos, é parte do jogo social de Machado, que, assim, se descompromissa quer com o Império, quer com a República, e com o que essas instituições representavam, em termos sócio-históricos. Entre a crise histórica das elites do Vale do Paraíba, os compromissos dos que vinham “de baixo”, e a história a ser construída por aqueles que colocavam a sociedade escravista em xeque, juntamente com a monarquia que a representava, Machado compõe, enfim, o seu universo, não diretamente colado aos projetos históricos em disputa.

 

Por aí se pode perceber como se pode ler Machado: como um escritor do II Império, social e politicamente emparedado, que busca uma “terceira margem” enquanto se forma como escritor diante de um público leitor que também precisa ser formado; como “um escritor de seu tempo e de seu país”, enfim, que consegue, através de seu estilo arredio, formalizar literariamente a forma social.

 

A questão toda que aqui se impõe, ainda assim, embora se tenha apontado para o discurso enviesado do Machado “maduro” como uma das marcas da solução que daria ao impasse que se lhe antepunha, seria: mas qual seria essa “terceira margem”? Uma das possíveis respostas se encontra na diatribe entre Machado e Sílvio Romero, e nas próprias afirmações do Machado ficcionista.

 

Em “A nova geração”, Machado de Assis escreve uma página crítica a respeito de Sílvio Romero:

 

“Os Cantos do fim do século podem ser também documento de aplicação, mas não dão a conhecer um poeta; e para tudo dizer numa só palavra, o Sr. Romero não possui a forma poética. Creio que o leitor não será tão inadvertido que suponha referir-me a uma certa terminologia convencional; também não aludo especialmente à metrificação. Falo da forma poética, em seu genuíno sentido. Um homem pode ter as mais elevadas idéias, as comoções mais fortes, e realçá-las todas por uma imaginação viva; dará com isso uma excelente página de prosa, se souber escrevê-la; um trecho de grande ou maviosa poesia, se for poeta. O que é indispensável é que possua a forma em que se exprimir. Que o Sr. Romero tenha algumas idéias de poeta não lho negará a crítica; mas logo que a expressão não traduz as idéias, tanto importa não as ter absolutamente. Estou que muitas decepções literárias originam-se nesse contraste da concepção e da forma; o espírito, que formulou a idéia, a seu modo, supõe havê-la transmitido nitidamente ao papel, e daí um equívoco. No livro do Sr. Romero achamos essa luta entre o pensamento que busca romper do cérebro, e a forma que não lhe acode ou só lhe acode reversa e obscura: o que dá a impressão de um estrangeiro que apenas balbucia a língua nacional.”

 

Sílvio Romero, em seu Machado de Assis. Estudo comparativo de literatura brasileira, ou em sua História da literatura brasileira, de sua parte, não deixaria por menos:

 

“O estilo de Machado de Assis não se distingue pelo colorido, pela força imaginativa da representação sensível, pela movimentação, pela abundância, ou pela variedade do vocabulário. Suas qualidades mais eminentes são a correção gramatical, a propriedade dos termos, a singeleza da forma.

 

“O nosso romancista não tem grande fantasia representativa. Em seus livros de prosa, como nos de versos, conforme deixemos notado, falta completamente a paisagem, falham as descrições, as cenas da natureza, tão abundantes em Alencar, e as da história e da vida humana, tão notáveis em Herculano e em Eça de Queirós.

 

“O estilo de Machado de Assis, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia exata do seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. Correto e maneiroso, não é vivace, nem rútilo, nem grandioso, nem eloqüente. É plácido e igual, uniforme e compassado. Sente-se que o autor não dispõe profusamente, espontaneamente, do vocabulário e da frase. Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da linguagem.

 

“Machado de Assis repisa, repete, torce e retorce tanto suas idéias e as palavras que as vestem, que deixa-nos a impressão dum tal ou qual tartamudear. Esse vezo, esse sestro, tomado por uma coisa conscientemente praticada, elevado a uma manifestação de graça e humour, era o resultado de uma lacuna do romancista nos órgãos da palavra.”

 

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“Depois da mutação por que, de 1870 em diante, foi passando o espírito dos intelectuais brasileiros, sob a influência partida da escola do Recife, houve certo grupo de românticos que não tiveram a coragem de atirar fora a velha bagagem e tomar outra nova, entrando nesse renovamento do pensar nacional pela crítica, e começaram a se mostrar amuados, displicentes, irônicos, desgostosos, rebuscados, misteriosos e pessimistas.

 

“Impotentes já, pela idade, de tomar um partido definido entre as grandes correntes filosóficas que dividiam o século, materialismo, positivismo, evolucionismo, monismo transformístico, hartmannismo, ficaram a burilar frases com o ar enigmático de faquires, falando em nome de não sabemos que cousas ocultas que fingiam saber.

 

“Neste singular grupo Machado de Assis foi o chefe de fila. [...]

 

“O Machado de Assis dos últimos anos era fundamentalmente o mesmo eclético de trinta ou quarenta anos atrás: meio clássico, meio romântico, meio realista, uma espécie de juste-milieu literário, um homem de meias-tintas, de meias palavras, de meias idéias, de meios sistemas, agravado apenas pelo vezo humorístico, que não lhe ia bem, porque não ficava a caráter num ânimo tão calmo, tão sereno, tão sensato, tão equilibrado, como era o autor de Tu Só, Tu, Puro Amor.” [16]

 

Ora, o que se pode retirar dessa polêmica, e do tom inclusive maldoso de Sílvio Romero, ao se considerar que Machado era realmente gago, é ler produtivamente, dizia, as observações de Sílvio Romero. Num sentido, já o fizemos, ao situar Machado entre o Romantismo e o Realismo. É possível fazê-lo também estilisticamente, lendo Machado sob o olhar de Romero, só que com o sinal invertido: o estilo “tartamudo”, retorcido, de Machado de Assis pode ser visto como o caminho para ele poder ter dito tudo o que disse em pleno II Império.

 

Machado tinha clareza disso. Tanto que poderíamos — sem confundir crítica e ficção, toda ela, a ficção, anotada, ainda assim, por indicações de ordem estética, maneira de Machado educar seu leitor — lembrar, junto aos textos críticos, o final do conto “Teoria do medalhão”, de Papéis avulsos, de 1882, que pode ser lido como espécie de síntese do “projeto estético” de Machado:

 

“— Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça.”

 

Era uma resposta, antecipada, ao livro de Sílvio Romero e era, também, uma profissão de fé numa outra tradição literária: a do humour, que passava por Swift, Voltaire, Xavier de Maistre e, principalmente, Laurence Sterne. Entre o passadismo romântico e o Realismo/Naturalismo, Machado optava por uma tradição de longa duração no Ocidente, a se exprimir principalmente na vertente anglo-saxônica, através de Swift e Sterne.

 

 

 

O ROMANCE DE MACHADO DE ASSIS

 

 

3.1 Inserção no campo cultural e trajetória do romancista

 

O romance é a forma literária burguesa por excelência, em que convivem indivíduos solitários em busca de valores autênticos numa sociedade degradada pela mercadoria e conseqüente reificação de todos, como nos ensina Georg Lukács, em A teoria do romance [17]. É, nesse sentido, uma biografia, a narrativa da trajetória de um indivíduo num determinado contexto histórico e social, no caso, o mundo europeu, com seus valores e ideologias. O que ocorreria com essa forma, quando deslocada de seu contexto original, ou, no caso, quando transposta para o Brasil? Vale recordar que o romance já existia no Brasil antes de existirem romancistas brasileiros, através da leitura de obras em francês, ou de traduções. O leitor, mesmo se considerarmos o seu número extremamente reduzido, já estava habituado à forma romanesca antes de se buscar a aclimação da forma romance às peculiaridades históricas locais, advindas de uma forma social diferenciada da européia, aqui existente, com o sistema escravista. Escrever romance no Brasil era tentar buscar, nesse sentido, adaptar a forma européia à realidade local, abrasileirando-se-a. Era proeza nada fácil: o romance era biografia de indivíduos num mundo sem deuses, epopéia burguesa, que entrava em conflito com o sistema escravista e patriarcal brasileiro. Quando intentada a sua aclimação, esta apresentava constante descompasso diante das relações oligárquico-patriarcais aqui vigentes. A importação do universo ideológico-cultural burguês, em que se incluía a forma romanesca, confrontava-se, assim, com as determinações específicas do Escravismo. Do confronto gerava-se um espaço ideológico em que a contradição era a norma, e o impasse cultural, entre a valorização das idéias européias “modernas” e a sua desqualificação, era a conseqüência para a vida cultural do Brasil. Forma européia de ver, apreender, expressar e enformar a sociedade burguesa, forma orientada pelos princípios que perpassavam a sociedade burguesa, o romance, em última instância, precisava, aqui, conviver com as especificidades do Escravismo. Esse foi o dilema com que se defrontaram autores como Macedo e Alencar, e também Machado de Assis.

 

Macedo, com textos como A Moreninha, por exemplo, foi de fundamental importância para a fixação de uma fórmula de adaptação do romance à cena local brasileira. Com o triunfo dos barões do café, criaram-se as condições propícias à existência de um público ávido por se reconhecer na narrativa. A descrição da vida na Corte, a atenção a assuntos do momento, presentes no texto de Macedo, iam ao encontro dos anseios e expectativas do leitor, servindo ao diletantismo, ao entretenimento, e de Ersatz à própria mediocridade do meio, pela criação de uma ilusão: a da existência de uma vida cultural “comparável” à européia. Este é o mérito sociológico de Macedo: criar um público leitor, imprimir prestígio à própria condição do escritor — veja-se, a propósito, a admiração de Alencar por Macedo, em Como e porque sou romancista[18]—, instituir, juntamente com outros, as bases do que viria a ser a “República das Letras” no Brasil.

 

Mas e a “fatura” de seu romance? Como se daria a adaptação do folhetim europeu à cena brasileira, empreendida por Macedo? Ora, resumidamente, o resultado seria o seguinte, como afirma Roberto Schwarz, na esteira de Antonio Candido: o esquema da narrativa era aquele tradicional do folhetim europeu — heróis e bandidos, segredos, arroubos românticos, suspense — tudo permeado por uma série de obstáculos que se erguem contra a felicidade dos apaixonados. No final, tudo chega a bom termo. Essas histórias de amor, em andamento de folhetim, alimentadas por lances de romantismo desmedido, é vivida, contudo, por personagens absolutamente banais da época: estudantes descomprometidos, senhoras pacatas e bem intencionadas, convencionais e reconhecíveis. Como a própria paisagem, convencional e reconhecível como a realidade miúda das personagens.

 

Joguemos uma coisa contra a outra: a forma romanesca, seja em sua versão “séria”, seja na do folhetim “capa e espada”, contra o mundo banal da realidade local, com suas personagens a princípio também banais e, principalmente, secundárias da sociedade da época (estudantes e senhoras bonachonas). De um lado, há esse mundo acanhado; de outro, o furor folhetinesco a sacudir o marasmo da vida das personagens. É o momento da paixão desenfreada, dos lances de dramalhão e sentimentalismo exacerbado, a transfigurarem momentaneamente a vida das personagens. No final, contudo, tudo volta ao “normal”, reintegrando-se todos à normalidade e mediocridade. São dois princípios de constituição textual que não fecham completamente. Daí o descompasso, a levar Antonio Candido a afirmar: “Tanto que nos perguntamos como é possível pessoas tão chãs se envolverem nos arrancos romanescos a que [Macedo] as submete.”[19] Macedo justapõe, na verdade, dois princípios: de um lado, a narração de origem e tipologia européia, com que o público leitor já estava minimamente familiarizado; de outro, a descrição da cena local. Daí decorre a fratura romanesca: narração e descrição não fecham uma com a outra. Essa a significação maior de Macedo, lido pelo avesso: a dificuldade de criar um romance congruente com o processo social vigente no Brasil.

 

Alencar seguiria o mesmo caminho. Lembremos, acompanhando Roberto Schwarz em Ao vencedor as batatas, Senhora. Pretende-se um romance sério, tratando de questões cruciais do tempo, como a da importância do dinheiro, e da busca de posição social. O impasse do romance, no entanto, seria semelhante ao que perpassa o texto de Macedo. De um lado, ergue-se a figura de Aurélia, personagem demoníaca (Lukács), construída dentro do melhor modelo europeu. Ela gravita, no entanto, numa constelação social que não lhe é própria. No mundo que a circunda, o conflito do dinheiro tem arranjo; as demais personagens não apresentam qualquer excitação demoníaca. As questões tratadas por Aurélia são questões modernas, do seu tempo, mas trazidas para o âmbito da sociedade patriarcal. O problema seria criar a síntese entre esses dois mundos. De novo, a dicotomia entre o narrar e o descrever: Aurélia carrega o andamento da narrativa, com o seu demoníaco tipicamente burguês; a descrição da vida da Corte, com suas personagens sem maiores conflitos, dá conta da realidade local, “abrasileirando” o romance. De um lado, os grandes temas da sociedade burguesa, do romance europeu; de outro a acanhada e “amena” sociedade patriarcal, vista, aliás, na ótica de um senhor de escravos.

 

Não desejo me alongar nessa questão. Apenas traçar o quadro em que Machado haveria de se inserir. Pelos textos críticos de Machado, percebe-se que ele entrevia esse impasse muito bem: desde as suas primeiras crônicas, até os textos escritos às vésperas de Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado já apontava para o descompasso entre as formas européias e a realidade local. E se os modelos românticos, de um Macedo e de um Alencar, por exemplo, já não lhe convinham, e os modelos do Realismo/Naturalismo de um Eça e Zolá também não, era preciso encontrar um outro caminho para tentar adequar a forma literária ao processo social aqui existente.

 

Machado, sempre tateando, parece ter encontrado, finalmente, o seu caminho. É preciso ver que toda a produção machadiana, como, de resto, outras, constrói-se em processo. Não foi do dia para a noite que o escritor se fez, e encontrou o seu caminho. Parte desse processo pode ser acompanhada pelo seu atilado senso crítico, desde “O Folhetinista” até “O Primo Basílio” e “A Nova geração”. Machado, além disso, era bom leitor, e leitor assíduo dos nossos, não necessariamente pela convergência, mas inclusive pela escritura ao avesso e pela paródia de personagens e cenas já esboçados por um Alencar, por exemplo. O episódio de Eugênia, a coxa, em Memórias Póstumas, não lembra o romance de Alencar, A Pata da Gazela? Marcela não lembra Lucíola? E Paulo não lembra Brás? Ou, como indica John Gledson, o episódio do chapéu no conto “A parasita azul” não lembra a busca do bracelete de Ceci por Peri, e o desfecho, com o reconhecimento mútuo do casal através de uma parasita azul guardada entre as páginas de um livro, não lembra A moreninha? [20] Nesse sentido, a ficção de Machado constrói-se sobre a tradição, dialogando com ela, buscando, no entanto, vetor próprio.

 

Machado de Assis não foi, nesse sentido, um escritor de planície, embora dela necessitasse. Ele, como já o disse, leu, releu, parodiou, no bom sentido, os seus predecessores brasileiros, como Manuel Antônio de Almeida, Macedo e Alencar. Mas leu, também, o seu Shakespeare, e Sterne, com o seu Tristram Shandy, e Swift, entre outros ingleses, como se pode ler, por exemplo — para além de sua obra, em que são constantemente citados –, em Eugênio Gomes. Leu os moralistas franceses, ou Luciano de Samósata e tantos outros, e os russos, como Gogol, sem falar na Bíblia, constante arrimo, mas sempre lida na contramão, de muitas das obras “maduras” do Autor. Machado é, nesse sentido, um escritor que, na periferia do mundo, nutriu-se da experiência brasileira e ocidental para compor a sua obra, desenhando o que ia pelo Brasil e, como refração, o que ia pelo mundo.

 

Nos seus romances iniciais, à exceção de Ressurreição, pode-se afirmar, conforme Roberto Schwarz, que Machado, no que vai uma inflexão autobiográfica, ao modo de leitura de Lúcia Miguel-Pereira, o nosso Machadinho olhava o mundo “de baixo para cima”, vendo as possibilidades, ou não, de ascensão social. Guiomar é pobre, é dependente, mas é bem dotada — era bonita, e sabia o seu francês, piano e bordado — e era íntegra, embora o seu jogo com a Baronesa, sua benemérita. Ela merecia luzir em sociedade, nos diz Machado. Helena já é fruto de uma mentira, e é condenada, ao final do romance, por decisão sua e, diria, também do romancista, em seu moralismo bem comportado. O romance Iaiá Garcia, de sua parte, engloba, como costumo dizer, até como provocação, dois romances num só, o romance de Estela e o romance de Iaiá, atados, ambos, pela figura de Jorge. Romance escrito às vésperas de Memórias póstumas de Brás Cubas, já se entrevê, aí, uma verve não vista nos romances anteriores: a mãe de Jorge prefere a morte do filho, mandando-o à guerra do Paraguai, a vê-lo casado com Estela, a menina pobre, dependente, que seria destinada a Luís Garcia, outro dependente. Estela é espécie de Helena, que renunciara à vida, e também espécie de Lalau de Casa velha, que, extremamente digna, antecipação de uma Eugênia de Memórias póstumas, prefere casar, diante da resistência da “casa grande”, com alguém de sua classe. A nossa Estela, ao final do romance Iaiá Garcia, é bom lembrar, torna-se professora, trajetória possível às meninas pobres, enquanto Iaiá, espécie de Guiomar, é também antecipação de Capitu.

 

Ressurreição, A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia são quatro romances de Machado, dito assim por alto, anódinos, se não os lermos prospectivamente, visando à sua obra posterior, ou, então, retrospectivamente, o que dá no mesmo. Mas, na seqüência, viria a libertação de Machado: Memórias póstumas de Brás Cubas, em que Machado, do alto de seu trapézio, em salto vertiginoso, perpetra a sua conversão, Saulo tornando-se Paulo, sem religião. Trata-se de uma conversão estética e ideológica. Ele passa a ver, a partir daí, a sociedade brasileira “de cima” para baixo, e a denunciar o mundo da classe dominante. É um outro Machado: é o Machado que representa — sempre nas entrelinhas, também é preciso dizê-lo, forma de sobrevivência, aliás, no contexto do II Império — a iniqüidade da classe dominante escravista, através de Brás Cubas, sujeito absoluto de sua classe e, por extensão, dos outros; é o romancista que preside a construção de Bento Santiago, que sucumbe, imaginando, ainda assim, que tem direito a possuí-la, à sedução pela menina pobre, mas que, não suportando os seus, de Capitu, laivos de liberdade, a acusa, numa das possíveis leituras de Dom Casmurro.

 

Nesse sentido, é bom observar: ao se ler os primeiros romances de Machado, tem-se a impressão de que ele passaria a vida a escrever “romancezinhos” à Macedo e à Alencar. Seriam variações sobre o mesmo tema: a menina pobre que “chegou lá”, ou a menina que “não chegou lá”, escrevendo histórias românticas sobre histórias românticas, sempre mitigadas, se comparadas aos romances da época, num lengalenga interminável. O admirável disso tudo é que ele se deu conta disso, e rompeu com essa lógica: enquanto a literatura brasileira se guiava pelo francofilismo, a levar, em última instância, ou ao romance “capa e espada”, ou ao romance romântico “sério”, ou, ainda, ao romance de feição real-naturalista, Machado se afastou dessa linhagem.

 

Não foi, convenhamos, pura e mera intuição de Machado. Foi ato de inteligência: a francofilia era da tradição brasileira, estava em Zola, estava também em Eça de Queirós, a indicar a forte influência da Literatura Portuguesa no Brasil. E estava na “nova geração”, analisada por Machado em ensaio de 1879.  Nisso, é preciso insistir: enquanto a Literatura Brasileira se readequava ao que ia principalmente pela França, Machado foi buscar, esgotadas as suas obras iniciais, o seu “Caminho de Damasco” nas “influências inglesas”, principalmente. Aí o seu diferencial, com um adendo: Machado sempre “rebaixou” tais “influências” à condição local. Fez espécie de “redução sociológica”, capaz de dar dimensão local ao que era uma das vertentes da literatura ocidental. “Homem de seu tempo e de seu país”, adequou, em última instância, o que ia pelo mundo ao seu país.

 

Machado é singular, nesse sentido. Ele pensou a literatura brasileira, e isso é de se destacar. No “Instinto de nacionalidade” já se entrevê esse crítico que, mapeando a literatura local, destaca seus acertos, mas principalmente deficiências, como no romance e no conto, por exemplo. No “Primo Basílio” e no “A nova geração”, ele enfrenta o Naturalismo, súmula literária de todo um campo cultural que se estendia da Filosofia, da Medicina, do Positivismo e do Darwinismo Social à Literatura.

 

“O Primo Basílio” é, nesse sentido, um texto ímpar. Acostumamo-nos a ler a crítica de Machado ao “Primo Basílio” como rejeição, pura e simples, a Eça e ao Naturalismo. Acredito que seja muito mais do que isso. Imagino que Machado, às vésperas de escrever um novo romance, teve que se decidir entre repetir a mesmice, variações sobre o mesmo tema, o das meninas pobres em busca de ascensão social, ou tornar-se um Zola ou Eça à brasileira. Em 1879, diante da crise, a de vir a ser apenas um a mais, mesmo que “moderno”, à Eça, retira-se do Rio de Janeiro, e volta com Memórias Póstumas de Brás Cubas. É o riso largo, a chalaça aparente, numa primeira camada de leitura, mas é, e isto é o principal, também o humour, a contrição no canto da boca, a debicar da e a desnudar, sutilmente, a sociedade local. Isso, ele mesmo o diz, vem da tradição inglesa. Emparedado entre o romance romântico, à Macedo e à Alencar, e espremido pela forma francesa, Machado busca sua saída em outra tradição literária que não a tradicional, sem abrir mão da tradição. Isso requer estudo, e raciocínio crítico. Por isso mesmo, cabe situar o ensaio sobre o “Primo Basílio” entre as duas chamadas “fases” de Machado, entre a primeira, a englobar Ressurreição, A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia, e os romances ditos “maduros” de Machado — Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e o Memorial de Aires.

 

Há um crítico que tem se aventurado a perseguir os caminhos de uma eventual Weltliteratur, dedicando-se a mapear geograficamente o processo de produção e de difusão, nas vias do capital, do romance no mundo, a partir de duas fontes essenciais: a anglo-saxônica, que se estende pelo norte da Europa; e a francesa, mediterrânea. Refiro-me, aqui, a Franco Moretti[21]. A vertente francesa foi a adotada pelo Brasil, relegando-se a anglo-saxônica ao ostracismo. Diante da perspectiva de se tornar um eterno Machadinho, ou então aderir à nova ordem que aqui se instalava, de renovação da vertente francesa, Machado buscaria, como saída, também o imagino, justamente a vertente anglo-saxônica, em que tem forte apelo o aparente disparate, a longa digressão, que parece não dizer nada, mas que pode dizer tudo, ainda mais quando aplicado, o método e a forma, à sociedade brasileira e aos descompassos entrevistos entre a forma literária e o processo social.

 

Na verdade, tudo desdizia do padrão estético-ideológico à mão, quando Machado escrevia o seu Memórias póstumas: ao invés da descrição exaustiva, e do “drama” à Padre Amaro, que Machado desqualifica em seu ensaio sobre o “Primo Basílio”, temos o cinismo de Brás Cubas, ou o padre de Casa Velha, por exemplo, com seu “drama moral” específico, dilacerado entre abençoar o casal ou agarrar Lalau; ou, o que seria gesto derradeiro, mas de ser lido na mesmo ótica, o dilaceramento do Conselheiro Aires, no Memorial de Aires, a vacilar entre o desejo carnal e a análise, aparente, de Fidélia, nome, por si só, carregado de ambigüidade.

 

Mas tudo isso vinha envolto, dizia, numa forma de uma outra tradição literária que não a hegemônica no Brasil. Essa seria a saída de Machado, que tomaria A vida e as opiniões do cavalheiro Tritram Shandy, de Laurence Sterne, romance do século XVIII, como espécie de modelo formal alternativo para a composição de Memórias póstumas de Brás Cubas[22].

 

 

Os romances da “primeira fase”

 

 

Ressurreição

 

Ressurreição é o primeiro romance de Machado de Assis. Como já aponta no ensaio “Instinto de nacionalidade”, Machado ressente-se da falta, na literatura brasileira, do “romance de análise”, de introspecção psicológica, em contraposição às descrições que enfatizavam a cor-local, tomada por índice de nacionalidade pelo romance brasileiro. Preencher essa lacuna será o intento de Machado, ao se aventurar na ficção romanesca: a análise de caracteres, confrontando caracteres antitéticos, colocando, como no caso de Ressurreição, Félix e Lívia no centro da trama romanesca, como se pode ver no esquema abaixo, a englobar, também, outras personagens do romance:

 

1)

 

FÉLIX

LÍVIA

RAQUEL

MENESES

Qualidades exclusivas e defeitos inconciliáveis: amor de dúvidas e suspeitas, a resultar em ciúme, característica inicial/final de Félix

Meiga e alegre, tomada por irritação e melancolia; expansiva e discreta, enérgica e delicada, entusiasta e refletida, levando à resignação final

Amor e sacrifício

Amor cor-de-rosa

 

 

2)

 

VIANA

CECÍLIA

BATISTA

O parasita

Prostituta/ mulher decidida

Modelo de dissimulação e cálculo

 

 

Félix é caracterizado como o eterno ciumento, carregado de dúvidas e suspeitas. Lívia, viúva jovem, a inaugurar, nos romances, a galeria das viúvas machadianas, é caracterizada como sendo meiga e alegre, tomada, por vezes, diante da vacilação de Félix, por irritação e profunda melancolia. As peripécias, a alimentar o possível conflito, vêm dos possíveis impedimentos amorosos que Machado propõe, mas que não se concretizam: o amor de Raquel por Félix; o amor de Meneses por Lívia, capazes de se interporem entre o enlace efetivo de Félix e Lívia. O destaque, na trama, como elemento de impedimento à realização amorosa cabe, no entanto, à perfídia de Batista, a destilar veneno nas relações entre o casal, por intermédio de estratagemas escusos, como o envio de uma carta anônima a Félix, por exemplo.

 

É um romance, nesse sentido, construído por uma lógica absolutamente simétrica: Félix, a princípio, é o par de Lívia. Raquel, no entanto, ama Félix, e Meneses ama Lívia. Poderiam interpor-se à felicidade dos protagonistas. Isso, no entanto, não ocorre, ambos juntando-se ao final do romance, enquanto Félix e Lívia se afastam.

 

Machado, no romance, ao buscar confrontar caracteres, foge ao descritivismo da cor-local, da “natureza americana”, como era de seu programa estético ao início dos anos setenta do século XIX. A história, ainda assim, é deslocada para solo brasileiro, numa aclimação do romance à cena local.  Mas a trama, embora o desfecho que não leva à união dos protagonistas, é, como se percebe, romântica, com seus sobressaltos amorosos, com a presença da figura do “bandido” Batista, inclusive. O legado romântico encontra-se, também, nos demais índices explorados pelo romantismo: o amor febril de Lívia, a linguagem que se refere, ainda, e sem qualquer ironia ou insinuação sutil de devoração da carne, como se pode ler nos romances do Machado “maduro”, “aos seios túrgidos” da personagem, ao lado de outras descrições da mulher talhada conforme as figuras convencionais do Romantismo brasileiro.

 

O narrador, de sua parte, é relativamente ingênuo: assim como ocorre em vários romances da época, ele antecipa, constantemente, através dos títulos dos capítulos, o desenrolar da narrativa e as características das personagens: antecipa as características de Félix e de Lívia, não fazendo os caracteres emergirem de suas ações. São meros tipos literários, ao se lembrar a diferença estabelecida por E. Forster, depois retomada por Antonio Candido, entre personagens “planas e esféricas”[23]: as ações são meras comprovações do já dito, e as características das personagens dadas de antemão, sem variações. Elas não progridem, em suma: Félix é ciumento desde o início da narrativa até ao final, assim como Lívia e as demais personagens mantêm as mesmas características. Daí o tom forçado das “peripécias”, forjadas “de fora para dentro”, para dar andamento ao romance. Mesmo porque, ao final, Félix continua o mesmo Félix, e Lívia a mesma Lívia. Não há, nesse sentido, escavação de um drama moral.

 

Diante disso, o que adquire relevo no romance, dando-lhe certa densidade, ao se projetar a narrativa de Machado ao futuro, é, do longe, a reescrita de Otelo, de Shakespeare, que se entrevê na armadura do romance: Otelo é transformado em Félix, e Lívia em Desdêmona, cabendo a Batista o papel de Iago. Mas quanta diferença: se Otelo é personagem complexa, que se deixa impregnar gradativamente pelo ciúme em relação a Desdêmona, insuflado por Iago, Félix é impermeável à transformação, seja no sentido da redenção ou da salvação. A diferença se torna ainda mais evidente, ao se lembrar que Machado, trinta anos depois, reescreveria Otelo em outra ótica, ao incorporar Iago à própria figura de Otelo, transformando-se Bentinho gradativamente em Santiago, em D. Casmurro.

 

Por fim, vale notar: destaquei duas personagens, no esquema acima, apenas para apontar indícios do Machado futuro, que iria aprofundar esses tipos literários ao longo de sua obra: Viana, o parasita, que vive de favor e às custas de Lívia; e Cecília, a prostituta, antecipações, desbotadas, de figuras como José Dias, por exemplo, em D. Casmurro , e de Marcela, em Memórias póstumas de Brás Cubas.

 

 

A Mão e a luva

 

A partir de A mão e a luva o eixo dos romances machadianos da chamada “primeira fase” estará centrado, não mais em perfis aleatórios, e simétricos do ponto de vista de classe social, mas em perfis marcados pela posição de classe que as personagens ocupam na sociedade brasileira da época. Machado investiga, em outras palavras, enquanto desenha os seus perfis, as possibilidades, ou não, de ascensão social dos homens-livres, dependentes, que não sendo proprietários, tampouco escravos, ocupam um lugar intermediário na sociedade local, vivendo dos favores da classe senhorial. O centro serão as meninas, em idade “casadoira”. Mas esse olhar se espraia, também, para as personagens secundárias, tanto aos principais pretendentes, como às senhoras que povoam os romances, com destaque para as viúvas que ocupam o lugar do patriarca, como, no caso de A mão e a luva, a Baronesa. Esse é o “drama moral” que aflige a personagem: é legítimo utilizar-se do benefício estendido pelo senhor aos pobres, para, através dele, subir na vida e luzir em sociedade? Em Guiomar, o drama é este: o dilema entre ser fiel ao favor recebido — e devido –, o que a jogaria nos braços de Jorge, e a ambição, que a fazia inclinar-se por Luís Alves, também ele um resoluto ambicioso. Por sagacidade de Guiomar, e por bondade da Baronesa, a narrativa tem o seu desfecho conforme o perfil desenhado por Machado desde a infância de Guiomar: a ascensão social fora, desde sempre, o seu propósito: ao invejar o cortejo de moças ricas, olhando-as através da fenda no muro, alegoria do fosso social existente; ou ao afirmar à Baronesa que seria professora, pois seria o que lhe restava, instando, com essa atitude, que a Baronesa a protegesse; e finalmente com o duplo pedido de casamento, dizendo optar por Jorge, o sobrinho da Baronesa a quem devia favores mas deixando mostrar que preferia Luís Alves. A sagacidade e a astúcia vencem, afinal. Guiomar vence, e Machado fica como a querer dizer, ou indagar, sobre a legitimidade que os pobres, competentes, têm ao desejarem subir na vida. Trata-se de uma visão moralista, e conservadora, do jovem Machado, ao indagar-se sobre as atitudes de suas meninas ao desejarem alçar-se à classe superior: a Baronesa é uma senhora bondosa, a acolher os decididos que se amam, o amor impondo-se como conjunção de interesses de dois ambiciosos que alçam vôo na sociedade local, ambos merecendo-se, como a mão e a luva. Ambos vencem, e Guiomar é premiada.

 

Na ordem da composição do romance, ainda assim, impõe-se destacar que, se o romance se alicerça em traços da narrativa comum ao tempo, e às narrativas machadianas da época, incluindo os contos, em que se criam situações que se repetem como fórmula de realce da intriga, como é o caso de Luís Alves servir de embaixador de Estêvão junto a Guiomar, para, finalmente, ele próprio vir a casar com a heroína, trata-se, já, da exorcização do folhetim-romântico exacerbado: Estêvão, ao início, é o pretendente principal de Guiomar, girando a narrativa, em oito de seus dezenove capítulos, em torno de seu amor desbragado pela figura etérea, velada, de Guiomar. No drama romântico corriqueiro, a leitora, por certo, apostaria na felicidade do casal, ao final do livro. Machado, no entanto, conduz a narrativa dentro das expectativas das moças leitoras para deixar Estêvão, entre ameaças de suicídio, uma ida a São Paulo para a cura do amor, e a volta, quando revê Guiomar e o amor inflado volta à tona, abandoná-lo, deixando-o a chorar o amor perdido. É quando entra o drama moral existente entre dependentes e senhores em cena: ela deverá decidir-se por Jorge ou Luís Alves. Colocar a assimetria de classe ao centro do romance, e exorcizar o romance romântico exacerbado era um avanço, por certo, muito embora a assimetria narrativa que, a partir daí, se instaura no romance, com o abrupto desaparecimento de Estêvão e o deslocamento da trama para a assimetria de classes, em que Guiomar surge como vitoriosa, digna de luzir em sociedade.

 

Veja-se, na seqüência, um esquema comparativo dos dois romances até aqui citados:

 

Ressurreição

A mão e a luva

PERFIL 1

PERFIL 2

LÍVIA

GUIOMAR

Entusiasta e refletida, oscilando entre os dois pólos; não ostenta drama moral oriundo da sua condição de classe: ela é assim, como que por natureza.

Sagaz, ambiciosa, decidida (dissimulada?), a viver o seu drama moral específico, entre os compromissos derivados do favor e sua realização pessoal. É drama derivado de sua condição de classe. Vence.

Resultado: resignação

Resultado: sucesso

 

 

Helena

 

Em Helena o drama também se origina da assimetria social: Helena é a menina pobre adotada por rica família. A densidade do drama moral é, em relação a A mão e a luva, intensificada: agora entra em cena a paixão entre a agregada e o herdeiro, entre Helena e Estácio, paixão interditada por ser aparentemente incestuosa; mais ainda, o drama se expande porque, Helena sabendo a verdade, isto é, que não é filha do Conselheiro, pode perguntar-se: é legítimo subir na vida, mesmo a quem tenha “qualidades naturais e prendas da sociedade”, ancorada numa mentira? Não se trata de uma infidelidade à classe que a recebe e a protege? É certo que a mentira lhe é imposta pelo pai, como se pode ler nos capítulos XXV e XXVI, contra a sua vontade, portanto; de outra parte, contudo, há as asas do favor que a protegem; há Estácio; há o seu traço de menina jovial, graciosa, travessa e, poderíamos aduzir, dissimulada. O próprio capítulo IX, em que Helena se dedica a D. Úrsula, e a conquista, é marcado pela dedicação desinteressada, ou pelo cálculo? Para Machado, ainda em perspectiva moralista e conservadora, parece ilegítimo subir na vida assentado na mentira e na traição de classe — a classe dominante, que acolhe Helena. Daí também a renúncia, uma vez desvendada a mentira. E também o assentimento de Helena em casar com Mendonça, que pode ser lido como uma renúncia a casar com Estácio para a devida manutenção da ordem. Querer Estácio implicaria desvendar a mentira; casar com Mendonça significa manter a mentira e o status... Nesse sentido, ela faz os voleios típicos dos homens pobres livres, em busca de ascensão. E a renúncia, não obstante a dignidade revelada a posteriori, somente ocorre quando do desmascaramento da mentira. É ao final que diz não suportar que a supusessem, entre risos, uma “aventureira”. E a regeneração vem pela imolação, à Alencar: a redenção ocorre pela morte.

 

Isso é de se destacar: é uma visão, ainda, romântico-conservadora. O livro todo, aliás, ainda está preso a convenções românticas: é a descrição do talhe de Helena; é o mistério das cavalgadas matutinas; é a casa afastada, do pai legítimo, encimada por uma bandeirola; é a carta escondida às pressas... É a própria possibilidade de incesto, interdito ao amor, a que Machado recorreria outras vezes: são recursos típicos do romance-folhetim, que Machado, a essa altura, ainda incorpora a sua narrativa, seja por leitura e aceitação dos modelos recorrentes, seja por desejar contemplar as expectativas das leitoras ou leitor.

 

Se pensarmos em A mão e a luva, é livro mais homogêneo, ainda assim: os lances românticos não são exacerbados, pois que já exorcizados por Estêvão. E o jogo de interesses aqui é mais forte: entram em cena Camargo e a frívola Eugênia; e a possibilidade de chantagem, ao desvelar-se o segredo de Helena. As próprias relações de trabalho, e da possibilidade de realização pessoal através do trabalho, são diretamente discutidas, como no capítulo XXI: como, numa sociedade escravista, o pobre poderia deixar de ser pobre? Pelo trabalho? Quem o afirma é o liberal Estácio; quem o desdiz é Salvador, o pai de Helena. Machado, aqui, aprofunda o romance, ao discutir a ideologia liberal numa sociedade escravista, e a sua contradição, a ideologia do favor. Independência, quesito burguês, no Brasil ainda se chama orgulho.

 

O livro encontra-se na seqüência de A mão e a luva, e também remete prospectivamente a outros: Helena é uma Guiomar com um vício de origem, para além da sua condição de classe, sanando-o pela renúncia à vida, como Lucíola, mas também remete a Estela, de Iaiá Garcia, e a Lalau, de Casa Velha, e a Eugênia, de Memórias póstumas de Brás Cubas — todas, no entanto, já distanciadas de Alencar que sublima o “erro” através da morte.

 

À semelhança do que se fez anteriormente, veja-se um possível quadro centrado no desenho dos perfis femininos:

 

 

Ressurreição

A mão e a luva

Helena

PERFIL 1

PERFIL 2

PERFIL 3

LÍVIA

GUIOMAR

HELENA

Entusiasta e refletida, oscilando entre os dois pólos; não ostenta drama moral oriundo da sua condição de classe: ela é assim como ela é, como que por natureza.

Sagaz, ambiciosa, decidida (dissimulada?), a viver o seu drama moral específico, entre os compromissos derivados do favor e sua realização pessoal. É drama derivado de sua condição de classe.

a) a priori: jovial, graciosa, travessa, dissimulada.

 

b) a posteriori: a escolha pelo honesto, justo e natural; o “orgulho” se sobrepõe ao favor.

Resultado: resignação

Resultado: sucesso

Resultado: renúncia

 

 

Iaiá Garcia

 

Como já indicado, o romance Iaiá Garcia pode ser lido como dois romances num só, incorporando, de certa forma, os dois romances anteriores de Machado de Assis: A mão e a luva e Iaiá Garcia. Trata-se, na lógica de construção do romance, de acoplar, num mesmo texto, a história de duas meninas que vêm “de baixo”, à semelhança do que ocorrera com Guiomar e Helena: Estela e Iaiá Garcia. Teríamos, deste modo, o “romance de Estela” e o “romance de Iaiá Garcia”, interligados pela personagem Jorge.

 

Iniciemos pelo romance de Estela. Novamente há, aí, o mote da assimetria de classes. Estela é a menina pobre, filha de um subalterno do desembargador já falecido, que cai nas graças da viúva Valéria. Valéria tem um filho herdeiro, Jorge, que se encanta gradativamente por Estela. Esta, no entanto, apesar de amá-lo, resiste, por saber de sua condição de agregada. Passo seguinte, há o episódio dos pombos e a tentativa de Jorge em tê-la à força: “Quem era ela para o afrontar assim? (...) — Não há de sair daqui, sem dizer se gosta de mim. Vamos, responda! Não sabe o que lhe pode custar esse silêncio?”. E então a cena central, de imposição de classe: “Lançou-lhe as mãos à cabeça, puxou-a até si e antes que ela pudesse fugir ou gritar, encheu-lhe a boca de beijos.” Percebendo o possível desenlace entre os dois, ocorre a intervenção de Valéria: urgia fazer algo para separá-los. Jorge, por interferência da mãe, Valéria, vai à guerra do Paraguai. Valéria, para atingir seu intento — antes ver o filho morto a vê-lo casado com uma agregada — apela a Luís Garcia, um funcionário obscuro que devia favores à família, para convencer Jorge da importância de ir à guerra. Valéria deixa um dote para Estela, e a faz casar com Luís Alves, viúvo, pai de Iaiá. Há, depois, a volta de Jorge, e o possível desenlace, diante da morte iminente de Luís Garcia, e a resistência moral de Estela, que renuncia ao amor por Jorge em favor de Iaiá, e a ida a São Paulo, para dirigir uma escola.

 

Esse romance dentro do romance lembra, por certo, Helena, na renúncia da heroína ao final do romance, e por seu orgulho diante da possibilidade de chamarem-na interesseira. Observa-se, no entanto, uma distinção fundamental: a clareza do fosso social, da diferença de classe, por parte de ambos, Estela e Jorge, que pretende se impor a Estela pela violência. Há, também, outro ponto diferencial em relação aos romances iniciais, a violência de Valéria, que manipula a vida dos demais a favor de seus, dela, proprietária, interesses. Nesse sentido, observa-se a percepção, por parte do Autor, de um leque histórico-social mais abrangente, envolvendo não somente os interesses da viúva, membro da classe dominante, mas também os que envolvem a guerra do Paraguai, com o patriotismo de mascarada e a guerra como negócio, como se pode ler já no “segundo romance”, na figura de Procópio Dias.

 

O “segundo romance” dentro do romance é propriamente o de Iaiá Garcia. Filha de um funcionário pobre, Luís Garcia, que, como já frisado, depende de alguns favores da família de Valéria, adentra a casa da viúva, e apega-se a Estela, que viria a ser a sua madrasta. É menina sagaz, capaz de fazer com que o pai, apesar de pobre, retire todas as suas economias para comprar-lhe um piano (e a cena da menina tamborilando na mesa, como se esta fosse um piano, é indescritível...), mas com “dor moral”, já, é bom observar, aos onze anos. Na chegada de Jorge, após a guerra, mostra-se perspicaz e sagaz. É, também, voluntariosa e decidida: “O dia eu não sei. E depois de uma pausa: — Mas que há de se fazer é certo. Ou eu não sei quem sou.”

 

Esse “segundo romance” é, também, e já antecipando outros que viriam pela frente, o romance do ciúme: o ciúme de Iaiá em relação a Estela; e o ciúme calado de Estela em relação a Iaiá. Mas, se pensarmos em Ressurreição, por exemplo, percebe-se a transformação no “drama moral” das personagens: Estela renuncia a Jorge, mesmo após a morte do marido Luís Alves, enquanto Iaiá, tendo percebido os amores antigos da madrasta, tenta enredar Jorge para o bem da vida em família, evitando o adultério, salvando, com isso, o pai de vexame. Esse ciúme se transforma em amor e culmina em ciúme maior ainda, matizado pela renúncia parcial ao final, deixando Estela “livre” para Jorge, enquanto decide se casar com Procópio Dias, o Iago desse segundo romance, mais ainda quando se vê traída pelo mensageiro de Procópio Dias, o próprio Jorge. O final é conhecido: Iaiá tem o seu final almejado, ao lado de Jorge, enquanto Estela se retira.

 

Esse “segundo romance” lembra, nesse sentido, Ressurreição, o Procópio Dias como reencarnação de Batista, e remete, de outra parte, a Dom Casmurro, Iaiá espécie de Capitu. Como romance, encontra-se, poderíamos afirmá-lo, entre Ressurreição e Dom Casmurro, mas lembra, também, A mão e a luva, pelo perfil das personagens Guiomar e Iaiá, contrastes de Helena e Estela, principalmente, como se pode ver nos quadros abaixo:

 

 

Ressurreição

A mão e a luva

Helena

“O romance de Estela”

“O romance de Iaiá Garcia”

 

PERFIL 1

PERFIL 2

PERFIL 3

PERFIL 4

PERFIL 5

 

LÍVIA

GUIOMAR

HELENA

ESTELA

IAIÁ

 

Entusiasta e refletida, oscilando entre os dois pólos; não ostenta drama moral oriundo da sua condição de classe: ela é assim como ela é, como que por natureza.

Sagaz, ambiciosa, decidida (dissimulada?), a viver o seu drama moral específico, entre os compromissos derivados do favor e sua realização pessoal. É drama derivado de sua condição de classe.

a) a priori: jovial, graciosa, travessa, dissimulada.

 

b) a posteriori: a escolha pelo honesto, justo e natural; o orgulho se sobrepõe ao favor.

- consciência de classe

 

- “orgulho”

 

- dissimulação (quando da volta de Jorge)

Sagaz, voluntariosa, decidida, vencedora.

 

Resultado:

resignação

Resultado:

sucesso

Resultado:

renúncia

Resultado:

renúncia

Resultado:

sucesso

 

 

 

Nesse sentido — basta ver os quadros que se tentou desenhar — pode-se afirmar que Machado de Assis talhou, em sua “primeira fase”, perfis femininos que, à luz de Lúcia Miguel-Pereira, seriam sua própria refração, de mulato pobre em busca de ascensão: é justo, e lícito, que os pobres ascendam socialmente? Seria a sua pesquisa, nos romances, modo de, sem questionar a sociedade vigente, revigorá-la através da ascensão dos “bons”, que vinham “de baixo”.

 

Excetuando-se o primeiro romance, Ressurreição, vê-se que Machado de Assis trabalhou, ao início de sua carreira, com dois perfis básicos, derivados da assimetria de classes sociais, com pequenas variações: o da menina pobre que obteve sucesso e o da menina pobre que renuncia à ascensão social: Guiomar obtém sucesso; Helena renuncia; Iaiá obtém sucesso; Estela renuncia. Guiomar e Iaiá são pares; Helena e Estela idem.

 

Falta, nesses quadros, embora alguns indicativos, a progressão de Ressurreição a Iaiá Garcia, principalmente de A mão e a luva a Iaiá Garcia, considerando-se, para tanto, a clivagem de classes, como se observou. Mas, genericamente, pode-se afirmar que Machado, em seus primeiros romances, quando se inclina à análise da diferença de classes, desenha, detalha, esculpe, por primeiro, o perfil de mulher que obtém sucesso em sua ascensão social (Guiomar); depois, aquela que renuncia à ascensão, por escrúpulos (Helena); finalmente, junta os dois perfis num só romance, dito aqui, por motivos didáticos, “dois romances”: o romance de Estela, a que renuncia à ascensão, e o de Iaiá, aquela que consegue “chegar lá”.

 

São variações sobre o mesmo tema, dizia. São variações a que falta, também se pode dizê-lo, a dialética no desenho dos “dramas morais”: enquanto desenhava um perfil, depois outro, quase retilíneos, para justapô-los, sem dissociá-los, em Iaiá Garcia , através de Estela e Iaiá, pares também antitéticos, Machado de Assis, em seu processo formativo, armava, quem o sabe, o que vinha pela frente: a fusão, uma estando na outra, sendo a mesma, de Lívia, Guiomar, Estela, Iaiá em uma só personagem: Capitu.

 

 

O esgotamento de um projeto e os romances da “segunda fase”

 

Percorremos, até aqui, o projeto romanesco/narrativo de Machado de Assis, com o olhar centrado no desenho de perfis femininos, basicamente, procurando acompanhar como ele vai desenhar suas meninas em A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia, principalmente, romances em que tais perfis gravitam numa ordem social assimétrica, as meninas vindas todas “de baixo”. O jogo todo girava em torno da ascensão social possível, numa sociedade dividida em três classes sociais distintas: a dos senhores, a dos homens-livres, e a dos escravos. O olhar de Machado buscava ver as possibilidades de ascensão social existentes aos pobres, no sentido de estes poderem vir a integrar as camadas dominantes da sociedade e renová-la, conforme os seus predicados, o dos pobres. E nessa trajetória, dizia, ele vai esculpindo, uma a uma, as suas meninas pobres — a menina sagaz; a menina virtuosa; a menina que obtém sucesso; a menina que renuncia à escalada social. Em síntese, era isto:

 

Guiomar            sucesso

 

Helena              renúncia

 

Iaiá                sucesso

 

Estela             renúncia

 

Primeiro, há o recorte de Guiomar; depois, o de Helena; por fim, num mesmo romance, o de Iaiá e o de Estela, as duas lado a lado, o que indicava progressão no projeto literário de Machado, mas não capacidade de visualização da totalidade do processo social local. Tanto, que, por provocação, dizia, “transformei” o romance Iaiá Garcia em dois: 1) o romance de Estela e 2) o romance de Iaiá, as quatro, Guiomar, Helena, Estela e Iaiá vislumbrando a ascensão, algumas obtendo sucesso, outras renunciando à ascensão.

 

Trata-se de um olhar, diz Roberto Schwarz, de baixo para cima, as meninas perscrutando as possibilidades de ascender socialmente. Eram, também, e nesse sentido, romances que primavam por uma visão “ética”, ou “moral” do processo de ascensão social: é ético, ou não, subir na vida, no caso, através do matrimônio com o herdeiro? Nesse processo de pesquisa e escrita há progressão, por óbvio: Guiomar se vê dividida entre Estêvão, Jorge e Luís Alves, o único a possibilitar-lhe ascensão. É a junção de duas ambições. Helena cobiça o herdeiro, sabendo que seu meio-irmão de fato não o é; e é diante do desvelamento da mentira que vem a renúncia; Estela cobiça Jorge, que faz de sua condição de classe autoridade suficiente para tentar dominá-la, tendo-a à força ou através do matrimônio, impossibilitado diante da impassibilidade de Valéria, contraponto, bem mais realista, da Baronesa; Estela, em seu “orgulho”, independência na verdade, entre amasiar-se com Jorge, ou casar com outro, prefere o segundo caminho. Iaiá, sagaz, mais complexa que as outras moças, enredada entre a proteção ao pai, ou entre a ordem familiar, e a sua busca de ascensão, acaba apaixonando-se por Jorge, com quem casa, ao final do romance. O amor, enfim, os une, numa ótica progressiva, na construção dos romances, mas não progressista: a sagacidade derrete-se, em final de notação romântica, diante do altar...

 

Vendo-as assim, as quatro, embora a progressão, na verdade mais aparente do que real, porque, no fundo, impera ou o perfil daquela que obtém sucesso ou o daquela que renuncia, temos romances absolutamente simétricos, em termos de “análise de caracteres”, pretensão de Machado: ora é a personagem a que se pode apor um sinal positivo; ora é a personagem a que se pode apor um sinal negativo; ora são duas personagens, distintas, mas lado a lado, em que se pode distinguir entre um caráter positivo e/ou negativo, dependendo da leitura que se faça dos romances. Machado, repetindo, não dialetiza, enfim, suas personagens, como o faria com Capitu, por exemplo, em que juntaria, já o afirmei, as personagens femininas numa única e complexa figura: novamente Capitu.

 

Aliado a essa simetria dicotômica com que Machado constrói suas personagens, temos, também, a visão moralizante de Machado, próxima ao romantismo “sério” de um Alencar, por exemplo. Ou por outra: a análise da assimetria de classe é um avanço; as soluções, conservadoras e moralizantes. Mais: Machado, avançando sobre Alencar, pelo olhar através do fosso social, recua diante dos imperativos da ordem. E seu projeto literário se esgotaria aí. Cabe, aqui, uma questão retórica: o que fazer depois de desenhar uma Guiomar, vencedora; uma Helena, que renuncia; uma Iaiá, que é espécie de Guiomar, e uma Estela, que é espécie de Helena, colocadas, agora, lado a lado, num mesmo romance? Vagar, até o fim, entre esses desenhos, ou “esboços de figuras”, reproduzindo-se Machado num mesmo patamar? Não seria isso a consagração da mediocridade?

 

Mesmo porque, poderíamos dizer, ele não apanha, com esses perfis, a dinâmica da vida social. Com a noção de assimetria social ele a toca, ele a tangencia, ele olha, timidamente, os dois lados da medalha, mas ora de um lado, ora doutro. Em termos de Antonio Candido, diria, ele busca a “redução estrutural”, mas não a apanha, porque não apanha, justamente, a dimensão de totalidade do processo social. São, enfim, esboços de figuras, que ele simplesmente não poderia levar adiante, até por falta de outras figurações — a não ser que ele adentrasse o mundo da escravidão, por exemplo, a significar a sua própria derrocada social, como um outsider, o que não era de seu perfil. Isso demandaria ir à outra margem, se conseguisse quebrar com o viés conservador: seria condenar-se ao ostracismo, como escritor e como homem-livre do II Império, ele próprio em busca de ascensão social. O que fazer? Quem sabe resignar-se, ele próprio, à condição de uma Estela, lembrando, aqui, novamente Lúcia Miguel-Pereira, a vincular vida e obra de Machado, o que significaria renunciar, em última instância, às suas próprias ambições e encastelar-se em sua função pública, escrevendo, quem sabe, aqui e ali, um livrinho insosso, modo de garantir a sua própria sobrevivência como amanuense?

 

Sabemos que Machado não faria nem uma nem outra coisa. As indicações acima, opções extremas, apenas pretendem dimensionar, didaticamente, a “enrascada” em que se encontrava Machado, ao final dos anos 1870. Tinha, à sua frente, uma sociedade rigidamente estratificada. Buscara desenhá-la sob o olhar da ordem, do romance edificante, desbastando as suas menininhas, uma por uma, conforme o mérito de cada qual. Mas essa sociedade estava em crise — Machado percebe-o — e sem capacidade de regeneração. A “Lei dos ingênuos”, ou a Lei do Ventre Livre indicava, apenas, que se estendia, sócio-politicamente, o Escravismo, e a sociedade patriarcal correspondente, até o limite do possível, contestado, ainda assim, pelo Abolicionismo, em suas diferentes variantes, e pelo Republicanismo da “nova geração”. O projeto inicial de Machado de Assis, se o percebermos como um projeto de regeneração das classes dominantes e da Monarquia, através da contribuição dos “de mérito”, mesmo que pobres em ascensão, se esgotara, enfim: ou repetir-se-ia continuamente, ou aderia à nova ordem que se impunha, ou buscava um novo caminho.

 

Daí Machado adoece, vai a Minas, a significar, em última instância, como já indicado, a sua “Estrada de Damasco”, reaparecendo, a seguir, com Memórias Póstumas de Brás Cubas.

 

 

Memórias póstumas de Brás Cubas

 

Em Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado literalmente explode, seja com a tradição do folhetim, seja com a sua visão conservadora da sociedade brasileira. Não por acaso, diria, o faria no momento da crise final do Escravismo, em que a sua visão complacente e otimista do mundo patriarcal cai por terra. Daí o seu salto simultaneamente estético e ideológico, a começar pelo enfoque: a partir daí não lançaria mais o seu olhar preferencialmente aos dependentes e apadrinhados, e a suas possibilidades de ascensão social, colocando, ao contrário, no centro do romance um membro da própria classe dominante, colocando na boca de um representante das elites do II Reinado um discurso revelador de toda a sordidez de uma classe.

 

Se em A mão e a luva Machado exorcizou a tradição do folhetim, se em Helena ele afirma a dignidade dos dependentes, se em Iaiá Garcia ele ainda contrapõe as possibilidades de venalidade e dignidade dos apadrinhados, aqui ele vai arrasar com a elite escravocrata do Sudeste, exorcizando a sua própria visão autocomplacente e conservadora. Trata-se da demolição do mundo da Corte. Não são mais rapazolas que freqüentam a narrativa, ou garotinhas românticas; não são mais, enfim, os “Machadinhos” em versão feminina que formam o núcleo da narrativa. Agora, são personagens adultas e em posição de mando. É a classe dominante, em sua integralidade: Brás Cubas, Virgília, Cotrim..., como depois o seria Bento Santiago. E Machado, na voz de Brás, diz o que essa classe pensa e como ela age.

 

Para tanto, adota um “truque” todo especial, para além da própria ficcionalização do contingente, truque que atravessa praticamente toda a sua obra. As Memórias são póstumas; haverá, ao final da sua carreira, o Memorial de Aires; assim como há o Dom Casmurro, aparentemente afastado da vida social, ao escrever as suas memórias. São textos que jogam o narrado para um passado afastado da vida cotidiana, dificultando, assim, que quem o lê também nele se leia. Disfarces óbvios de quem não adota uma postura real-naturalista: no romance real-naturalista interessa a descrição do mundo presente e a narração do que está a acontecer, o que pouco exige do leitor — o que está dito está dito; em Machado, ao contrário, é preciso ler o não-dito, por detrás do que está dito. O que é bem da forma adotada: a forma solta, do romance digressivo, em que se vão juntando episódios, muitas vezes aparentemente desligados um do outro, para configurar a totalidade.

 

Em Memórias póstumas de Brás Cubas, temos, portanto, de um lado, a classe dominante, absolutamente fútil; de outro, os pobres, a quem nada resta a não ser a miséria: D. Plácida, Marcela, Eugênia... É um retrato da sociedade carioca, se pensarmos num realismo espelhar...        A classe dominante é torpe, historicamente impotente. Os pobres, de sua parte, estão condenados à miséria, e os próprios escravos contaminados pela escravidão, como se percebe no escravo alforriado Prudêncio.

 

O relacionamento entre as classes sociais é atroz. Os mecanismos do “favor” são expostos aí em toda a sua dimensão: impera a crueldade e a mesquinhez, levando-nos para longe do universo de A mão e a luva. Aqui, caridade é descargo de consciência, e, mais do que isso, busca de reconhecimento e de vantagem. A submissão, de outra parte, é sórdida, interesseira, mas inevitável, como ocorre com Dona Plácida.

 

O inventário da escavação do Brasil poderia continuar ad infinitum, começando pela própria genealogia de Brás, em que Machado, num único e curto capítulo, desfaz toda a genealogia romântica a mitificar as raízes do Brasil. O Brasil é Brás, sua abreviação, e sua história é fruto de uma invenção. E chegaríamos a uma única conclusão: não há salvação possível. Resta o deboche, o sarcasmo, o cinismo, ou a loucura de um Quincas Borba, que cria o Humanitismo para explicar a vida: humanitas é tudo, e a todos devora, e sendo tudo, também é nada, porque tautologia...

 

Não se trata, mais, portanto, de mimetismo puro e simples, espelhar. Num romance real-naturalista, essas questões estariam lá, expostas, e seriam lidas assim como expostas, dependendo da ótica do autor. Estariam, em suma, explicitadas. Veja-se o caso do Cortiço, de Aluízio de Azevedo, por exemplo. As mazelas da sociedade estão ali explicitadas. O autor toma partido, tem uma posição ideológica definida, e o leitor transforma-se em leitor-receptor passivo, não obstante poder insurgir-se contra as posições ideológicas do autor. Mas o que está dito, está dito. Em Machado, não. A sua leitura requer, como já indiquei anteriormente, para muito além do desvelamento ideológico que leva o autor a afirmar o que afirma, da participação ativa do leitor. O leitor precisa ler “entre as linhas”, se quiser ultrapassar o nível do mero diletantismo. Precisa entrar no “reino das palavras”. Não é a superfície que interessa a Machado. Por detrás da superfície, há sempre um abismo, que requer desvelamento. Não se trata, portanto, de estabelecer simplesmente um retrato da futilidade da classe dominante, ou da inexorável condenação dos pobres. Machado vai aos porões da sociedade fluminense, para iluminar a hipocrisia e a sordidez da classe dominante sem qualquer resquício de panfletarismo, de postura pró ou contra: ele não diz “é assim, é assado”. Pelo contrário, ele coloca o retrato dessa sociedade na boca de um de seus membros: Brás Cubas.

 

Mas tudo isso ainda são comentários esparsos do romance, da representação social que ele potencializa, e não trata da articulação formal do texto. Por isso, convém olhá-lo mais de perto.

 

Se Machado rejeita a fórmula romântica; rejeita a fórmula real-naturalista de um Zola ou Eça, que ele coloca no lugar? Essa é uma questão básica para a história da “cultura brasileira”. Se Machado não deseja aderir à “norma” do tempo, não deseja aderir aos modelos formais vigentes, calcados na sociedade européia — no caso, nem romantismo nem realismo — o que colocar em seu lugar? Machado dá a chave: a forma livre de Laurence Sterne — Tristram Shandy (1760). As leituras são várias. É possível acompanhar as influências inglesas em Machado rastreadas por Eugênio Gomes. É possível adotar a perspectiva da sátira menipéia, desenvolvida por Enylton Sá Rego em O Calandu e a Panacéia, indicada por Merquior, inclusive no artigo “O romance carnavalesco de Machado”, incluído na edição da Ática. Ou colocar, como o faz Alfredo Bosi, as formas seis-setecentistas em seu lugar. Seja como for, um dado parece importante, em termos de tradição narrativa: Machado toma um modelo narrativo não contemporâneo, pertencente a uma outra tradição literária, como por diversas já enfatizado. Com isso, ele descontextualiza o modelo, ressignificando-o aqui. Ou seja: toma um modelo historicamente esvaziado, lá e cá, para dar conta da realidade local.

 

A isso cabe vincular a questão narrativa: Brás narra a vida de Brás, Brás vivo é objeto da narração do Brás morto. Por detrás, no entanto, encontra-se um autor ausente. O narrador Brás Cubas dá conta da personagem Brás Cubas. O autor ausente dá conta dos dois. A narrativa aparente, claro, é a de Brás: adotando o ir e vir da narrativa livre, Brás narra as peripécias do Brás vivo, a disfarçar-se e a desvelar-se. O desvelar do mundo, claro, é da autoria, mas ausente. Assim, tudo é jogo. E o jogo precisa de uma leitura meticulosa, observando-se, no mínimo, duas instâncias:

 

1. O ir e vir da escrita, o estilo ébrio, como diz Brás, ou tartamudo, ou gago, ou ziguezagueante, sintetizados no narrador volúvel, de Roberto Schwarz, a desvendar os embates ideológicos do tempo de Machado: a arrogância, o despropósito, a constante adesão às e a rejeição das idéias; o enciclopedismo pedante e sem graça, enquanto a tudo se descarta, é princípio constitutivo do romance. É princípio social e princípio formal: a errância da narrativa, redução estrutural do romance, encarna, e formaliza, a própria errância do Brasil da segunda metade do século XIX, com seus desvãos sociais e com o despropósito e desfaçatez de sua classe dominante, representada por Brás Cubas.

 

2. O constante encobrimento e insinuações, mas também indicações de leitura, Machado constantemente se dirigindo ao leitor, nesse jogo entre autoria, narração e sociedade, que passa pelo jogo de metáforas, ou pelo jocoso, pelo sério, pelo riso desbragado, pela fina ironia, e também cinismo, a propiciar, da parte do leitor, leituras “fáceis”, diletantes, e, também, uma leitura em busca do sentido mais amplo do romance, em termos de desnudamento do Brasil do II Reinado.

 

O subenredo criado em torno de Eugênia, a bem nascida, é um bom exemplo do que aqui se afirma. A imagem que Brás vai constituindo de Eugênia e das relações de classe, através do “reino das palavras”, entre o ziguezague, a palavra aparentemente solta, a metáfora que remete a outra metáfora, quase diletantismo do narrador, adquire, no conjunto — confrontadas e dialetizadas palavras e metáforas — uma brutalidade sem precedentes na literatura brasileira, porque encoberta, velada e a ser desvelada.

 

O subenredo “Eugênia” inicia no cap. XII — Um episódio de 1814 –, com Vilaça e D. Eusébia, mãe de Eugênia. Diz o narrador: “Tinham penetrado numa pequena moita; era lusco-fusco; eu segui-os.” (grifo meu, em que se destaca o sentido dúbio da passagem, com conotações sexuais óbvias ao se considerar o resultado desse encontro: Eugênia, a flor da moita.). Intercalam-se mais 12 capítulos. D. Eusébia ressurge no capítulo XXV, e com ela Eugênia, a “flor da moita”. O capítulo XIII chama-se, significativamente, “Um salto”. Do menino mimado de 1814, e sua educação que aponta para o futuro medalhão (Ah! Brejeiro! Ah! Brejeiro!), o narrador passa a outro subenredo: o do seu envolvimento com Marcela. Tudo parece fazer esquecer o episódio de 1814. Marcela, agora, é o centro de interesses, Marcela e as jóias, Marcela e os “onze contos de réis”.

 

Retenhamos a seguinte passagem: “Marcela deixara-se estar sentada, a estalar as unhas nos dedos, fria como um pedaço de mármore. Tive ímpetos de a estrangular, de a humilhar ao menos, subjugando-a a meus pés. Ia talvez fazê-lo; mas a ação trocou-se noutra; fui eu que me atirei aos pés dela, contrito e súplice; beijei-lhos, recordei aqueles meses de nossa felicidade solitária, repeti-lhe os nomes queridos de outro tempo, sentado no chão, com a cabeça entre os joelhos dela, apertando-lhe muito as mãos; ofegante, desvairado, pedi-lhe com lágrimas que me não desamparasse.” O capítulo XVII denomina-se “Do trapézio e outras coisas”. O trapézio é o das idéias fixas. Aqui, a idéia fixa é a compra de diamantes para a reconquista de Marcela.

 

O narrador, assim, abre um subenredo — Eugênia –, intercala o início de outro — Marcela — e volta depois ao anterior. De tal forma que no capítulo XXV, “Na Tijuca”, deparamo-nos, como dizíamos, com Brás e a notícia sobre D. Eusébia e a filha. Estivera ele, entrementes, caçando, lendo, ou não fazendo nada: “deixava-me atoar de idéia em idéia, de imaginação em imaginação, como uma borboleta vadia ou faminta.” A citação, e o grifo, tem um sentido: aqui iniciam-se as metáforas que Machado construirá ao longo dos próximos capítulos, envolvendo as borboletas. Eugênia seria essa borboleta vadia e faminta? É antecipação dos episódios envolvendo a “flor da moita”? Não esqueçamos, para tanto, que “vadia” possui mais de uma acepção em Português.

 

Quando Prudêncio relata a presença, na vizinhança, de D. Eusébia, ocorre-lhe o episódio de 1814. “Mas adverti que os acontecimentos tinham-me dado razão.” Logo a seguir: “Tinham-me dado razão os acontecimentos.” Nova interrupção: nos capítulos XXVI, XXVII, XXVIII, XXIX, surge Virgília, o contraste, por sua distinção de classe, em relação a Marcela e Eugênia. No capítulo XXX reaparece Eugênia, em “A flor da moita”: “e ela sorria, como se lá dentro do cérebro lhe estivesse a voar uma borboletinha de asas de ouro e olhos de diamante...” Eugênia, a “flor da moita”, é equiparada a uma borboleta de asas de ouro e olhos de diamante. Uma primeira inferência: pelas asas de ouro e olhos de diamante, Brás compara Eugênia a Marcela. No encontro com D. Eusébia esvoaça, de outra parte, uma borboleta preta, a bater asas em derredor de Dona Eusébia. O que para ela é superstição, mau-agouro, para ele é “riso superior”: superstição é coisa de pobre, diríamos, mas premonição, também, do que poderia acontecer a Eugênia. Ele expele a borboleta. No capítulo XXXI, adentra-lhe a casa uma borboleta negra, com “um certo ar de escarninho, que me aborreceu muito.” Resultado: “senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.” “—Também por que diabos não era ela azul? Disse comigo” Borboleta preta, borboleta azul: os adjetivos têm peso, conotação de classe: Brás não suporta o ar relativamente independente de Eugênia, a borboleta preta, que o enerva.

 

Não bastasse isso, Brás relata, a seguir, o “defeito” de Eugênia: ela era coxa, “coxa de nascença”. O título insiste na origem: coxa de nascença. Lembra a origem, o nascimento, a marca de classe, a moita, a filha ilegítima: “O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! (...) Por que bonita, se coxa; por que coxa, se bonita?” A boca de Eugênia, por sua vez, lembra a da mãe, e conseqüentemente o episódio de 1814 “e então dava-me ímpetos de glosar o mesmo mote à filha...” Seria uma borboleta com asas de ouro e olhos de diamante, uma Marcela, quem sabe, já que “não podias mentir ao teu sangue, à tua origem”... Mas Eugênia era altiva, “de uns olhos pretos e tranqüilos.” Era a borboleta com um certo ar de escarninho. Não era uma Marcela. Mas era uma borboleta preta, e não azul, e convinha dar-lhe um piparote: “o melhor que há, se não se resolve um enigma, é sacudi-lo pela janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de uma toalha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no cérebro.”

 

E então surge o capítulo “Bem-aventurados os que não descem”, evidente pilhéria com o texto bíblico, em que, ao contrário do que ocorrera com Marcela, aos pés de quem se jogara quando jovem, como vimos em citação anterior, Brás afirma que “ao pé dela [Eugênia] sentia-me bem, e ela creio que ainda se sentia melhor ao pé de mim”, em puro espezinhamento da moça, ele em sua “superioridade” de classe. Seguem “A uma alma sensível”, revelação do cinismo de Brás, e o capítulo “A propósito de botas”, teoria debochada sobre o descarte de Eugênia. A partir daí pode ir em busca de Virgília, a lembrar o poeta latino Virgílio: arma virumque cano, que remete a Virgílio, que remete a Virgília: Virgília não é um texto qualquer. Ao contrário da “Vênus Manca”, é texto clássico. O subenredo “Eugênia” teria, por fim, o seu encerramento, narrado de maneira atroz, no capítulo CLVIII, Brás mais uma vez insistindo na inferioridade da moça: “achei a flor da moita, Eugênia, a filha de Dona Eusébia e do Vilaça, tão coxa como a deixara, e ainda mais triste.”

 

Mas enfim. Recorri a esses trechos para reforçar alguns aspectos:

 

1. O entrelaçamento de metáforas, como a das borboletas, remetendo ora a Marcela, ora a Eugênia, enquanto as contrasta com Virgília, é um dos truques machadianos, a requerer leitura detida;

 

2. A insistência nas palavras, modo de impactar o leitor, outro;

 

3. o ziguezague narrativo, abrindo subenredos, intercalando, nestes, outros, a modo de pequenos contos que se entrelaçam — Marcela, Eugênia, Virgília — é outro recurso estilístico dessa forma “solta”.

 

Por ser uma forma solta — cabriolas de um narrador –, permite, dizia, leituras diferenciadas:

 

1) Uma leitura solta e diletante, assim como o texto a princípio se apresenta, em que se pode acompanhar as firulas do narrador quase como uma brincadeira;

 

2) Uma leitura mais afeita à visão que Brás nos passa da sociedade, da história e do mundo, visão de desencanto, tédio, leitura que diz que o mundo é assim mesmo, que os mais fracos estão condenados, e que aos ricos resta usufruir da vida e luzir em sociedade; e

 

3) Uma leitura histórico-social, classista, que aponta para uma circunstância crucial da vida no II Império: a mola que rege a vida social, na sociedade escravista, é a mola que rege o romance: com o ziguezague narrativo, Machado tanto dá conta da volubilidade ideológica das classes dominantes, como da iniqüidade que perpassa as relações de classe.

 

Essa leitura “pontual” de um subenredo de Memórias póstumas de Brás Cubas, como o de Eugênia, a bem nascida, poderia ser estendida a todo o romance, com seus diferentes subenredos, a tratarem de Marcela, de D. Plácida, de Prudêncio, dos amores com Virgília, por exemplo, e ser estendida aos outros romances da chamada “segunda fase” de Machado de Assis, principalmente aqueles escritos em primeira pessoa, como Dom Casmurro e Memorial de Aires, a quem se deve ler, como diz a crítica mais recente, “com um pé atrás”.

 

 

Quincas Borba

 

O romance Quincas Borba, publicado em livro em 1891, ao contrário de Memórias póstumas de Brás Cubas, é uma narrativa em terceira pessoa, delineada por um narrador onisciente, abrangendo leque bem mais amplo, do ponto de vista do mapeamento da Corte, de sua vida social e sociabilidades instituídas, do que o romance Memórias póstumas. Esse é processo recorrente no Machado de Assis “maduro”: alterna romances em primeira pessoa, aparentemente mais minimalistas, com romances em terceira pessoa, de foco amplo. Assim, se em Memórias póstumas o defunto autor se detém no comentário da sua vida e das suas atitudes como um senhor-de-escravos, que entre o ócio típico de classe e seus relacionamentos com os pobres, leva a sua existência fútil e inútil, e intolerante, a ser lida, ainda assim, como representação do universo abrangente da Corte, a vida pessoal e social como espécie de miniatura do que ocorria pelas entranhas do sistema, em Quincas Borba o foco já seria outro: a ascensão social abrupta do professor de meninos, Rubião, a rico capitalista, por obra da herança deixada por Quincas Borba. A herança possibilitaria a Rubião — Pedro Rubião de Alvarenga — a sua mudança da provinciana Barbacena para a Corte, centro do II Império, com o seu mundo social habitado ainda por senhores-de-escravos, mas também por capitalistas, especuladores, aproveitadores e arrivistas em ascensão, como Cristiano Palha e Sofia, por exemplo, e por parasitas de toda a espécie. O enfoque seria outro, dizia: enquanto nos primeiros romances havia a pesquisa das possibilidades, concretas, ao ver de Machado, de ascensão dos pobres, e enquanto em Memórias póstumas encontramos, ao centro, Brás Cubas tripudiando dos pobres, enquanto se refestela com a sua vida de rico, em Quincas Borba o centro passa a ser a trajetória de Rubião no mundo social da Corte, não se detendo, o romance, nas relações entre ricos e pobres, apenas. O mundo se amplia, enfim. Na seqüência, viria Dom Casmurro, outro romance em primeira pessoa, Bento Santiago dando conta de sua vida pessoal, mas que é também representação do social, enquanto Esaú e Jacó trilharia, novamente, os rumos do romance de lente aberta, dando conta da passagem da Monarquia à República, para, por fim, Machado deter-se na rememoração, em forma de diário, do Império através do Memorial de Aires.

 

Nesse sentido, o de um romance de lente aberta, Quincas Borba é a narrativa da “segunda fase” de Machado de Assis que mais se aproxima do romance “clássico” de século XIX: é uma biografia, a de Rubião, que, depois de enriquecer, parte para a Corte em busca de realização pessoal diante do acanhamento da Província. A biografia realiza-se em um ambiente social amplo, em que pululam, como o escrevi acima, arrivistas como Sofia e Palha — espécie de encarnação de uma Guiomar e um Luís Alves, não explicitada em A mão e a luva –, que desejam “luzir em sociedade”, o que dá bem a dimensão, aliás, da virada ideológica do primeiro Machado em relação ao segundo, ao se considerar os meios empregados pelo casal para obter a ascensão; aproveitadores como Camacho, o jornalista com pretensões políticas que passa a espoliar o novo-rico Rubião; e tantos outros parasitas. Quincas Borba é biografia e crônica social, ao mesmo tempo, a levar, tudo, à ruína do professor de Barbacena: a sua biografia retrata-o como um ingênuo — mas nem tanto, a se considerar os seus cálculos em torno de uma provável herança, quando ainda cuidava do doente Quincas Borba — , a viver do dinheiro que lhe caíra por acaso nas mãos, e a sonhar com a bela Sofia, que o enreda no jogo da atração e repulsa, e que é literalmente esbulhado, o que o leva à falência, à loucura e à miséria, momento em que volta a sua cidade, em que vem a morrer entre os seus delírios de grandeza, a imaginar-se um Napoleão III.

 

Nesse aspecto, portanto, e numa primeira leitura, o romance não possui, de forma ostensiva, o meio-tom, entre a fina ironia, o humour, o sarcasmo carregado com as “rabugens de pessimismo”, como se entrevia no Memórias póstumas. Parece dissecação do social, às claras, como no romance realista “clássico”, em que a personagem se debate em um mundo que não lhe dá guarida.

 

Mas Machado é Machado. Se o romance é realista, aproximando-se da forma “clássica” do romance europeu “sério”, de vertente francesa, ele não é um romance real-naturalista a seguir os ditames em moda à época, permanecendo Machado fiel ao que já professara em “O Primo Basílio”. Prepondera a ação do herói sobre o mundo, e a sua gradativa degradação, e não a descrição. Não há, nele, a “poética do inventário”, longas descrições de cenas de alcova, por exemplo, quando Sofia encontra-se com o marido a falar de Rubião, ou quando sonha com Carlos Maria; não há longas descrições do mundo às avessas, com seus arrivistas e parasitas. Há a indicação e a insinuação, apenas. Tudo isso vazado, formalmente, em capítulos curtos, extremamente sintéticos, a dar conta do que deva ser representado, e não exaustivamente descrito, a englobar a própria dinâmica social do Império ao final da Monarquia, em plena ebulição quando da derrocada da escravidão, pela ascensão social de novos segmentos que passam a fazer parte do jogo sociopolítico.

 

No intermédio de tudo, encontra-se, ainda mais, a matizar esse “realismo clássico”, já matizado pelos capítulos curtos, sem longas explicações do processo histórico-social, de que, ainda assim, dá conta — capítulos que lembram a forma solta de Memórias póstumas –, o desvario, típico da tradição anglo-saxônica, da digressão, da exposição das teorias estapafúrdias, condensadas, no romance, na loucura de Quincas Borba, a “explicar” o mundo através do princípio de Humanitas — “Ao vencedor, as batatas!” — e na própria loucura de Rubião. É crítica, sob o signo do humour, às teorias cientificistas vigentes ao final do século XIX, como o darwinismo social, por exemplo, mas é, também, visão amarga da realidade social, de que Rubião, a princípio um vencedor, seria finalmente vítima.

 

Tudo isso, a loucura e o despropósito, envoltos pela galhofa e pelas “rabugens do pessimismo”, adquirem maior dimensão ainda ao se considerar a condição periférica do Brasil, condenado, desde sempre, ao princípio de Humanitas — e “Humanistismo” lembra “Humanidade”, o que, pela transformação de “Humanidade” em “Humanitismo”, significa, também, afastamento do Romantismo utópico, à Rousseau –, com as nações centrais a dominarem e explorarem o País. Humanitas é princípio que explica o mundo, e a condição não somente do interiorano Rubião, entre seus sonhos em torno de Sofia, necessariamente frustrados, mas também do Brasil. Se o princípio de tudo é a banalidade do “Ao vencedor as batatas”, princípio a explicar tudo, e, nesse sentido, não explicar nada, a não ser a eterna devoração do homem pelo homem, resta a loucura como saída ao País: entre o esplendor da Corte e a sua condição periférica, em busca de identidade, resta Rubião, o Pedro Café, necessariamente cindido entre a realidade local e o seu delírio napoleônico, fadado ao fracasso.

 

Mas aí entramos numa outra esfera de leitura de Quincas Borba, de cunho alegórico, tão ao gosto de John Gledson: é que o romance, sob esse ponto de vista, pode se lido como alegoria do destino e da própria história política do II Império, Pedro Rubião de Alvarenga lembrando, pelo nome, e pela inserção do “Rubião”, a remeter a rubiácea, nome científico do café, a Pedro de Alcântara, o Imperador, denominado, no romance, nesse sentido, de Pedro Café. A riqueza de Rubião, e do II Império, não advém, nesse viés de leitura, plausível pelas próprias influências machadianas, várias vezes citadas, do trabalho e da acumulação de capital, mas da descoberta, espécie de golpe de sorte, de um produto que obteria larga circulação no mercado internacional, o café, base de sustentação do II Império. Rubião enriquece devido a uma herança, é bom lembrar, que recebe na década de sessenta do século XIX, e que será gradativamente dilapidada nos anos subseqüentes, até a crise do regime, com a doença de Pedro, o de Alcântara e o de Alvarenga, a significar, em última instância, a derrocada do Império de fancaria, ambos metidos em seu delírio napoleônico, sem mais qualquer base de sustentação na realidade local.

 

Resta Quincas Borba, o cão, encarnação do princípio que rege a vida, devorada, no entanto, ela própria, ao final do romance, com a morte de Quincas Borba, pelo princípio que a originou.

 

Assim, se Quincas Borba lembra o romance “clássico” real-naturalista, suas mediações de forma e fundo remetem, novamente, o romance ao rol das saídas perseguidas por Machado para o romance brasileiro, a apanhar, em sua totalidade, o quanto havia de despropósito e de impasses na constituição da identidade nacional.

 

 

Dom Casmurro

 

Esse amplo painel da sociedade imperial, visto de maneira ácida por Machado em sua chamada “segunda fase”, tem um dos seus momentos altos em Dom Casmurro. Todos conhecem a história. Bento Santiago, já velho, resolve contar as suas memórias, desde a sua meninice e seu envolvimento com Capitu. Capitu é a menina pobre, sua vizinha, por quem Bentinho se apaixona. É apresentada, por Bento, o narrador da história, como a menina espevitada, que sabe muito bem o que quer da vida, que tem olhos de cigana, oblíquos e dissimulados, como todos podem lembrar. Após alguns contratempos, ambos se casam. E têm um filho. O filho, no entanto, tem os ares e se parece com Escobar, o amigo íntimo da família. Bento tem certeza da traição de Capitu e a despacha para a Europa, como maneira de se resguardar da opinião pública. Daí vem o retorno das memórias ao tempo do narrar: o velho Bento Santiago passa a sua vida a limpo, indagando-se sobre se a Capitu adulta, e, na sua ótica, adúltera, já se encontrava na Capitu menina.

 

A questão que mais tem intrigado a crítica machadiana, e seus leitores, a propósito do romance, reporta-se justamente à fidelidade ou traição de Capitu. Capitu, afinal, traiu ou não Bento Santiago? Na ótica de Bento Santiago, o narrador do romance, parece não haver dúvidas: Capitu o traiu com Escobar, seu melhor amigo. Mas será, mesmo, Dom Casmurro um romance sobre a traição, ou, em outra ótica, um romance sobre o ciúme? A resposta depende, por certo, da ótica de leitura. Numa leitura que adere, simplesmente, à narração do infortúnio amoroso de Bento Santiago, trata-se da história de um adultério. Numa leitura mais abrangente, que busca, nas entrelinhas, a história da sociedade patriarcal brasileira, ao final do século XIX, a leitura pode ser bem outra: trata-se da reescrita de Ressurreição, não mais como um entrechoque de diferentes personalidades, mas do choque entre um senhor-de-escravos e uma menina provinda dos estratos pobres do II Império. Se Ressurreição era um Otelo sem aprofundamento psicológico, aqui encontra-se um Otelo, o mouro, em sua plenitude: Bento Santiago, na narrativa, remói o seu ciúme, num crescendo, até decidir-se pela morte, inclusive a do filho, para, por último, enviá-los à Europa. O romance, lido nessa inflexão, é representação psicológica dos estratos da classe dominante em crise, que, em sua esterilidade histórica, já não consegue mais dominar plenamente o seu mundo. Daí o ciúme, daí a vingança em relação aos que vêm “de baixo”.

 

Para tanto, basta ver que no romance encontramos apenas a versão de Bento Santiago. É ele, como dizia, o narrador, o que faz ver que nós, leitores, temos apenas uma versão da história do casal, a de Bento Santiago. Essa a sagacidade do velho Bento: ele passa a história toda lançando indícios sobre o eventual caráter traiçoeiro de Capitu, possíveis “provas” da culpa de Capitu, que tentam nos convencer, ao final, e numa leitura primeira, que a mulher o traíra com o melhor amigo. Junta fatos, e, insidiosamente, vai interpretando-os, numa montagem discursiva que visa à persuasão do leitor. Ele monta, em suma, um processo de acusação contra Capitu.

 

Não pretendo, aqui, me estender sobre as diferentes leituras possíveis sobre o romance, nem, tampouco, montar um outro processo que vise à defesa de Capitu, como o fez Hellen Caldwell, em 1960, ao mostrar, justamente, que o livro fora escrito sob a ótica de um advogado manhoso e competente. O ensaio de Caldwell é, aliás, interessante em sua própria estrutura, de cunho jurídico: ela, primeiramente, expõe, como se diante de um tribunal de júri, os argumentos de Bento, para, a seguir, tentar desmontá-los, um a um, em defesa de Capitu[24]. O que interessa ressaltar aqui é, mais do que isso, que agora Machado não fala mais sobre os jovens herdeiros e futuros proprietários, descrevendo-os, muitas vezes de forma caricata, como encontramos nos seus primeiros contos, por exemplo, ou em seus primeiros romances, os futuros proprietários, em sua maioria bacharéis, vivendo à sombra da família patriarcal e se envolvendo com meninas pobres; ou que em Dom Casmurro não assume mais a figura de um advogado que tripudia da sociedade local, como se lê em Brás Cubas; mas é o próprio advogado em ação, advogado de acusação que assume um discurso insidioso para incriminar Capitu. Não é mais a figura do bacharel, em suma, que se encontra na mira de Machado, mas o próprio discurso bacharelesco, hábil e refinado, de Bento Santiago, a tornar esse romance justamente um dos mais discutidos romances brasileiros.

 

A incorporação dessa retórica, que significava, enfim, a incorporação da própria retórica de nossos bacharéis envolvidos com a política e a organização do aparelho de Estado como princípio organizador do texto, é o ponto alto do romance, o que quer dizer, de outra parte, que Bento Santiago, através da incorporação e prática desse discurso, se desvela, também ele, como um terrível representante de nossas elites ao final do Segundo Império, em vias de desaparecimento: ele, enquanto ama Capitu, a odeia, no fundo, porque ela veio “de baixo”, com seu vestidinho de chita e sapatinho remendado. Não podia ser boa bisca. Em conseqüência, ele monta um processo contra ela, que, afinal, acaba se revelando um discurso mais contra si mesmo do que contra Capitu.

 

Machado consegue, assim, unir as duas pontas da vida, a da literatura e a da sociedade. O bacharel refinado, enquanto, ao tempo do narrar, monta sua peça acusatória, volta-se ao passado, construindo-se como menino mimado, preso às saias da mãe, e como menino submisso às artimanhas de Capitu, o que é argumento de peso para que ele pudesse argumentar, depois, ao tempo do narrar, que fora, desde sempre, traído. Assim agindo, e insistindo, depois de casado, nas relações de sua família com a família de Escobar e Sancha, e nos eventuais encontros de Escobar e Capitu, e na semelhança de Ezequiel com Escobar, o velho Casmurro tece a teia de sua própria condenação, ao condenar Capitu com base em suposições, e não fatos. Os fatos nos são, por certo, relatados, mas a eles se apõe, sempre, a interpretação de Bento Santiago. Com esse procedimento narrativo de Machado, podemos, além de reconstruir Bento Santiago em sua trajetória de ciúme crescente, que é dado de classe, reconstruir, também, Capitu, bastando, para tanto, suspeitar não dos fatos mas da interpretação que Bento lhes dá. Surge, então, Capitu. Não como uma pobre menina, que busca ascender socialmente, o que também é, como se pode ler nos romances da “primeira fase”, mas uma personagem complexa, a encarnar e sintetizar todas as outras. Em outros termos, não encontramos, aqui, a personagem desbastada, como em Ressurreição, A mão e a luva, Helena, ou Iaiá Garcia, com suas Lívias, Guiomares, Helenas, Estelas e Iaiás, mas uma só, a carregar, dialeticamente, em si mesma, todas as características de um segmento social que avançava, embora sempre travada pelo patriarcalismo, sobre o tempo, o tempo do II Império, em vias de extinção, com sua classe dominante perdendo o rumo da história enquanto pretende, ainda, a vingança e a permanência, como se pode ler no “processo” montado por Bento Santiago.

 

Esquematicamente, relembrando os esquemas que se montaram anteriormente, pode-se afirmar, enfim, que Capitu carrega em si tanto o sucesso como a renúncia e a resignação, figura complexa emparedada entre os estertores do Império, ou do ciúme desvairado de Santiago, a busca de novas relações sociais “esclarecidas”, e o peso ainda persistente da sociedade patriarcal.

 

 

Esaú e Jacó

 

Esaú e Jacó é de 1904. É romance panorâmico, escrito em terceira pessoa do singular, com uma especificidade: o narrador, como se pode ler na “Advertência”, é o Conselheiro Aires, um diplomata aposentado, que figura, no romance, ao mesmo tempo, como personagem de si próprio, a criar-se uma singularidade narrativa: é narrativa de leque aberto, a tratar da derrocada da Monarquia e da instauração da República, mas com a presença constante do Conselheiro, não apenas como narrador, nem apenas como personagem de si mesmo, tratado em terceira pessoa, mas também a emitir opiniões, em primeira pessoa, enquanto conduz a narrativa.

 

Se essa constatação imprime alguma complexidade ao romance, como ainda veremos, num primeiro nível de leitura, no entanto, destaca-se o que já se ressaltou acima: é uma narrativa que aborda os últimos dias do Império, e os anos iniciais da República. Nesse nível, aliás, o romance se aproxima, e muito, de uma crônica histórica sobre a passagem da Monarquia à República, acompanhando o narrador, passo a passo, os eventos que se sucedem e os embates político-ideológicos que se travam no período que vai de 1870 a 1893, diria, considerando a Revolução Federalista, citada no romance, e o ano de publicação do romance. Sabemos que foram, historicamente, anos cruciais na história brasileira, cujo marco inicial encontra-se em 1871, com a Lei do Ventre Livre, modo de se arrastar a questão servil, até os estertores do Império. Foram anos cruciais, também, para o suporte econômico da própria instituição monárquica, pela falta da mão-de-obra escrava e pelo esgotamento das terras do Vale do Paraíba, quando a produção cafeeira se desloca para outras regiões, São Paulo principalmente, que passa a representar o novo centro econômico do País, com as suas demandas, também, por poder político. Esse processo de mudança político-social encontra-se no romance, muitas vezes, como referências diretas a episódios históricos como o do Baile da Ilha Fiscal, ocorrido às vésperas da Proclamação da República; ou ao da “Questão militar”, crise entre a instituição militar, que se organizara durante a Guerra do Paraguai, e o poder monárquico; ou, ainda, conseqüência do anterior, ao Golpe Militar (está assim mesmo no texto...) entestado pelo Marechal Deodoro. Encontra-se, também, na referência ao Encilhamento, e na descrição da estupefação da população diante do Golpe, ou nas referências à ascensão de Floriano Peixoto ao poder, ou à Revolta da Armada e à Revolução Federalista, no Sul.

 

Aires, nesse sentido, faz um longo apanhado dos sucessos históricos do período, numa narrativa que pende, fortemente, dizia, à crônica histórica. No entremeio dessa crônica, surge a narrativa “romanesca” propriamente dita — e as aspas, aqui, têm um sentido negativo, como ainda veremos –, envolvendo a família Santos e os gêmeos Pedro e Paulo; Batista, D. Cláudia e a filha Flora; por fim, e entre outros, o Conselheiro Aires — “Esse Aires”, como se apresenta no texto. O enredo, nesse nível da narrativa, é relativamente simples e, diria, esquemático. Natividade, esposa do futuro barão de Santos, mãe dos gêmeos, sentira-os brigar entre si no próprio ventre, e, sabendo que viriam a ser grandes homens — “coisas futuras!”, como vaticinara a Cabocla do Morro do Castelo — empenha-se pela harmonia entre os meninos, que passariam vida afora a contender entre si, a ponto de disputarem uma mesma mulher, Flora. Pedro torna-se, politicamente, um monarquista; Paulo, um republicano. Pedro admira Luís XVI; Paulo, Robespierre; Pedro estuda Medicina no Rio de Janeiro, centro da Monarquia; Paulo, Direito em São Paulo, em que se cultivam as idéias republicanas. São figuras antitéticas, mesmo quando depois da Proclamação da República: Pedro adere à República, postando-se ao lado da situação; Paulo passa para a oposição, exigindo avanços na política republicana. E, maior das disputas, como indicado, ambos ambicionam o amor de Flora, que ama a ambos, sem poder se decidir por quem, até que lhe sobrevém a morte.

 

É nesse sentido que afirmava, acima, que, como narrativa romanesca, Esaú e Jacó é extremamente esquemático: não há praticamente ação, ao se pensar no romance como narração da ação dos homens no mundo. O que há, em seu lugar, para além da crônica histórica explícita, são idéias antitéticas, ao invés de personagens propriamente ditas. As personagens são símbolos, apenas, que redobram a crônica histórica: Pedro representa a idéia de Monarquia; Paulo, a da República. E Flora, a impossibilidade de decisão do País por um ou outro sistema de governo. Quando há a decisão, a favor da República, a indecisão deixa historicamente de existir, à medida que o novo regime, entre lutas intestinas, ou diferenças no Parlamento, representadas novamente por Pedro e Paulo, se consolida. A morte de Flora, portanto, significa, ao mesmo tempo, o fim da Monarquia, o fim da indecisão histórica das classes dominantes locais em torno da questão servil e do regime político a ser adotado, e a instituição definitiva da República.

 

Não há uma história forte no sentido romanesco, assim como não há introspecção, análise de caracteres, no sentido da introspecção psicológica das personagens. Estas são símbolos que carregam, cada qual, uma idéia, sem vida própria.

 

Mas o que resta, então, do romance Esaú e Jacó, para além da crônica histórica, como vimos anteriormente, e de sua duplicação através das personagens-símbolo, como se expôs acima?

 

O Conselheiro, quem sabe, possui a chave: resta a visão, embora o seu “tédio à controvérsia”, ou por isso mesmo, sobre o processo político brasileiro, e sobre o Brasil, através de suas interferências na narrativa: há um distanciamento, por vezes irônico, em relação à crônica histórica, que, sob esse aspecto, perde o seu sentido, a República não se diferenciando da Monarquia... As convicções políticas não têm quaisquer raízes, como Aires afirma a propósito de Pedro e Paulo; ou através da constante conversão de Batista, primeiro de conservador a liberal, com a queda dos conservadores e a ascensão dos liberais ao fim do Império, e depois aceitando delegações do regime republicano, tudo narrado sob a ótica distanciada e irônica do velho diplomata.

 

Por isso mesmo, quando se invoca o romance, vem à mente de muitos leitores o episódio burlesco da tabuleta velha da Confeitaria do Império, “rachada e comida de bichos”, como se lê no capítulo XLIX. Ela precisa de reforma. Mas então o regime imperial vem abaixo. Qual o nome a se colocar na tabuleta, “do Império”, da “República”? Aires tem a solução: Confeitaria do Custódio, nome do confeiteiro e proprietário do estabelecimento.

 

É chiste, por certo, mas que vem a reforçar o próprio esvaziamento da narrativa como romance, restando, dela, apenas o distanciamento irônico do Conselheiro, a solicitar, constantemente, que o leitor lhe preencha a narrativa, ou busque decifrar charadas como o capítulo XXIII, “Quando tiverem barbas”, com “as mais inexplicáveis barbas do mundo”.

 

Para além da crônica histórica, portanto, e para além da ação romanesca, e da análise de caracteres, que estão ausentes do romance, resta a visão desencantada, mesmo que irônica, do mundo, e do Brasil em especial. É um romance sem romance, um texto que se basta a si mesmo, em sua arquitetura própria, a confundir autor, narrador, e a personagem Aires, com suas elucubrações, muitas delas vazias, ele a se deleitar, avançados os anos, através da escrita, simplesmente.

 

É uma leitura possível. Desde que, na ótica que aqui nos anima, se considere que esse romance sem romance tem a sua correspondência sócio-estrutural no próprio desatino que perpassa a história local, periférica, sem identidade própria, sem convicções próprias, sem história, ou romance, próprios. É aí que se encontram, enfim, a forma literária e o processo histórico-estrutural da sociedade brasileira, numa visão nada otimista do nosso Machado sobre os destinos do País.

 

 

Memorial de Aires

 

O Memorial de Aires, publicado em 1908, é o romance derradeiro de Machado de Assis. É tido, por muitos, como o romance mais autobiográfico de Machado, o casal Aguiar a representar a vida doméstica do Autor com Carolina, sua esposa, já falecida, modelo, o próprio Machado o afirma, de D. Carmo, a esposa de Aguiar. Carmo, sempre solícita, a dedicar-se ao marido e aos arranjos singelos da casa, e Aguiar, alto funcionário de um banco, assim como Machado o fora do serviço público, seriam retratos, enfim, da vida do casal que não tivera filhos, mas que levava a vida, em compensação, com a admiração mútua entre ambos.

 

Essa leitura, de fundo biográfico, a lembrar, inclusive, o desvelo com que Carmo/Carolina dedicara a um pequeno cão, com direito a enfermeira quando doente e a lágrimas quando da morte, enterrado, após os seus “dez ou onze anos da raça”, no jardim da casa, citados no romance, faz eco a uma outra leitura usual do Memorial, que o aponta como um romance de velho, já sem a verve dos grandes romances machadianos da “segunda fase”. Seria um romance de velho e um romance, diz-se mais, de reconciliação com a vida, sem as “rabugens do pessimismo”.

 

É de se observar, no entanto, que se trata de um romance escrito pelo Conselheiro Aires, que, em estilo solto, absolutamente livre, embora a marcação de datas, mesmo assim aparentemente aleatórias — o texto inicia-se em 1888 e vai até 1889, antes da proclamação da República –, em que se destacam meses, anos, anotações às vezes sem data, ou dias sem anotações, não tem, necessariamente, como fulcro prioritário, a vida dos velhos Aguiares, mas a relação de Fidélia e de Tristão com o casal de velhos, ou com o passado e o futuro, e de ambos com os novos tempos que se avizinham.

 

Aqui é que o romance toma pulso, a nos revelar o “velho” Machado, em suas narrativas capciosas e ferinas. O Conselheiro, diplomata aposentado, ao adotar como forma narrativa o diário, para repassar, em estilo diplomático, a dizer, sem explicitar, o que lhe vai pela mente, nos traça, rememorativa e prospectivamente, um retrato do Brasil, entre o passado Colonial/Imperial e o futuro, entre a Monarquia e a República, entre a Abolição e a adoção do trabalho formalmente livre, a indagar-se pelo destino dos ex-escravos, quando liberados: saberão eles tomar conta de seu próprio destino, quando relegados a uma liberdade sem amparo?

 

Isso tudo, como na boa narrativa machadiana, vem velado pela forma romanesca livre, sem defesa de tese qualquer. É em torno de Fidélia, por si só um nome ambíguo, e de Tristão, os filhos postiços dos Aguiares, que se trava a discussão histórica central, a dos destinos do País.

 

Assim, se o Memorial é romance sem enredo aparente, anotações esparsas de Aires, entre o fel, destilado por vezes inclusive sobre a vida do casal Aguiar — “Não me soube grandemente essa aliança de gerente de banco e pai de cachorro”, só para lembrar a leitura do romance como autobiográfico, ironizada pelo próprio Aires –, entre a ironia e o sarcasmo, amenizado, no entanto, pelo estilo “diplomático” de Aires, é também um romance que toma vulto ao deter-se, através dos Aguiares, de Fidélia e de Tristão, justamente na História do País.

 

Fidélia, é bom lembrar, casara com o filho de um adversário político de seu pai, o barão de Santa Pia, velho fazendeiro do Vale do Paraíba, conservador extremado, determinado a liberar os seus escravos antes que a Abolição o fizesse, porque propriedades sua. Fidélia, ao envolver-se com Tristão, após a morte do pai, haverá que dar conta da fazenda e dos escravos. Deve administrar a fazenda, deve vendê-la, ou, finalmente, por interesses que devem demonstrar que Tristão não é um interesseiro, deve doá-la aos escravos? É daí que surge o questionamento, interior, de Aires, sobre a história brasileira na passagem da Monarquia à República, e sobre os novos tempos, em que alguns irão sobrar, outros sobreviver, quem sabe os jovens, principalmente.

 

 Isso não passa, no entanto, embora as indicações, sempre veladas, porque atreladas a Fidélia e a Tristão, e à história do País, impunemente aos olhos do Conselheiro, muito menos de forma mitigada, mesmo porque mais ferino. Aires vai além.

 

A viúva volta, faz trazer o corpo do marido, e é diante do túmulo do marido que Aires a vê, em seu retorno ao Brasil após a aposentadoria. Fidélia passa a ser o alvo de Aires: ela, simplesmente deliciosa, apetitosa, ele em contemplação puramente sensual — o que desdiz da velhice anódina de Machado, imputada pela crítica biográfica — haverá de casar novamente, embora a aparente fidelidade ao marido morto? Quem sabe com o próprio Aires, movido, ele próprio, pelo desejo, travado, ao mesmo tempo, pelo recato, embora a citação de Shelley, ironizada por Aires, a dizer que “não posso dar aquilo que os homens chamam amor”? Bem que o gostaria. Mas Tristão entra em cena, e Aires chega a perguntar-se, ou a insinuá-lo, se ela não encontrara Tristão já na Europa, vindo ele ao Brasil em busca de sua amada, como nos podem indicar as cantigas de amor apostas, no início do romance, como epígrafes. Isso, pode-se dizê-lo, é intromissão, maldosa, de Aires, a perguntar-se, no fundo, sobre as perspectivas de ambos, de Fidélia e Tristão, e também sobre as do País.

 

Mas, resultado da narrativa, Tristão e Fidélia casam, indo viver em Portugal, deixando os pais postiços, os Aguiares, em sua solidão. O que restara de tudo, senão a resignação, tépida, dos velhos, pergunta-se Aires? A ressurreição dos jovens, a clamar, embora os embustes constantes em relação à gente Aguiar, por um novo tempo?

 

Diante de tudo, pode-se questionar: o Memorial de Aires é romance autobiográfico, romance de velho, ou romance (?) de um atilado Machado, a rememorar e a discutir os destinos do País, enquanto acompanha a partida dos jovens, olhando para o futuro, e que vê, e revê, simultaneamente, a vida que ficara para trás?

 

A resposta fica ao eventual leitor. Mas há que se considerar: na passagem do século, o Memorial, seja como se o leia, não deixa de ser rememoração, amaneirada e ao mesmo tempo ferina, da vida do País, com seus impasses, sempre marcados entre o passado e o futuro, entre a fidelidade a esse passado e a abertura a novos tempos, entre os que ficam e os que vão, entre a Europa e o Brasil, a indicar, novamente, os descompassos da identidade nacional, sempre travada pela fidelidade ao passado, à fazenda Santa Pia, diria, e aberta ao futuro, amarrado, este, no entanto, à constelação que fazia do Brasil uma incógnita, jamais resolvida.

 

Machado velho? Pela idade, com certeza, sim. Mas escreveu o Memorial de Aires, na ótica do Conselheiro, com enlevo, não só a cobiçar Fidélia, síntese dos tempos passado e futuro, ela, ainda assim, em busca de outras soluções, assim como ele, em sua trajetória poética, a navegar entre diferentes margens, mas também com elevada sutileza, diria, do romancista que reduziu, estruturalmente, e coerentemente, conforme Antonio Candido, os caminhos da sociedade local e os do romance no Brasil, sempre entre o “cá” e o “lá”, preocupação persistente desde o jovem Machado.

 

 

Um parêntese: Casa velha

 

Na trajetória de Machado de Assis, John Gledson tem apontado, com singular espírito crítico, o papel desempenhado por um conto/romance praticamente desconhecido até os anos cinqüenta do século XX, quando Lúcia Miguel-Pereira o encontrou e o trouxe a público novamente, pois que jamais republicado por Machado de Assis: Casa velha[25].

 

O romance — há, hoje, praticamente consenso de que Casa velha é romance breve, mesmo porque o enredo está dilatado no tempo, sem levar à condensação da “análise de caracteres” sucinta, como o faria Machado nos contos de sua “segunda fase”, a narrativa envolvendo a história de D. Antônia, Félix e Lalau, com a família patriarcal e suas relações sociais com os dependentes como um romance no romance, que se desejava, inicialmente, uma História do Primeiro Império — foi publicado após Quincas Borba, entre 15 de janeiro de 1885 e 28 de fevereiro de 1886, em A Estação.

 

Lúcia Miguel-Pereira afirma tratar-se de um “texto de gaveta”, da “primeira fase”, que Machado, devido aos seus compromissos editoriais, dera à luz posteriormente. Para Lúcia Miguel-Pereira, Casa velha pertenceria, portanto, à “primeira fase” de Machado, enquanto John Gledson, contestando-a, afirma tratar-se de um “rascunho” de Dom Casmurro, não tendo sido republicado, possivelmente, por ser um texto muito autobiográfico — no que ele relembra a casa em que Machado nasceu, Machado afilhado da casa patriarcal — e por estar contemplado, já, pela escrita posterior de Machado.

 

Dentro do esquema de leitura dos romances de Machado que vimos propondo, acredita-se, é possível tentar esquematizar a questão: o romance/novela/conto Casa velha lembra, por óbvio, e por demais, os romances da “primeira fase”, como A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia, sem deixar de remeter, veremos, aos posteriores.

 

Só para recordar: a constituição da trama, circunstâncias e, mais, o núcleo das personagens em torno das quais se articula a narrativa é praticamente o mesmo daqueles da “primeira fase” de Machado de Assis: Guiomar é a menina órfã, adotada pela Baronesa, que, Guiomar decidida a “luzir em sociedade”, vai em busca de sua escalada social, via matrimônio, até estabelecer uma aliança com Luís Alves. Helena, vimos, renuncia à ascensão social. Estela também, e Iaiá conquista o sucesso através do casamento. Independentemente das soluções, o jogo das personagens, em Casa velha, é praticamente o mesmo do que já foi visto nos demais romances da “primeira fase”: Lalau, apaixonada por Félix, o herdeiro, renuncia a sua felicidade, casando-se com o filho do segeiro da famíla patriarcal. Esquematicamente, pode-se visualizar o esquema que perpassa os romances da “primeira fase”, aduzindo-se, a ele, Casa velha.

 

Ressurreição

A mão e a luva

Helena

“O romance de Estela”

“O romance de Iaiá Garcia”

Casa velha

PERFIL 1

PERFIL 2

PERFIL 3

PERFIL 4

PERFIL 5

PERFIL 6

LÍVIA

GUIOMAR

HELENA

ESTELA

IAIÁ

LALAU

Entusiasta e refletida, oscilando entre os dois pólos; não ostenta drama moral oriundo da sua condição de classe: ela é assim como ela é, como que por natureza.

Sagaz, ambiciosa, decidida (dissimulada?), a viver o seu drama moral específico, entre os compromissos derivados do favor e sua realização pessoal. É drama derivado de sua condição de classe.

a) a priori: jovial, graciosa, travessa, dissimulada.

 

b) a posteriori: a escolha pelo honesto, justo e natural; o orgulho se sobrepõe ao favor.

- Consciência de classe

 

- “orgulho”

 

- dissimulação (quando da volta de Jorge)

Sagaz, voluntariosa, decidida, vencedora.

É voluntariosa, “agregada” que deseja “subir na vida”, mas que, ao final, abre mão da ascensão, por “orgulho”.

Resultado: resignação

Resultado: sucesso

Resultado: renúncia

Resultado: renúncia

Resultado: sucesso

Resultado: renúncia

 

Percebe-se, nesse sentido, que as situações em torno das quais giram a narrativa de Casa velha e os demais romances da “primeira fase” são semelhantes, embora os diferentes desfechos: a agregada, em sua busca de ascensão social, enamora-se pelo “proprietário”, e este por esta. Como solução, acompanhada, sempre, de lances romanescos, há interdições, Machado insistindo, recorrência usual sua, na possibilidade de incesto, o que também era anotação social, considerando-se a família patriarcal em que o homem das classes dominantes dispunha de amplos “favores”, de amantes em especial.

 

O núcleo constitutivo básico dos romances da “primeira fase” tratava, dizia anteriormente, das possíveis relações entre jovens, tanto da agregada, foco central da narrativa, como do jovem rico, mas ainda controlado pelo poder da casa patriarcal. Em Casa velha não é diferente. Se tomarmos esse esquema estrutural que subjaz aos romances da “primeira fase”, Casa velha representa, nada mais, nada menos, do que a repetição dos esquemas narrativos anteriores. Há, também, neste romance, a menina pobre apaixonada pelo jovem herdeiro: Lalau é a menina bonita, esperta e orgulhosa; Félix, o herdeiro, apaixonado por Lalau, é dominado por D. Antônia, que se interpõe à felicidade de ambos. Lalau, nesse sentido, lembra Helena e, principalmente, Estela, por sua decisão final: a renúncia, como visto no esquema acima.

 

Nessa ótica, como quer Lúcia Miguel-Pereira, o livro lembra muito mais os romances da “primeira fase” de Machado do que os da “segunda”:

 

Casa velha deve pertencer ao número dos trabalhos exumados. Embora publicada na melhor fase, não é das melhores obras do autor. Psicologicamente — e, no caso, os argumentos psicológicos são os únicos de que podemos lançar mão — pode ser colocada na primeira fase de sua obra.

 

Nessa história sentimental, volta o criador de Brás Cubas a dois temas que foram constantes na sua mocidade, e que depois abandonou. O da luta entre o amor e as convenções sociais, e o de da transferência de classe. Dois temas que, em realidade, se reduzem a um único: o dos conflitos entre os indivíduos cuja existência tinha um sentido vertical — como a sua — e os preconceitos de uma sociedade que, com alta dose de bovarismo, se imaginava tradicionalista e fechada. (Op. Cit. p. VII e VIII)

 

Mas voltemos e relembremos: Casa velha foi publicado de janeiro de 1885 a fevereiro de 1886, após, portanto, o “evento” de Memórias póstumas de Brás Cubas e antes de Dom Casmurro. Vimos que em Memórias póstumas, e também em Dom Casmurro, o ponto de vista do narrador, mesmo que a narrativa conte com elementos essenciais do esquema vigente na chamada “primeira fase”, se inverte completamente. O ponto de vista do narrador, centrado anteriormente na menina pobre, que busca, enquanto Machado julga, as possibilidades de ascensão social, se inverte: os romances da “segunda fase”, em primeira pessoa, Memória póstumas e Dom Casmurro principalmente, apresentam-nos não mais o jovem proprietário herdeiro, envolvido com uma agregada, mas o próprio senhor-de-escravos, agora proprietário, “de fato e de direito”, dando-nos a sua visão sobre o mundo, sobre os agregados, sobre a ambição dele e destes, e assim por diante.

 

Lembremos, para tanto, apenas, parte do que podemos chamar de “subenredos” em Memória póstumas, como o de Eugênia. Eugênia é a menina típica dos primeiros romances, com um perfil a lembrar uma Helena, uma Estela, mas a ótica em que é enfocada é outra, é a do defunto-autor que lembra da sua mocidade e das atrocidades, reforçadas pela ironia, cometidas por um senhor em relação às meninas que vêm “de baixo”. Ou lembremos Dom Casmurro, em que o velho narrador rememora, insidiosamente, o seu relacionamento com Capitu, tentando nos fazer crer que a menina pobre era, por natureza, uma arrivista, uma traidora, uma ameaça, enfim, à sua classe.

 

O esquema narrativo dos romances da “segunda fase”, em síntese, em relação aos romances anteriores, mesmo que se possa lembrá-los em Memórias póstumas e Dom Casmurro, é, no tratamento dos pobres, mais complexo, considerando a posição do narrador em relação ao que é narrado: em uma primeira camada de leitura, há a sobreposição da “casa patriarcal”, o poder do pai de Brás e o poder de D. Glória, em que se destaca a pretensão, com mais argúcia, do filho herdeiro em relação à agregada, a relembrar os romances iniciais de Machado; em uma segunda camada de leitura, há a intervenção do narrador, nem mais filho do pai nem da mãe, ele, o narrador, o próprio proprietário, a exercer o seu poder em relação às agregadas.

 

Ao se juntar essas duas camadas, como representação do que ia pelos romances “maduros” de Machado, pode-se afirmar que, em eterno retorno da sobredeterminação dos senhores em relação aos demais segmentos sociais, num eterno retorno, enfim, da preservação de classe — e, também, tragédia dessa mesma classe, isolamento e solidão de classe, porque ela não se realiza a não ser na esterilidade, mais histórica do que física — encontra-se a intervenção de um narrador que, a partir do alto, deixa entrever a sua postura ideológica em relação aos “de baixo”.

 

A “casa patriarcal”, em suma, tantas vezes retratada por Machado como miniaturas do social, corresponde à “sociedade patriarcal” em sentido amplo, vista de uma maneira na “primeira fase” e, de outra, na segunda: na primeira, com olhar benigno/conservador; na segunda, com um olhar altamente crítico em relação à autopreservação da classe dominante, a mostrar, inclusive, pelo isolamento a que se condena, a sua autocondenação como classe.

 

Mas voltemos a Casa velha. Afora os elementos já apontados, que situam o romance na “primeira fase” de Machado, como quer Lúcia Miguel-Pereira, não sem razão, ao se considerar a temática e o núcleo das personagens em torno do qual gravita a trama, é preciso lembrar que Casa velha é uma narrativa em primeira pessoa. É o padre quem narra a história de D. Antônia, Lalau e Félix, incluindo-se, ele mesmo, como elemento participante da narrativa. Isso cria, por certo, uma nova constelação em relação aos romances machadianos da dita “primeira fase”, empurrando o romance para um outro campo, não necessariamente aquele que se encontra em Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, mas a um campo intermediário: o padre, ao narrar a história da família/casa patriarcal, ou, em sentido amplo, da sociedade patriarcal brasileira, imiscui-se nela, como diria John Gledson, surgindo como uma espécie de colaborador da classe dominante, movido, ele, o padre, por seus próprios interesses, a desvendar-nos os interesses de classe em jogo.

 

Nesse sentido, Casa velha seria uma “mediação” entre os romances da “primeira fase” e os da “segunda”, ou de transição, como quer Gledson, a Dom Casmurro, embora se possa vê-lo como mediação na ordem da escrita, e não como elemento temático, o padre representando um José Dias, por exemplo, como quer Gledson. É com essa mediação, “redução estrutural”, que se revela uma “nova face” da sociedade brasileira: se em Helena o padre Melchior era simples intermediário entre os enamorados, o padre, aqui, através de uma mediação interessada, nos revela, como linguagem mesma, a natureza e o papel dos “intelectuais orgânicos” do Império, o papel da Igreja em especial, como instância mediadora e legitimadora da dominação patriarcal: é ele quem “inventa” a mentira de D. Antônia, é ele quem condena, ou se presta ao papel de condenar, a possível pretensão de Lalau e Félix, preservando, com isso, a ordem instituída.

 

Mas fechemos o círculo, remetendo, agora, explicitamente aos textos de Lúcia Miguel-Pereira e John Gledson. Ela, centrada na temática recorrente em Casa velha, acerta em cheio, ao conectar o romance aos romances da “primeira fase”; ele, ao apontar para o narrador, coloca o romance em seu, ao ver dele, lugar, considerando Casa velha como espécie de rascunho de Dom Casmurro, utilizando-se, para tanto, de duas concepções básicas de seu constructo teórico: a da intencionalidade do Autor, cuja consciência paira sobre o narrador, apontando, aquele, zonas de apagamento deste; e a da alegoria, nomes e datas sendo conscientemente utilizados pelo Autor para revelar o que está fora do texto, no caso, a história do I Império. A intencionalidade final, e em última instância, faria parte do projeto machadiano: escrever uma história, em forma de alegoria, do Brasil.

 

Vejamos, mais de perto, essa aparente dicotomia, entre as percepções sobre Casa velha. Retomemos os primeiros romances machadianos não mais com o olhar diretamente voltado às meninas, mas, também, em busca de desvendar, neles, a estrutura subjacente. Vimos que, em praticamente todos, mas com especial ênfase em Helena e Iaiá Garcia, o esquema subjacente era o seguinte:

 

Casa patriarcal (com suas matronas)

                        

Agregada à    “jovem proprietário”

 

 

 

Em Casa velha, esse esquema se reconstitui:

 

 

      Casa patriarcal (D. Antônia)

 

                        

 

Agregada (Lalau) à “jovem proprietário” (Félix)

 

Nesse sentido, o esquema narrativo vigente na “primeira fase” de Machado encontra-se, também em Casa Velha, já o dizia acima. Os próprios “perfis” de personagens são idênticos: Lalau, espevitada, esperta, orgulhosa, lembra Guiomar, Helena, Estela, Iaiá, com suas diferentes opções: ou o sucesso em suas pretensões de ascender socialmente, ou a renúncia. No caso de Lalau, vimos, houve, ao final, a renúncia, casando-se ela com um membro de sua própria classe. Nesse aspecto, Lúcia Miguel-Pereira tem toda a razão: Casa velha é livro da “primeira fase”.

 

Mas há que se relembrar, no contraponto, os esquemas subjacentes aos dois romances da “segunda fase”, acima citados, em que ocorre uma inversão de ótica, quando Machado colocava como foco central não mais as meninas pobres, e, sim, senhores de escravos, eles próprios narrando a sua própria existência desde quando jovens. O desenho do esquema, aqui, é outro, inclusive a ser lido em mais de uma instância, pela possibilidade de se ler os romances em partes, o jovem Brás, em suas “edições” de vida, e o Bentinho, a se transformar em Bento Santiago:

 

 

 

* O tempo do narrar: casa patriarcal (Brás Cubas defunto, Dom Casmurro)

 

                                   casa patriarcal (Pai de Brás, D. Glória)

        O narrado

                                 Agregados/dependentesà “jovem proprietário”

 

* A narração: casa patriarcal (Brás Cubas, Bento Santiago)

Agregados/dependentes (Eugênia/Capitu)

 

 

 

Aqui, a flecha se inverte, a se relembrar os romances iniciais, como já apontava: a casa patriarcal, encarnada por Brás Cubas e Bento Santiago, se sobrepõe aos dependentes como foco e voz narrativa.

 

A partir desse esquema, é possível voltar a Casa velha. Em Casa velha há a intromissão de um narrador, não propriamente um narrador-senhor-de-escravos, como Brás Cubas ou Bento Santiago, mas um narrador-mediador entre as classes sociais em jogo na narrativa. O padre, que nos narra a história de D. Antônia, de Félix e de Lalau, e isto é importante ressaltar, sustenta uma visão absolutamente interessada, seja por seu desejo por Lalau, interditado, seja, também, por sua atuação como elemento de manutenção da própria ordem escravista, na sua condição de “intelectual orgânico” da classe dominante. Isso criava uma “saída” para Machado, em seu esquema narrativo recorrente na “primeira fase”:

 

 

 

casa patriarcal (D. Antônia)

 

       

 

Elemento mediador (o padre, a Igreja)

 

                

Agregada (Lalau) à “jovem proprietário” (Félix)

 

 

 

Esse “elemento mediador” colocaria, porque o romance é escrito em sua ótica, tudo sob suspeita. É esse elemento mediador o dado formalmente importante em Casa velha, a transformar o romance em pedra angular na seqüência estrutural dos romances machadianos: Casa velha, em sua forma, é mediação entre os romances da “primeira” e os da “segunda fase” de Machado.

 

Isso, por óbvio, dá razão de sobra às colocações de John Gledson, que coloca o romance entre Iaiá Garcia e Dom Casmurro, Casa Velha sendo espécie de rascunho deste. Mas Gledson, com sua análise, pretende desdizer Lúcia Miguel-Pereira. Ora, ela, centrada na temática recorrente nos primeiros romances de Machado de Assis, acerta em cheio, dizia, ao ligar Casa velha à “primeira fase” de Machado. O esquema narrativo subjacente, vimos, é idêntico. Gledson, de sua parte, centrado na questão do narrador, também acerta. Nesse sentido, não é o caso de se contrapor os dois, mas de perceber como os dois percebem a dupla dimensão de Casa velha, romance atrelado, de um lado, ao esquema narrativo vigente na “primeira fase” e, de outro, abrindo caminho, através do padre-narrador, aos grandes romances da “segunda fase”, quando Machado desloca o ponto de vista do narrador-mediador para o narrador-senhor-de-escravos, Brás Cubas e Bento Santiago.

 

Casa velha, nesse sentido, como aponta Gledson, mas não necessariamente na contramão de Lúcia Miguel-Pereira, ocupa lugar estratégico na obra de Machado de Assis: o padre como narrador é elemento novo na construção romanesca de Machado, desatando o nó a que o Autor chegara. A mediação representada pelo padre é elemento formal do romance e é elemento fundamental como mediação entre a “primeira” e a “segunda fase”, em suma.

 

Formalmente, representa os interesses que se interpõem à manutenção do sistema escravista e da sociedade patriarcal; ao mesmo tempo, representa a guinada de Machado, estética e ideológica, no trato dessa mesma sociedade, afirmação que torna, também, relativa a data de redação do romance: depois de Quincas Borba, um rascunho de Dom Casmurro, ou passagem entre um e outro Machado?

 

 

 

OS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS

 

Machado de Assis, no conhecido ensaio “Instinto de nacionalidade”, de 1873, já afirmava que o conto “É gênero difícil, a despeito de sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.”

 

Machado, ao longo de sua carreira, investiria no conto como gênero literário, enfrentando, justamente, as suas dificuldades, embora a aparente facilidade do gênero, como diz, tornando-o um gênero de ampla difusão nas revistas e jornais da época, suprindo, com a sua atividade como contista, uma das lacunas que entrevia na incipiente literatura nacional. Sua produção, nessa área, se estenderia de 1858 a 1907, período em que escreveria mais de duzentos contos. O conto, para Machado de Assis, junto à poesia, ao teatro, à crônica, significou, além da sua contribuição para a literatura local, conforme seu projeto estético e ideológico, afirmado no “Instinto”, um dos caminhos que lhe possibilitaram adentrar o e afirmar-se no campo literário da época. Publica seus contos, entre 1864 e 1878, muitos deles em forma seriada, em capítulos seqüenciais, no Jornal das Famílias; depois no A Estação, e, a partir de 1881, também na Gazeta de Notícias. O Jornal das Famílias e A Estação eram revistas voltadas ao público feminino, tratando de moda, costumes, recomendações a jovens casadoiras, e a Gazeta de Notícias era jornal de ampla circulação, considerando o restrito público leitor da época.

 

Tornar-se-ia praxe Machado selecionar, depois, entre os contos publicados nas revistas e jornais, aqueles que enfeixaria em forma de livro. Assim, publicaria, na seqüência dos anos, sete coletâneas de contos: Contos fluminenses (1869), Histórias da meia-noite (1873), Papéis avulsos (1882), Histórias sem data (1884), Várias histórias (1896), Páginas recolhidas (1899) e Relíquias de casa velha (1906). Nessas coletâneas, Machado inclui, entre a sua extensa produção, 76 contos. Os demais, que conhecemos hoje, ficaram esparsos nas revistas e jornais, vindo a público, em forma de livro, posteriormente, através do trabalho de pesquisadores da obra machadiana.

 

 

As “duas fases”, e faces, do conto de Machado de Assis

 

Nos contos, sejam aqueles por ele mesmo publicados em livro, sejam aqueles avulsos, compilados posteriormente, costuma-se estabelecer um divisor de águas, em termos de perspectiva e forma, assim como também ocorre no romance, em que se estabelece um corte na produção romanesca do Autor, com a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas: haveria os contos da “primeira fase”, que se estenderiam até a década de setenta do século XIX, e os da “segunda fase”, que teriam como marco a publicação, em 1882, data contígua à da publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Papéis avulsos.

 

Haveria, nesse sentido, uma correspondência entre os contos e os romances: até a década de setenta, Machado escreve, como, por sinal, a edição das Obras Completas da Jackson intitula alguns dos contos iniciais de Machado, “Histórias românticas”, em que se sobressaem as “fábulas edificantes”, tratando dos relacionamentos amorosos entre os jovens, da preservação da ordem no lar e, por conseqüência, na sociedade. São contos moralizantes, de fundo conservador. E os enredos, todos, permeados por seqüências narrativas tipicamente românticas, eivados de empecilhos, muitas vezes repetidos de conto a conto, que travam a narrativa até o seu desfecho, em que se destaca o enlace, ou não, do par amoroso. Com Papéis avulsos, haveria, de outra parte, uma guinada na produção machadiana, detendo-se o Autor na inquisição da alma humana, em contos sem desfechos de cunho moralizante: são contos abertos, em que interessa, mais, para além do enredo específico do conto, perscrutar os desvãos da alma e da psicologia das personagens. Esses contos, nesse sentido, também não se satisfazem com a forma adotada nos anteriores, normalmente contos longos, mas com formas sintéticas, típicas do conto moderno, em que Machado exercita a ironia, o humour, e explora os paradoxos do ser humano.

 

Não é o caso, aqui, de se discutir as duas “fases” na produção contística de Machado de Assis, vendo-a ou como processo, o Machado “maduro” encontrando-se, já, no jovem Machadinho, ou como obra que apresenta ruptura, no sentido de Machado, ao final dos anos setenta do século XIX, sem necessariamente se dissociar completamente de seus contos iniciais, tentar buscar novos caminhos, fortemente marcados por uma cisão na forma e na perspectiva adotadas.

 

Não obstante o viés crítico com que se possam ler os contos, como processo, progressão ou ruptura, há, todavia, nos contos machadianos — e esta é a perspectiva que aqui se adota –, assim como ocorre no romance, uma profunda mudança de perspectiva e de forma, da primeira à segunda “fase”, esta iniciada com Papéis avulsos, e desenvolvida em Histórias sem data e Várias histórias, os três livros de contos de Machado que formam o ponto alto da sua produção no gênero.

 

Explorando o que se afirma a propósito do romance, estendendo-o ao conto, Machado, parece, chega ao final dos anos setenta e se indaga sobre a sua produção literária, àquela altura voltada, principalmente, à narrativa. Ou continuava a escrever “contos éticos”[26], variações, muitas vezes, do mesmo tema, sobre as mesmas personagens-tipo, ou, então, iniciava-se no exercício do conto realista, descritivo e analítico, adotando uma poética do inventário, que condena em “O primo Basílio”, ou, finalmente, enveredava por outros caminhos.

 

Em suma, e de novo, encontra-se o mesmo “brete” que se percebe na trajetória de sua produção romanesca: enquanto Machado se inicia na vida literária, e busca, nela, o seu lugar, e o Império dava mostras, ainda, de sua pujança, em termos econômicos e políticos, com o auge da produção cafeeira no Rio de Janeiro, e com a Conciliação, Machado escreve suas “fábulas edificantes” para o Jornal das Famílias, em que, em textos relativamente longos, explora temas e situações que vêm ao encontro das expectativas de suas leitoras e leitores: o casamento, o amor, encarnados em tipos sociais da época, como o bacharel, a mocinha casadoira, o pilantra, o embusteiro, o parasita e assim por diante. Esgotado o modelo, e o tempo histórico que sustentava o modelo, Machado pára, e volta com Papéis avulsos, em que a “fábula edificante” deixaria de existir para dar lugar ao paradoxo, ao questionamento do indivíduo, à crítica ferina do campo cultural brasileiro e à indagação sobre a identidade fraturada do Brasil.

 

 

Algum conto da “primeira fase”

 

Somente para exemplificar o que se afirmava acima, tomemos um que outro conto da chamada “primeira fase” de Machado. Por exemplo, o conto “Almas agradecidas”, publicado no Jornal das Famílias, em março de 1871. Dividido em sete capítulos, trata, inicialmente, da sociabilidade da vida na Corte, com o destaque para o teatro, em que se representava o Dama das Camélias, texto referência para o gosto dos espectadores da época. Na saída, enquanto os homens buscavam seus guarda-chuvas, ou chamavam tílburis, encontram-se Oliveira, um dos tantos bacharéis que povoam a narrativa machadiana, e Magalhães. Reconhecem-se como antigos colegas de escola. O “com guarda-chuva”, Oliveira, e o “sem guarda-chuva”, Magalhães, como diz Machado, antecipando, não sem ironia, as posses de cada qual, reatam a amizade dos tempos de colégio e começam a se visitar com freqüência. Magalhães, pobre funcionário do Arsenal de Guerra, é desenhado, desde o início, como personagem sagaz, que cultiva, à sombra da amizade, o interesse, enquanto Oliveira é retratado como um ingênuo. São perfis, nesse sentido, antecipados por Machado, o que faz ver, desde o início, e de antemão, os caracteres que, em suas ações, somente vão fazer expor as suas características inatas. Magalhães, nesse sentido, é construído como um aproveitador da ingenuidade de Oliveira, a lhe surrupiar jantares, bons vinhos, tudo sob o argumento da amizade. Magalhães, por intermédio do amigo, simulando o seu desespero com a possibilidade de cometer suicídio, consegue, inclusive, por intervenção do amigo, um bom emprego, e torna-se, por fim, confidente de Oliveira, que ama Cecília, moça rica. Logo, Magalhães adentra a casa de Cecília, na condição de cicerone, ou embaixador do amor de Oliveira pela moça, declarando-se, no entanto, ele próprio, à moça. Subtrai a amada de Oliveira, enfim, não sem uma encenação, em que recorre à possibilidade de envenenar-se para, assim, demonstrar o seu constrangimento, dissimulado, diante do amigo. Magalhães casa-se com Cecília, sem deixar de cultivar a amizade com Oliveira, ou, como diz Machado, os amigos “Foram felizes até a morte, posto que Oliveira não freqüentasse a casa de Magalhães”.

 

O que é de se destacar neste conto, como, aliás, em outros, e como também o encontramos nos romances da “primeira fase” de Machado, é, em primeiro lugar, a presença de lances folhetinescos, como o anúncio do suicídio, ou o engodo do embaixador do amor, que se insinua e conquista a amada em detrimento do amigo, e, principalmente, a configuração das personagens. Machado, a cada momento, antecipa a tipologia das personagens, que surgem nos contos e saem dos contos assim como entraram. É o caso do bacharel Oliveira, o ingênuo, e o de Magalhães, o pérfido amigo. Eles, em última instância, não têm vida, na medida em que não se percebe qualquer desconcerto no mundo que possa lhes alterar o perfil.

 

Isso faz, também, com que o conto, não obstante a demonstração do caráter das personagens se estenda na narrativa, através de atos que corroboram, simplesmente, o já afirmado, tenha, por fundo, um caráter moralizante: a execração, por vezes bem humorada, dos maus, e o elogio dos bons, mesmo que, ludibriados, não vençam.

 

Essas situações narrativas se repetem, constantemente, nos contos iniciais de Machado. Em “O caminho de Damasco”, publicado no Jornal das Famílias em novembro de 1871, encontra-se outro exemplo típico. Há, inicialmente, a apresentação da Rua do Ouvidor, traço da sociabilidade urbana, em que se encontram três jovens, todos ricos, a combinarem um encontro, à noite. Um dos jovens é Jorge Aguiar, que “No ano anterior voltara de São Paulo com um diploma de bacharel na algibeira e uns amores no coração. Poderia dizer que trazia também alguma ciência jurídica na cabeça, se o meu intento não fosse uma escrupulosa fidelidade histórica.” Rigidamente controlado pela mãe, saía, depois que a família se recolhia, para participar de festas com os amigos, na companhia de mulheres. Jorge Aguiar dedicava-se, pois, à dissipação, acobertado por seu pai.

 

Em casa dos Aguiares vivia Clarinha, abandonada pelo pai e obrigada a receber os favores dos tios. Assim como nos romances da “primeira fase”, era menina prendada que, nas horas vagas, dedicava-se a estudar música e francês, para, quem sabe, um dia poder lecionar, e prover a sua subsistência. Ou então casar. Jorge, no entanto, por quem, desde logo, se suspeita esteja ela apaixonada, mal dá por sua presença na casa, de tão dedicado aos seus afazeres festivos.

 

Logo, entra em cena outra personagem, o Dr. Marques, que pretende casar com Clarinha, e se aconselha com Jorge. Este sugere que Marques envie uma carta à prima, declarando as suas intenções. E o aconselha a procurar a sua mãe, que poderia intervir a favor das pretensões de Marques.

 

Na seqüência, no capítulo V, há uma longa descrição de “como se perde um rapaz”, entre festas, jantares, a dissipação do dinheiro do pai e a companhia de belas damas, empenhadas, em troca de amor fugidio, e de favores financeiros, em alegrar a libertinagem do jovem. O pai tenta demovê-lo dessa vida dissoluta, mas em vão. “Jorge estava calejado no vício”.

 

No capítulo VI, Clarinha, por intervenção da tia, aceita casar-se com o Dr. Marques. Padre Barroso, freqüentador da casa e confessor de Clarinha, pergunta a esta sobre o seu verdadeiro amor: Jorge. “Aquele amor morreu”, responde-lhe a moça, com tristeza. “Afirmo-lhe que morreu; e se não morreu, juro-lhe que há de morrer”, indicando a persistência de sua paixão por Jorge. Por demonstração de obediência à tia, casa-se com o Dr. Marques, enfim.

 

No mesmo capítulo, o velho Aguiar encontra seu filho no teatro, ao lado de umas das damas da moda. O velho solicita a interferência do padre, a ver se este consegue que o filho se emende. O padre, em conversa com o jovem, comete uma inconfidência, dizendo que Jorge poderia ter sido feliz ao lado de uma mulher feliz. Jorge compreende que se trata de Clarinha. E busca insinuar-se a ela, para ver se ela ainda tinha amor por ele. Entra, também, na vida do casal, tornando-se freqüentador da casa. Por fim, declara-se a Clarinha. Esta, por conselho do padre, resolve contar o fato ao marido. O rapaz, alimentando ainda a sua inclinação ao mal, e querendo fazer-se mais interessante, decide, por alvitre do padre, afastar-se da Corte.

 

Mas eis que o Dr. Marques adoece gravemente. Jorge, sabendo da doença, volta à Corte, e mostra todo o seu desvelo em ajudar a cuidar do médico. Este expira nos braços da esposa. Então sucede-se a conversão, em “O caminho de Damasco”, quando Jorge, regenerado, confessa o seu amor por Clarinha ao padre e pede que interceda junto à prima. Passado um ano da morte de Marques, Jorge e Clarinha casam.

 

Novamente, encontram-se aqui as características básicas dos primeiros contos machadianos: há apresentação do cenário urbano, a situar o conto na Corte; há, por antecipação, a apresentação das personagens, desenho de figuras típicas, em que se inclui, já, o da moça que vive de favores na casa de parentes, personagens recorrentes na primeira ficção de Machado; o do jovem bacharel que vive às expensas da fortuna do pai; e a figura do padre, conselheiro da família, que se encontra também em Helena, por exemplo; há as peripécias em torno do amor não correspondido e, por fim, a “moral da história”, com a conversão, súbita e ex-abrupto, do mal ao bem, através do casamento de Jorge com Clarinha, após a morte inesperada, em recurso narrativo forçado, de Marques.

 

São, todos, traços característicos dos contos da “primeira fase” do contista Machado de Assis. Obviamente, não é o caso, aqui, de se percorrer os contos todos, bastando lembrar, a propósito, um conto como “A mulher de preto”, dos Contos fluminenses. Há, no Teatro Lírico, o encontro do Dr. Estêvão Soares e o deputado Meneses, que viriam a firmar amizade; há a “mulher de preto”, Madalena, por quem Estêvão se interessa; há o recurso do embaixador do amor, agora às avessas, Estêvão servindo de meio para que a mulher se reaproxime do marido, Meneses. E há o elogio, por fim, da felicidade conjugal. Ou lembrar o conto “Qual dos dois”, publicado no Jornal das Famílias, em agosto de 1872, com a mensagem final, enfática, que consta do capítulo XXII: “Repelindo os que a amavam, leviana em suas ações, dotada de um caráter orgulhosos e altivo, Augusta teve o castigo dos próprios erros. [...] Ninguém deve imitar Augusta; é um desses tipos raros, extravagantes, que nunca podem ser a esposa amante nem a mãe carinhosa; em suma, é a mulher sem nenhum traço augusto.” Mesmo um conto como “Confissões de uma viúva moça”, que consta dos Contos fluminenses, conto tematicamente audacioso, ao se considerar a época em que foi publicado, e o público a que se dirigia, tem um fundo moral inquestionável. Ao tratar, em forma epistolar, do envolvimento de uma moça casada que se apaixona por um galanteador, Machado deixa, ao final, a confissão derradeira de Eugênia, depois de viúva, num desses lances usuais da narrativa primeira do Autor, em que o marido morre às pressas para possibilitar o desfecho da narrativa: livre, mas preterida por Emílio, o rapaz por quem se apaixonara, Eugênia desabafa: “Em troca do meu amor, do meu primeiro amor, recebia deste modo a ingratidão e o desprezo. Era justo: aquele amor culpado não podia ter bom fim; eu fui castigada pelas conseqüências mesmo do meu crime”.

 

Em suma: o Machadinho, até fins dos anos setenta do século XIX, tendo em vista, entre tantos outros, os contos acima rapidamente comentados, recorre a temas constantes, o do amor e o do casamento, recorrendo, também, em suas narrativas longas, dilatadas muitas vezes por interposições de novas personagens, forma de interrupção da narrativa curta, a soluções corriqueiras, como aquelas do embaixador do amor que, ao final, pode vir a ocupar o papel daquele a quem vinha em auxílio, ou, então, à morte extemporânea, sem explicação, do marido que representava empecilho à possível felicidade dos amantes, só para citar dois exemplos. Os caracteres desenhados, de outra parte, são normalmente fixos, sem se revelarem, gradativamente, durante a narrativa. Eles são anunciados e definidos de antemão, e qualquer modificação de caráter somente pode advir de uma transformação repentina, revelação ex-abrupto, como dizia, como ocorre em “O caminho de Damasco”. A tudo, por fim, se sobrepõe a finalidade propedêutica, moralizante, do conto: preparar as jovens leitoras para o embate com a vida, em que deve prevalecer a ordem doméstica e, por extensão, social.

 

Quanta diferença ao Machado “maduro”, que se mostra a partir de Papéis avulsos, como se pretende indicar a seguir.

 

 

Os contos da “segunda fase”

 

Em Papéis avulsos, desaparecem, do horizonte dos contos, as cenas típicas, descrições da sociabilidade fluminense; o tema romântico, em torno do amor e do casamento; os entrechos românticos, que servem à complicação e, por extensão, ao retardamento da narrativa; desaparecem, também, as descrições, dadas de antemão, do caráter das personagens; desaparecem, por fim, as soluções corriqueiras em que, ao final, se pode, se não explicitamente ler, entrever o tom moralizante dos contos. Prevalece, ao contrário, a escavação da alma, ou das almas, lidas, ainda assim, em tom irônico; prevalece o estapafúrdio das situações, em que se invocam soluções esdrúxulas para os males que afligem as personagens; se questiona, profundamente, o campo científico, cultural e ideológico do século, que se estende da medicina, das teorias cientificistas do final do século XIX, ao campo das idéias, inúteis, fúteis, de segunda ordem, mas socialmente atuantes; se vasculham, igualmente, os desvãos entre os ideais professados e a realidade, canhestra, que se encontra à mão, ou a que solapa, numa segunda camada de leitura do conto, não explicitada pelo Autor,   o jogo do público e do privado, da aparência e da essência, colocando-se, enfim, o mundo à revelia.

 

Os Papéis avulsos, título aparentemente singelo, despretensioso, carregam em si, portanto, e ao contrário do que sugere o título, o que já é ironia do autor, reforçada pela “Advertência” que encima o texto, outros temas, outra perspectiva, estética, política e ideológica:

 

1.           A coletânea abre com o conto talvez mais conhecido de Machado de Assis, “O alienista”, de 1881. A história é conhecida, tratando do tema da loucura, ou dos limites entre loucura e sanidade mental. Mas tudo é engodo, ironia, colocando-se a medicina do Dr. Simão Bacamarte e, por extensão, as teorias médicas da época, a abrangerem os incipientes estudos sobre psicologia, de pernas para o ar: há, no conto, desde o ridículo, tomado a sério por Bacamarte, do regime alimentar, à base de carne de porco, que propõe à esposa, para que esta possa engravidar, até a solução derradeira do conto, quando o médico chega à conclusão de que, ao invés da população de Itaguaí, devesse ser ele próprio o alvo de seus estudos, encerrando-se, portanto, o médico na Casa Verde. O médico, em suma, carregava, em si mesmo, o seu próprio monstro, lembrando, aqui, um texto posterior, mas que orbita na mesma área, o de R. L. Stevenson, O médico e o monstro; Dr. Jeckyl e Mr. Hyde, de 1886, sem, por certo, ostentarem o mesmo tom. Em Machado impera o estapafúrdio da loucura de Simão, em devastadora crítica ao saber do tempo, entremeado o conto, além disso, de notações locais, como a do poder que o aparente sábio adquire sobre a sociedade local, ou a da revolta dos Canjicas, conseqüência da tirania, a lembrar as revoltas provinciais do Brasil, vistas sob o olhar irônico de Machado. Longe estamos, nesse sentido, dos contos iniciais do nosso Machadinho.

 

2.           O conto “Teoria do medalhão” data, também, de 1881. É conto imprescindível na compreensão da visão de Machado sobre a sociedade local. Na noite do aniversário do filho, Janjão, o que já é ironia, o pai conduz o filho para que este se tornasse o que ele não pudera ser: um medalhão da sociedade local. Para tanto, entre outras tantas recomendações, refere-se ao comportamento público a ser adotado por Janjão, o da gravidade do corpo, mas não do espírito; ao mundo das idéias, “quando o melhor será não as ter absolutamente”, devendo Jorjão limitar-se a citações recorrentes, mesmo latinas, como “Caveant consules” ou “Se vis pacem, para bellum”, ou percorrer as livrarias apenas para comentar o boato do dia; refere-se, também, ao mundo da política, em que mais valia um discurso metafísico, onde tudo já está rotulado, do que a vida prática da administração do País; ao mundo da imprensa, em que a divulgação dos fatos se torna mais importante que os fatos em si; à filosofia, em que deveria fugir a tudo que pudesse cheirar a reflexão, originalidade; e, finalmente, ao comportamento público, em que Machado exprime, às avessas, o seu “novo” projeto estético-ideológico: “— Somente não podes empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição dos cépticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça ...” O conto, não é preciso dizer mais, revolve as instituições do País, desnudando-se o vazio que pairava sobre a Nação, sem identidade própria, enquanto desnudava, também, o processo de escrita do próprio Machado da “segunda fase”, através do emprego da ironia, do humour, a requerer, sempre, dupla leitura.

 

3.           “A chinela turca”, escrito já em 1875, escolhido, no entanto, por Machado para integrar a coletânea, é um conto quase kafkiano, não fosse a sua solução final, a indicar que tudo não passara de um devaneio, enquanto Kafka, em A metamorfose, por exemplo, insiste em dizer que “Es war kein Traum” — que a sua metamorfose não era, em absoluto, um sonho. Mas, enquanto o bacharel Duarte dispõe-se, a contragosto, a ouvir a leitura de um dramalhão que o major Lopo Alves viera lhe apresentar, fazendo-o perder a noite, e o baile em que veria “os mais finos cabelos loiros e os mais pensativos olhos azuis, que esse nosso clima, tão avaro deles, produzira”, ocorre a reduplicação do dramalhão, em outro viés, com a construção de um outro conto dentro do conto, justamente o do devaneio de Duarte. Há, aí, o estranhamento, com personagens sombrias, cuja aparição é inexplicável, há a figura do padre, os corredores penumbrentos, o aparecimento das chinelas turcas, pertencentes à moça com quem Duarte deve casar, e a fuga, para finalmente Duarte acordar de seu devaneio enquanto ao major concluía a leitura de sua peça. O conto é de 1875, dizia, mas Machado o aproveita em 1882, também se pode dizê-lo, possivelmente por suas características, a indicar um diferente tratamento diante do conto melodramático romântico, do dramalhão capa-e-espada do major, da solução ética final: o “conto fantástico” dentro do conto, embora a solução final relativamente previsível — foi um sonho –, indicava os caminhos que o “novo” Machado viria a trilhar, em busca do desvelamento das diferentes camadas do ser.

 

4.           “Na arca” (Três capítulos inéditos do Gênesis) é um conto de 1878. Em forma de capítulos e versículos bíblicos, paródia do texto bíblico, narra o momento anterior àquele em que Noé, sua mulher, seus filhos Jafé, Sem e Cam, com suas mulheres, desceriam a terra firme, no topo de uma montanha, onde todos deveriam viver em paz e concórdia, uma vez erradicados os males do mundo. Os filhos, a princípio radiantes com a notícia, e com a possibilidade de poderem viver em paz e concórdia, logo entram em discórdia, por questões de divisão das terras. Reinstaura-se, nesse sentido, mesmo antes de desembarcarem em terra, o mal que fizera com que se construísse, justamente, a arca. É um conto sobre a maldade intrínseca do ser humano, às avessas do romantismo utópico, que faz ver, também, da inutilidade das ações visando ao bem comum. Entrevê-se, no conto, as “rabugens do pessimismo” machadiano, a descrer da capacidade de regeneração da humanidade: o que resta é a guerra, mola dos avanços da humanidade, a lembrar um Esaú e Jacó, ou mesmo o princípio de Humanitas, de Quincas Borba. É conto-teoria, diriam alguns, genérico, que revolve, em si, mesmo como forma, a se lembrar a paródia bíblica, o mal que se encontra no bem.

 

5.           “D. Benedita”, de 1882, é um dos contos de Machado que, para além de si mesmo, visto o conto intrinsecamente, dá bem a dimensão do “outro” Machado de Assis, o da “segunda fase”, até pelas aproximações com os da primeira, que propicia, mas de que destoa completamente.  D. Benedita figura na galeria das mulheres machadianas absolutamente volúveis, inexplicáveis, que carregam, em si, tanto a dedicação ao marido ausente, às amigas, à própria filha, como o desapego, simultâneo, a todos, sem que carregue, com isso, qualquer vestígio de afastamento, auto-introspecção. Ela é simplesmente volúvel, em sua duplicidade, entre a vontade que não se efetiva, e a lassidão, simultânea, que a acompanha. Afirmava, acima, que se trata de um conto que remete, por aproximação, aos contos da “primeira fase” de Machado. Isso está no tema, envolvendo o casamento, o seu, frustrado, e o da filha; está nas recepções de família, na presença do padre como confessor e conviva; e está, também, na descrição do perfil das personagens. Mas com que diferença! Lá, os perfis eram delineados de antemão, e as personagens só faziam confirmar as assertivas do narrador. Eram caracteres retilíneos, fixos, enquanto D. Benedita carrega, em si, a sua própria contradição, tão bem apanhada na descrição minuciosa, no capítulo II, de D. Benedita, da sua vestimenta, dos seus gestos, do ambiente do gabinete, e da própria casa, em que reina a ambigüidade: “— Casa... não casarás... se casas... casarás... não casarás.... e casas... casando...”. O próprio desfecho do conto, se pode lembrar os desfechos moralizantes dos contos da “primeira fase”, e se nos dá a chave para a compreensão de D. Benedita, chama-se, entenda-se também a ambigüidade do termo, por sua absoluta imprecisão, “Veleidade”. É conto que nos lembra, nesse sentido, mais do que os primeiros, aqueles que viriam pela frente, como “Singular ocorrência”, de 1883, ou “Capítulo dos chapéus” e “Noite de Almirante”, de 1884, insertos em Histórias sem data, ao lado de “Uns braços”, de 1885, em Várias histórias, e “Missa do galo”, de 1894, em Páginas recolhidas, entre outros.

 

6.       O “Segredo do Bonzo”, de 1882, “Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto” (Fernão: Mentes? Minto), que Machado, em nota apensa ao texto, diz não ser simplesmente um pastiche, é conto sobre o despropósito das idéias, ou sobre o poder de convencimento das idéias para além da realidade, ou sobre as “idéias fora do lugar”, ainda assim com poder de convencimento, ou por isso mesmo. Deslocado, aparentemente, no tempo e no espaço, trata das experiências “científicas” — e aí já se encontra a verve machadiana — que visam a comprovar a teoria do bonzo: “[...] se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente.” A experiência mais bem sucedida é a aquela em que Diogo Meireles começa a desnarigar as pessoas, colocando, no lugar do nariz verdadeiro, um nariz metafísico, em que todos acreditavam, visto usarem lenços para assoar o nariz... É um conto sobre o despropósito, é capítulo inventado e intercalado em texto de Fernão Mendes Pinto, mas lembra, e como lembra, as discussões e digressões em Tristram Shandy, com seus narizes, uns achatados, outros descomunais, narizes-catedrais, a fazerem as freiras da Europa se eriçarem..., enquanto lembra, também, Gogol, em seu clássico “O nariz”, que Machado deve ter lido e adaptou à condição local, não a dos narizes, diretamente, símbolo fálico, mas ao mundo das idéias, emasculadas. É troça, evidentemente, da condição intelectual brasileira, com seus “pomadistas” — de Pomada, o nome do bonzo, como diz Machado em nota, denominação comum, em nossa terra, diz também, do charlatão. É o charlatão das idéias, sempre aplaudido, ou o emplasto de Brás Cubas, cura da hipocondria, possível fonte de lucro, mas principalmente sede de nomeada. É crivo crítico, enfim, sobre a condição nacional.

 

7.       “O anel de Polícrates”, de 1882, outro conto aparentemente despregado da condição local — Machado já o predicava no “Instinto de nacionalidade” –, é texto em que Machado, em forma de diálogo — e nisso vê-se como diversifica, e testa, formas distintas em seus textos inaugurais da “segunda fase” –, narra a vida de Xavier, entre o sonho, a fantasia e a realidade. Diz, em nota, de tom elegíaco e doloroso, às avessas do que muitos possam imaginar quem fosse Machado, que se inspirara, para constituir o seu Xavier, na figura de Artur de Oliveira, a quem Machado dedica inclusive um poema. Artur de Oliveira era “um saco de espantos”, que privava da amizade de todos, Teófilo Gauthier, inclusive, quando na França. Xavier, não necessariamente o Artur de Oliveira, mas a personagem, era homem de idéias, sem papel. Brilhava em sociedade. Mas então sobrevém-lhe o caiporismo, azar dos azares, quando o narrador, no contraponto, invoca Polícrates, cujo anel da Fortuna lhe voltara, ele que não o desejava, nas vísceras de um peixe. Xavier, ao contrário, não tem a mesma sorte. Lança frases — “Ele espalhava idéias à direita e à esquerda” — como a pescar, para ver se elas voltavam a ele, autor. “Quem não for cavaleiro, que o pareça”. Xavier passou o restante da vida a ver se a frase lhe voltava, mas sem sucesso. Escutava-a nas ruas, no teatro, mas jamais lhe mencionaram a autoria, a não ser quando um amigo, à beira da morte, a reproduziu. É a apropriação das idéias alheias, como ocorre no conto “Evolução”, em que um companheiro de viagem discorre sobre a importância do trem: “Eu comparo o Brasil a uma criança que está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro”. O outro companheiro de viagem, futuro deputado, apropriando-se da frase, dita pelo amigo, afirma, inicialmente, em reencontro dos dois, referindo-se à idéia sobre o trem, “o que o senhor dizia”, para, depois, afirmar “nós dizíamos”, para, finalmente, ocorrer a apropriação final: “e aqui repetirei o que, há alguns anos, dizia eu a um amigo”... É caiporismo puro, não no sentido do azar, simplesmente, mas notação nacional: as idéias, se as há, são apropriadas pelos outros. O que incide, por óbvio, na questão da identidade nacional. As idéias, mesmo próprias, são alheias.

 

8.       Em “O empréstimo”, de 1882, Machado de Assis joga com a contradição entre a ambição e a realidade, que se debatem em uma única personagem. O conto inicia por uma digressão, para “emendar” Sêneca: muitas vezes uma só hora é a representação de uma vida inteira... A hora e a vida são as de Custódio, misto de general e pedinte, que solicita a um tabelião, que conhecera em uma festa, cinco mil contos para subscrição de ações para uma fábrica de agulhas, anunciada em jornal. Sai do tabelionato com cinco mil-réis. Custódio os aceita, não a contragosto, mas “risonho, palpitante, como se viera de conquistar a Ásia Menor”. Vai à rua, e “Com a mão esquerda no bolso das calças, ele apertava amorosamente os cinco mil-réis, resíduo de uma grande ambição, que ainda há pouco saíra contra o sol, num ímpeto de águia, e ora batia modestamente as asas de um frango rasteiro.” Machado afirma, no início do conto, tratar-se de uma anedota, não fruto de uma invenção, mas anotação do real. É anotação de um tipo social de sua época, por certo, em que a vertigem em torno da riqueza fácil, anunciada em jornal, contrasta com a pobreza, que conviviam em um mesmo indivíduo. O conto, como anedota, é simplório, se lido apenas pelo lado de Custódio, mesmo ao se considerar a contradição que este carrega em si, entre a ambição desmedida e a adesão, rasteira, ao real. Há que se ver, também, o tabelião, em sua perspicácia, a levar em sua carteira apenas duas notas de cinco mil-réis. Entre a dupla face de Custódio, entre general e soldado raso, entre a ambição e a realidade, interpõe-se o tabelião, que por cima dos óculos, para ver bem, analisa o pedinte, reduplicando, por contraste, o próprio Custódio.

 

9.       “A Sereníssima República”, de 1882, é pura provocação de Machado. Embora revele, em nota, tratar-se de “nossas alternativas eleitorais”, é de se notar, também, que o texto é anterior à instauração da República no Brasil. Com isso, Machado antevia, já, e ironizava o processo eleitoral republicano, a República em discussão à época. Os quatro partidos das aranhas, o dos retilíneos, o dos curvilíneos, o dos que congregam as idéias dos reticurvilíneos, e as dos que rejeitam curvas e linhas retas, é percepção machadiana nada ingênua do processo republicano brasileiro. Mais: no conto, que diz deva ser lido como alegoria, Machado ironiza Darwin, Büchner, e, por conseqüência, o “bando de idéias novas” introduzidas no Brasil a partir dos anos setenta do século XIX, por intermédio de Sílvio Romero, entre outros. No entremeio, discute, também com ironia, e mesmo sarcasmo, os modelos estrangeiros, desde os ingleses, até chegar à formula republicana de Veneza, “quase uma planta indígena”. No que acentua a corrupção, a falcatrua eleitoral, endógenas, nesse sentido. De utopia romântica não resta nada, nesta antevisão do Brasil republicano: “Os meus pupilos não são os solários de Campanela ou os utopistas de Morus; formam um povo recente, que não pode trepar de um salto ao cume das nações seculares.” É o Brasil “cronicamente inviável”, em que Machado faz remissão a Memórias póstumas de Brás Cubas, inclusive, ao referir-se, no conto, ao “deus das aranhas”, como se referira, no romance, ao pai das borboletas. O regime pode mudar, mas o terror das aranhas, diante de seus deuses, não.

 

10.       “O espelho” é de 1882. É, possivelmente, o conto-síntese da “segunda fase” de Machado de Assis. “Esboço de uma nova teoria da alma humana”, diz de Jacobina, figura etérea ao tempo da narração. Quando ainda alferes, é figura anódina, que conquista, através da farda, a admiração de todos. Até que vai à fazenda da tia, e se encontra, de repente, em absoluta solidão, sendo abandonado inclusive pelos escravos que o bajulavam. Vê-se a sós, entre galinhas e três bois, e entre mulas que filosofam, destino da nação, quem sabe. Entra, em conseqüência, em crise de identidade. O vazio o arrebata. Até que se olha ao espelho, ele olhando a si mesmo, visão vaga e diluída. É o não-ser. Mas então veste a farda de alferes, e se vê a si mesmo, como outro, reconstituindo a sua identidade no próprio outro. São duas almas: uma, perdida sem o outro; outra, que somente sobrevive às custas da representação social, mesmo que ínfima, como é o caso do alferes. O conto é síntese do nosso “segundo Machado”, como dizia, porque repassa a condição local, sem identidade própria, ao mesmo tempo em que lembra Gogol, em seu O capote, que, em última instância, questiona a mesma condição do pobre funcionário que somente é reconhecido, e se reconhece, usando um capote novo, aliás cosido por alfaiate também não reconhecido, mas que adora a sua obra-prima, feita de material de segunda ordem. O que nos faz lembrar, o funcionário de Gogol em seu caiporismo, o último conto de Papéis avulsos, “Verba testamentária”, derrisão da vida no Brasil, espelho, com refração, do conto “Teoria do medalhão”.

 

11.       “Uma visita de Alcebíades”, penúltimo conto do livro compilado por Machado, não tão “avulso” assim, trata, com escárnio, do espiritismo, teoria de classe-média que, idealista, vem no bojo de um materialismo às avessas, ao tentar “explicar” a migração das almas — crítica que se encontra, também, no Esaú e Jacó — e trata, de resto, ironicamente, da vida social do II Império, com a sua aparente sociabilidade, ironizada por Alcebíades. É conto extravagante, à beira do delírio intencional, para expor o ridículo das idéias e da moda vigente, ou, estendendo o dizer do conto, dos modismos, de segunda ordem, da vida nacional.

 

12.       O conto “Verba testamentária”, de 1882, é a duplicação, às avessas, do “Teoria do medalhão”. Enquanto, neste, Jorjão recebe as recomendações do pai para transformar-se em figurão, encontramos, em “Verba testamentária”, a desconstrução do medalhão. Nicolau, bem nascido, é o ciúme em pessoa, desde menino. Não pode ver seus colegas bem vestidos, não pode conviver com os rapazes do tempo, a não ser os ínfimos, não pode, quando retirado para uma fazenda, depois de casado, olhar para a mulher quando elogiada, deixa de freqüentar os barbeiros da Rua do Ouvidor, para, finalmente, falecer da moléstia, deixando em seu testamento que o seu caixão se fizesse com o pior dos marceneiros da Corte. O ciúme, que o acompanha pela vida, num crescendo, é diagnosticado pelo cunhado, médico, como resultante de um “verme no baço”, numa óbvia referência, irônica, à medicina da época, sempre fustigada por Machado. É conto que traz, também, referência explícita à história do País, como o Grito do Ipiranga, a Constituinte de 1823, a Abdicação de D. Pedro em 1831, e a Maioridade, a indicar, por parte de Machado, a abrangência que imprimia ao complexo de inferioridade de Nicolau, relacionando-o a um complexo de inferioridade da própria Nação recém-criada.

 

Pode-se afirmar, nesse sentido, que o Romantismo, com suas cenas típicas, e soluções usuais, não somente desaparecem do horizonte do Machado de Assis da “segunda fase”, como também são ridicularizadas, pelas soluções estapafúrdias que encontra, como, por exemplo, o regime alimentar da mulher do médico da Casa Verde, ou o verme no baço de Nicolau, em “Verba testamentária”, contraponto do “Teoria do medalhão”, em que Machado expõe os princípios de sua “nova” poética: o emprego da ironia, do humour, do excêntrico, do extravagante, do digressivo, como se pode ler em contos como “O segredo do bonzo”, “O anel de Polícrates”, “A Sereníssima República”, “Uma visita de Alcebíades”, ou em “Verba testamentária”.

 

Machado, em Papéis Avulsos, rompe com a expectativa da leitora das revistas de família, pelo estapafúrdio das situações criadas, prospectando, ao contrário, o que vai pelo íntimo das personagens, em sua constituição alimentada pelo paradoxo, pela insanidade sempre à espreita, pelo duplo da alma humana. Machado busca os fantasmas que animam as personagens, como se lê em “O Espelho”, ou em “D. Benedita”, aquela mulher inexplicável, súmula das tantas mulheres inexplicáveis de Machado, como se pode ler, por exemplo, também em “Singular ocorrência”, ou em “Noite de almirante”, ou no “Capítulo dos chapéus” ou em “A Senhora do Galvão”. O mesmo se encontra naqueles contos de apelo sexual não explícito, mas insinuado, como no conto “Uns braços”, e, depois, na “Missa do galo”, em que impera um misto de atração e recato, tanto nas mulheres maduras como nos jovens, criando-se um clima de mistério, indicações vagas, a sugerir-se o não-dito pelo dito.

 

Por todos esses contos, e é possível rastreá-lo pelos demais contos “maduros” de Machado, como no clássico “Causa secreta”, por exemplo, trabalha-se a questão, dizia, do duplo, a da identidade fraturada, que pode ser lida em instância pessoal, mas também nacional[27]: a fratura pode estar na personagem, mas também é a da nação, em sua identidade fraturada. Desde “O espelho”, passando por “Singular ocorrência”, “Fulano”, ou “A causa secreta”, só para citar alguns, até os que se referem à questão da arte, como “O cônego ou a metafísica do estilo”, ou “Cantiga de esponsais”, ou “Um homem célebre”, os contos são marcados pela fratura, que perpassa as personagens, o artista, a nação, em sua incapacidade de realização.

 

Mais do que uma trama, um enredo, interessam os desvãos da alma, em sua duplicidade, entre a razão e a loucura, entre o ideal e o real, entre o desejo e o interdito, entre o público e o privado, entre o erudito e o popular —  desvãos que não recebem explicação necessariamente plausível, a não ser pelo humour, pela sátira, pelo extravagante. São os desvãos da alma humana, mas também da “alma” da nação, dizia, sempre indicada, direta ou veladamente, por Machado de Assis.

 

Assim, se no romance de Machado se pode estabelecer uma guinada, estética e ideológica, a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas, nos contos também é possível esse corte, a partir de Papéis avulsos. É que Machado, ao romper com os esquemas tradicionais do conto romântico, e não se convertendo ao credo naturalista, vai beber em outra tradição do conto ocidental, a do conto que tem por tema o duplo. É tradição de larga abrangência, indo de E.T.A. Hoffmann a Kafka, passando por Poe, Gogol e Dostoiévski, por exemplo. É tradição que lida com o duplo, com o sósia¸ com o “Doppelgängermotiv”[28], a dar origem ao que viria a ser chamado de “conto fantástico”, entre a notação do real e do possível absurdo. Isto está em E.T.A. Hoffmann, num conto como o “Homem de areia”, por exemplo, em que há a reduplicação constante dos sósias; está em Poe, num conto como “William Wilson”, por exemplo, e está em Gogol, com seus capotes e retratos. E no “homem subterrâneo” de Dostoiévski.

 

Nesses contos todos, interessa a irrupção do indivíduo, possível com a irrupção das revoluções burguesas. A pesquisa do indivíduo, com as suas fraturas, e suas possibilidades de realização ou não, encontra-se já em Shakespeare — não por acaso, visto deste ângulo, uma das obsessões de Machado de Assis. A pesquisa do indivíduo, em sua busca de “valores autênticos” em uma sociedade degradada (Lukács) é o fundamento da própria “epopéia burguesa”, o romance. Mas é no limiar da loucura, da fragmentação explorada pelo “conto fantástico” — escrito, diga-se o de passagem, mas com a relevância devida, principalmente por escritores da periferia do capitalismo central, como é o caso de Hoffmann, de Poe, Gogol, Dostoiévski, e também de Machado, o que bem nos pode indicar a relação conflituosa da periferia com a modernidade do centro, aquela inclusive expondo, em sua radicalidade, a essência desta — que o encontraremos, o indivíduo, em sua mais significativa escavação.

 

A fissão do indivíduo diante da sociedade moderna, vista a partir da periferia, é o mote dessa literatura “fantástica” — e não por acaso ela é classificada como tal. É literatura que se desdobra em seu duplo, que carrega em si, a propiciar a Freud, posteriormente, escrever o “Das Unheimliche”, ensaio que toma por base justamente a sua análise do conto “Der Sandmann”, de E.T.A. Hoffmann, desdobramento múltiplo de “sósias”[29]. Em tradução, o ensaio é conhecido como “O estranho”. Mas, remontando à língua alemã, o que está, por sinal, no texto de Freud, é o “estranho” que convive com o conhecido, o “de casa” (Heim), usual (heimlich). É o fantasma que habita o ser, e que pode, a qualquer momento, vir à tona.

 

A forma dos contos da “segunda fase”, pode-se dizer, com Machado — veja-se o conto “Teoria do medalhão” — vem da Antigüidade Clássica, encontra-se na “sátira menipéia”, até chegar a Sterne e a Swift, e aos narradores que exploram o “fantástico”, como Hoffmann e Poe. É narrativa que se apóia no grotesco, no inverossímil, que, no entanto, é posto sob suspeição, pelo efeito cômico, irônico, e pela hesitação e ambigüidade que se cria entre o sonho e a realidade, o sonho sendo, já, uma espécie de explicação racional para o inexplicável, como se pode ler em “A chinela turca”, de Machado. É o sonho, o elixir milagroso, o álcool, os alucinógenos que estiram a linha tênue entre o mundo real e o fantástico, o humour como saída, talvez, diante do descompasso do indivíduo diante da sociedade moderna.

 

Essa tradição, se vem de algum grego da decadência, como afirma o nosso Autor, é ressignificada, no entanto, vale a pena repeti-lo, pela investigação da fratura do indivíduo, cuja irrupção, a do indivíduo, é propiciada pelas revoluções burguesas no centro capitalismo mundial. A exposição de sua fratura, no entanto, pelo descompasso histórico-social, vem plenamente à tona em sua periferia.

 

Machado vai lê-la, em suma, essa tradição, em viés diferenciado, concentrando o seu olhar, principalmente, na vertente anglo-saxônica. E a relê, o repito novamente, na periferia, em que a tradição se torna, diria, mais forte à medida que o descompasso se torna mais perceptível[30]. O indivíduo, numa sociedade escravista, jamais se realiza como tal, e daí o impasse, o desajuste, a loucura iminente, senão explícita, como podemos encontrar em tantas personagens machadianas, desde o alienista Bacamarte até o Quincas Borba, com sua filosofia estapafúrdia, ou em o Rubião, em seu delírio crescente, até voltar a Barbacena, com a sua coroa imaginária sobre a cabeça, ou mesmo em Bento Santiago, em sua obsessão por atar as pontas da vida. Os contos machadianos me parecem isto, para além das manias classificatórias entre contos-teoria, ou contos filosóficos, ou mesmo contos “estéticos”[31]: eles, em sua desrazão, ou derrisão, apontam para a “dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro”, como nos aponta Paulo Emílio Salles Gomes[32], o que é dado, para além da questão “universal” que aflige o indivíduo, embora também o seja, da formação nacional.

 

Assim como o indivíduo não se realiza numa sociedade como a da Rússia do século XIX, dividida entre a servidão, o capitalismo, entre os eslavófilos e francófilos, entre o “atraso” e a “modernidade”, que andam juntos, o indivíduo também não se realiza no Brasil, não somente como personagem romanesca, biografia, na ordem da ficção romanesca, em busca de valores autênticos em uma sociedade degradada, como tantas vezes enfatizado, “mimesis” da ordem social, diria Auerbach[33], mas também, e isto é de se destacar, como personagem do conto.

 

É aí, talvez, onde resida aquilo de que a crítica não tenha se dado conta, embora considere, por vezes, o Machado contista superior ao Machado romancista. É difícil evitá-lo, isto é, de sobrepor os romances aos contos, como, por sinal, aqui também não se o evita, mas há que se ponderar: nos contos, estendidos nos romances, muitos alinhavados a partir da justaposição de breves contos, subenredos, como apontava anteriormente, assim como ocorre também nas crônicas, com intercecções de breves narrativas, comentários esparsos, ainda o veremos, encontra-se a essência de Machado. Nos contos, lidos um a um, encontram-se os temas, trabalhados um a um, da obra de Machado: a loucura, a errância, o nonsense, a impossibilidade do conhecimento “positivo”, ou positivista, da realidade, a se opor, sempre, a qualquer possibilidade de o indivíduo se realizar, no Brasil, como tal. O duplo, nessas circunstâncias, manifesta-se na atração e repulsa, inveja e ódio e no inevitável jogo entre modernidade/modernização e atraso.

 

Nesse sentido, pode-se afirmar que Machado encontraria, na tradição ocidental, aquela que não era a usual no Brasil, uma saída às suas “histórias românticas”. O duplo machadiano passa a ser a espinha dorsal de seus contos, redução estrutural, diria Antonio Candido, do Brasil, entre o atraso colonial-escravista e a “modernidade” que se avizinhava, mas em que ele também não acreditava. A fissura que se entrevê nos contos é a fissura que atravessa os indivíduos, mas que atravessa também a nação. Percebê-lo, e buscar uma forma adequada para formulá-lo, foi o grande mérito do escritor Machado de Assis: ao rebaixar o “conto fantástico” à condição local, ou à miséria, não necessariamente material, de um país periférico, conseguiu chegar a sua “terceira margem”, entre a tradição ocidental, em uma de suas vertentes, e a realidade local, reafirmando o que já postulava no “Instinto de nacionalidade”: “O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e de seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.”

 


 

O TEATRO DE MACHADO DE ASSIS

 

Machado de Assis inicia a sua carreira literária, e sua inserção no mundo das letras, através da poesia e do teatro, ao lado do folhetim-rodapé de jornal, onde, entre desenhos-caricaturas de personagens típicos do cotidiano, como o parasita, o fanqueiro literário, o folhetinista, exerce, também, a crítica teatral. No teatro, entrevê as portas que lhe permitirão trilhar caminhos para a sua ascensão literária, colocando-se no debate que ia pela intelectualidade da época, entre o teatro romântico e o realista, seja como crítico, como tradutor, como censor do Conservatório Dramático, ou como dramaturgo em experimentação.

 

Inicia a sua atividade crítica em 1859, como crítico teatral do jornal O Espelho; publica, em 1860, a peça Hoje avental, amanhã luva, imitada do teatro francês, que adapta às condições locais pela renomeada das personagens e cenário, que passam a identificar a cena como brasileira, numa tentativa de contribuição à constituição de uma tradição teatral no Brasil; publica, em 1861, a comédia Desencantos; a partir de 1862, atua, por três anos, como censor do Conservatório Dramático; ainda em 1862, escreve as comédias O caminho da porta e O protocolo, as primeiras a virem a público como representações teatrais efetivas, encenação teatral, no Ateneu Dramático do Rio de Janeiro. Essas comédias seriam publicadas em 1863. É de 1862, também, a comédia Quase ministro, peça de salão, para ser representada em um dos tantos saraus literários de que Machado participava, onde se misturavam apresentações de teatro, poemas, música. É dessa época, também, As forcas caudinas, resgatada postumamente; em 1865, ocorre a representação de Os deuses de casaca, na Arcádia Fluminense,  comédia publicada em 1866; e em 1870 publica Uma comédia de Anacreonte, dialogia em versos, incluída no livro de poesias Falenas. É da década de 1860, também, a atividade de Machado de Assis como tradutor de diferentes peças francesas, que lamentavelmente se perderam.

 

Sobrevém, após, um longo interstício, em que Machado, não obstante o seu interesse pela cena, entrevisto em sua crítica, como se lê no “Instinto de nacionalidade”, por exemplo, em que aponta para a quase inexistência do teatro nacional, dada a avalanche de peças francesas voltadas ao entretenimento  banal, abandona o teatro a favor da prosa narrativa. Somente em 1880, por ocasião do tricentenário de Camões, voltaria à atividade teatral, com a comédia Tu só, tu, puro amor, representada no Teatro D. Pedro II, em que faz figurar um jovem Camões lírico e enamorado, às voltas com um antagonista ciumento, que o faria perder a sua amada, o que levaria Camões, de outra parte, à consagração futura, com a composição da epopéia lusitana Os Lusíadas.  Mais um salto no tempo, e o veremos publicando, em 1896, a comédia Não consultes médico, republicada em 1906, juntamente com Lição de botânica, em Relíquias de casa velha.

 

Esse cenário, acima rapidamente esboçado, a que recorremos a João Roberto Faria, como, de resto, recorremos principalmente a ele e a Helena Tornquist para alguns dos comentários que se seguem, dá bem a medida de Machado como dramaturgo: sua atividade teatral realiza-se especialmente como crítico — o seu “Idéias sobre o teatro”, a demonstrar o interesse pelo tablado, e pela construção de uma dramaturgia nacional, data de 1859 –, ou censor dramático, ou tradutor, e não como dramaturgo em sua plenitude, “em cena”. Suas comédias são peças, muitas delas, que vieram a público via escrita, sem representação em teatro. Se exercia a crítica, em que mostraria inclinação à comédia realista francesa, de fundo moralizante, à Musset; se traduzia peças para o Teatro Ginásio Dramático, no que se alinhava justamente com o teatro realista francês, em oposição ao melodrama romântico ainda vigente à época, com João Caetano, os seus ensaios dramáticos, comédias curtas, além de poucas, numericamente falando, tiveram pouco espaço para a encenação, muitas delas redigidas tão-somente para encenação em saraus literários, ou, como é o caso de Tu só, tu, puro amor,  para festividades literárias, num texto de ocasião.

 

O caminho da porta e O protocolo, encenadas em 1862, e publicadas em 1863, são casos elucidativos, nesse sentido: em carta a Quintino Bocaiúva, Machado diz de sua intenção em publicá-las, mesmo que ainda tateante na arte da dramaturgia. Quintino dá-lhe o veredicto: “As tuas duas comédias, modeladas ao gosto dos provérbios franceses, [...] são para serem lidas e não representadas”. E cobra um esforço mais acentuado de Machado para tentar a comédia realista de largo fôlego, no que se deva entender que Machado devesse tentar a comédia realista como representação crítica da sociedade fluminense da época. Para tanto, Machado dispunha dos modelos: Musset, Feuillet, e Augier, “influências” tão bem acentuadas por Helena Tornquist sobre Machado, a ponto de se perguntar sobre a dimensão real do “rebaixamento” da comédia francesa à cena local, ao se colocar o cenário e a renomeação das personagens entre parênteses. Mas o veredicto de Quintino Bocaiúva colou, na fortuna crítica de Machado, e na própria produção machadiana, que não adotou o desafio proposto por Quintino: ficou entre os seus ensaios sobre a representação do mundo bem-comportado da burguesia fluminense, e o cômico comedido das situações/ações propostas em cena, a ponto de calar-se, voltando ao teatro, quase como rememoração, já quase ao final da vida, com as comédias Não consultes médico e Lição de botânica.

 

Nesse sentido, diria que o envolvimento de Machado com o teatro foi eminentemente propedêutico, realizando-se mais como crítica propositiva do que como produção efetiva, para encenação. Seus mestres franceses indicavam os caminhos que o teatro brasileiro deveria seguir, sem que, no entanto, deixasse de registrar a necessidade de adaptação das peças à cena local, maneira de se criar um “sistema”, ou “formar”, em termos de Antonio Candido, uma tradição teatral local. Mas o que fazer, se as sementes dessa tradição, não propriamente aquela representada por Martins Pena, mas por um Alencar, por exemplo, diz ele no “Instinto de nacionalidade”, não foram devidamente regadas, sendo a incipiente tradição cada vez mais sufocada pela “cantiga burlesca e obscena, o cancã, a mágica aparatosa, tudo o que fala aos sentidos e aos instintos inferiores?”

 

É afirmação que pode dar a dimensão da desilusão de Machado para com o teatro já nos inícios dos anos setenta do século XIX, passada a florescência do teatro nos anos sessenta. No “Instinto de nacionalidade”, de 1873, entrevê o caminho do romance como solução, pessoal e coletiva, para a literatura brasileira: “De todas as formas várias as mais cultivadas atualmente no Brasil são o romance e a poesia lírica; a mais apreciada é o romance, como aliás acontece em toda a parte, creio eu.”

 

Se Machado, nos anos setenta, demonstra certa desilusão com os caminhos trilhados pela dramaturgia no Brasil, é de se observar, no entanto, que o seu envolvimento com o teatro, ao longo de sua juventude, e, depois de longo interregno, em sua maturidade, a par de nos indicar os caminhos de ascensão do Autor, porta de entrada para o mundo literário e social em sua juventude, muito nos diz das apostas e, simultaneamente, das agruras da formação de nosso sistema literário como um todo. Não é de estranhar, nesse sentido, a sua dedicação inicial ao teatro. Nos sessenta, a cena teatral encontra-se em plena efervescência, e poderia ser, no seu entendimento, caminho para a construção do teatro efetivamente nacional, embora calcado na comédia realista francesa, como ocorreria, por sinal, caminho por ele abraçado nos setenta, com a narrativa. A narrativa de ficção vigorou no Brasil antes mesmo de existirem romancistas no Brasil. Inicialmente, são os textos lidos diretamente do francês, por uma elite que, rejeitando os modelos peninsulares, busca na França o seu referencial como modo de constituição de uma identidade nacional. Na seqüência, não necessariamente estirada no tempo, vêm as traduções, modo de ampliar o público-leitor e alavancar as assinaturas dos jornais, através do romance-folhetim, ao pé da página, publicado em secções semanais. A seguir, vêm as adaptações, modo de aclimatar o romance no Brasil. Ao invés de as peripécias dos heróis se passarem em Paris, passam-se no Rio de Janeiro, na Corte, em especial. É o tempo das moreninhas e dos moços-loiros, em que o romance, de vertente romântica, a tratar do amor, do casamento, encontra seus empecilhos nas figuras antagônicas de embusteiros e rivais nada confiáveis, como ocorre, aliás, em Alencar e no próprio Machado da “primeira fase”. Machado é tributário dessa tradição. E buscaria desenvolvê-la, tanto no romance como no conto, embora buscasse, em sua “segunda fase”, modelos e formas alternativas ao que ocorria por aqui, entre o “aqui” e o “lá”, Brasil e França.

 

Mas, no teatro, não se daria condição semelhante? O percurso é o mesmo da narrativa. Primeiro vêm as leituras do teatro português e francês; depois vêm as traduções de peças francesas; finalmente a tentativa de constituição de um teatro nacional, pela adaptação dos modelos à cena local. Sob esse ponto de vista, o teatro foi fundamental à carreira literária de Machado: participando ativamente do cenário cultural da época, entrevia no teatro, nos anos sessenta, o caminho indicado para a constituição de uma literatura nacional, fato aliás jamais olvidado em suas narrativas, em que a sociabilidade ocorre entre a freqüentação a teatros, salões, saraus, reuniões em família, sempre demarcados como espaços de intercurso social, e amoroso, em seus romances. Seu envolvimento com o teatro, ao início de carreira, parece configurar justamente isto, portanto: aposta no teatro como percurso viável à adaptação da literatura ao Brasil, até mesmo pela significativa ressonância do gênero entre as elites locais, em busca de ressocialização, o que significava afrancesamento, no contraponto dos hábitos coloniais. Daí não admira o seu empenho, considerando-se a própria noção de uma literatura “empenhada”, novamente no dizer de Antonio Candido: para Machado de Assis, nos anos sessenta do século XIX, o teatro parecia o caminho viável para uma aclimação da literatura no Brasil. É da posição estratégica ocupada pelo teatro nos anos sessenta que advém, afora os seus interesses pessoais, de ascensão social, como já indicava, a sua dedicação, em suma, ao exercício da crítica teatral nos jornais, ao da crítica propedêutica no Conservatório, à tradução, e, ao mesmo tempo, aos seus ensaios dramáticos apoiados nas comédias realistas francesas. Era maneira de se afastar do melodrama, ou mesmo dramalhão romântico, e propor, como solução para a construção do teatro nacional, seja pela crítica, seja pela escrita de comédias leves, um teatro mais reflexivo, elegante, sóbrio, de intenções de regeneração social.

 

Mas daí, dizia, sobrevém a crise, no entender de Machado, do teatro, como se lê no “Instinto de nacionalidade”: “As cenas teatrais deste país viveram sempre de traduções, o que não quer dizer que não se admitissem alguma obra nacional quando aparecia. Hoje, que o público tocou o último grau da decadência e perversão, nenhuma esperança teria quem se sentisse com vocação para compor obras severas de arte.” A “cantiga burlesca ou obscena”, “o cancã”, como dizia Machado, para não se dizer mais, ocupava as platéias não com o teatro “sério”, modelo realista, reflexivo, subentende-se, mas com a exploração “[d]os instintos inferiores”, a merecerem, diz também, uma única frase sobre a situação do teatro no País: “Esta parte pode reduzir-se a uma linha de reticência”, como reitera em seu “Instinto”. Em conseqüência, abandona, como representação do “teatro do mundo”, o tablado a favor de sua dedicação à narrativa, outro “teatro do mundo”, em que o palco, e as personagens, são imagens refratadas, não representação direta, em cena, dos engodos do mundo, dedicando-se Machado aos romances e contos, explorando, ao início, tipos sociais característicos, e, ao final, tipos, em bom sentido, marcados pela dilaceração do indivíduo.

 

Afastar-se do teatro, recorrendo à narrativa, não significou, de outra parte, não estivesse Machado tomado pela tradição que inicialmente o alimentara. Se Machado de Assis iniciou a sua carreira literária pela poesia, pela crônica e pelo teatro, e a estendeu, diante da conjuntura cultural existente à época, à narrativa, não deixou de recorrer à criação de pequenas peças dramáticas, como é o caso de seus contos em forma de diálogo, por exemplo, ou mesmo cenas de salão, em que se percebe, não pela forma de diálogo, necessariamente, mas pelos quadros criados, a influência do teatro.

 

 Aliás, isso transformou a sua obra num grande imbróglio, dificuldade demonstrada pela crítica: a de se distinguir, por exemplo, entre contos em forma de diálogos e diálogos teatrais, como ocorria ao próprio Machado, quem sabe intencionalmente, em suas coletâneas de textos, em que justapunha contos e comédias num mesmo livro, como ocorre, por exemplo, em Relíquias de casa velha, em que publica as suas duas últimas comédias.

 

Essa “confusão de gêneros”, entre aspas, cultivada por Machado, que recorria a formas diferenciadas de “ensaios”, mesmo na narrativa, testando formas novas, porque a seu entender as existentes ou estavam ultrapassadas, ou contradiziam a sua noção de arte, como é o caso do Real-naturalismo, ou com a sua noção de “abrasileiramento” da literatura ao Brasil, encontra-se, nesse sentido, em raiz, no teatro de Machado.

 

A propósito, não por acaso, referindo-se ao legado de Machado de Assis, Mário de Alencar distingue apenas três peças no universo de escritura de Machado de Assis, como consta da edição das Obras completas da Editora Aguilar: Tu só, tu, puro amor, Não consultes médico, e Lição de Botânica. Diante do que se pode indagar: além das demais comédias, comédias para serem lidas, como quer Quintino Bocaiúva, o conto “Teoria do medalhão”, por exemplo, não poderia ser representado como uma pequena comédia, em palco? E o que dizer de As forcas caudinas, comédia transformada no conto “Linha reta e linha curva”, a peça ficando inédita? Falta de disdascálias, no caso de a “Teoria do medalhão”, indicação de como montar e encenar o espetáculo? Ou indistinção, aparente, no caso de As forcas caudinas, entre os gêneros, entre o romance, que Machado viria a ensaiar a partir de Ressurreição, e entre o conto e a comédia teatral?

 

Machado transitou entre diferentes gêneros literários, é o que se pode dizer, e bebeu do teatro. Se ele se realizou com a narrativa, que abraça a partir dos anos setenta do século XIX, para dar a sua grande guinada nos oitenta, com Memórias póstumas de Brás Cubas e Papéis avulsos, também é preciso dizer que no teatro, como encenação, não ocorreu o mesmo processo. Pela desilusão acima apontada, possivelmente. Ou, o que também é passível de especulação, pela ausência de modelos alternativos ao teatro romântico, ultrapassado, e ao teatro realista francês, a que se prende em seu início de carreira e que cultiva, ainda, ao final do século. Não obstante outras leituras possíveis, contemporâneas, que incidem na “modernidade” do Machado dramaturgo, o teatro contribuiu fundamentalmente para a formação de Machado como artista, independentemente do mérito, também escasso, de suas escassas composições teatrais. Se há uma linha, mesmo que tênue, entre o teatro e a ficção narrativa, o conto e o romance, não somente como reaproveitamento de temas, mas como lógica de articulação artística inclusive, as peças teatrais, em si, não somente não vieram, quase, ao tablado, nem, tampouco, ocuparam a cena na tradição teatral brasileira.

 

Quase ministro, de 1862, encenada em sarau de amigos, e Lição de Botânica, publicada em 1906, são dois bons exemplos do que afirmava acima, a propósito da falta de modelos alternativos com que Machado se depara, mesmo depois de ter arquitetado o seu romance “maduro”. Quase ministro não se afasta, em muito, das crônicas iniciais de Machado de Assis: ele, na peça, explora, em torno da figura do deputado quase-ministro Martins, um dos tipos da época, o dos parasitas que pululam em torno do provável futuro ministro, em busca de vantagens. É o autoproclamado conselheiro político, em busca de cargo junto ao poder; é o poeta que vem lhe dedicar uma ode, cantor que é de todos os ministérios; é o inventor de artefato bélico estapafúrdio, que vem em busca de auxílio governamental para a construção de sua máquina de guerra; é a personagem Pereira, que vem oferecer um jantar e o apadrinhamento de um filho, para se assegurar da proximidade do ministro; é o estrangeiro que busca subvenção para contratar o teatro lírico, “um verdadeiro negócio da China”, até que o quase-ministro revela que tudo não passara de um boato que correra pela cidade. O novo ministério estava formado, sem o concurso dele. Todos, na seqüência, se despedem rapidamente, saindo em busca dos novos ministros. A peça se encerra com um prosaico “São especuladores!”, indo o quase-ministro e seu primo jantar, a sós. É peça de simples composição, surgindo, a cada cena, um novo “especulador”, até a cena derradeira, em que todos se afastam. A peça ridiculariza a vida política brasileira, por certo, mas em forma de recortes dos tipos, definidos em cena como parasitas, ou, ao final, como especuladores. É o primeiro Machado dramaturgo.

 

Lição de botânica, nesse sentido, é peça bem mais refinada, a indicar um autor ciente do uso das palavras, e das ambigüidades que a linguagem encerra. É, por certo, a melhor peça de Machado de Assis, justamente por isso: o domínio da linguagem. O tema é o casamento, e o enredo é simples: trata do botânico que, convencido da incompatibilidade entre ciência e amor, no que vai uma ironia à própria ciência do final do século, procura preservar o seu sobrinho, em função do seu futuro como cientista, do casamento, acabando ele próprio enredado nas malhas de uma das mulheres da casa. O cenário é restrito, mas há movimento, num entra-e-sai do botânico, a indicar, logo, a sua indecisão, entre o amor à ciência e à mulher. O tema é tema recorrente na dramaturgia de Machado, o enredo é simples, o cenário restrito, a lembrar a arquitetura das demais peças de Machado. O que se sobressai, dizia, é o domínio da linguagem, em que Machado brinca, o tempo todo, com metáforas retiradas ao mundo da botânica. A mulher, por astúcia; o botânico, por timidez. Até que se faz o casamento, enlace entre razão e coração. Distantes do abismo que cerca as personagens dos romances e contos da “segunda fase” de Machado, com seus fantasmas sempre a postos, ameaçando vir à tona, as personagens de Lição de botânica , em que pese a dualidade da linguagem metafórica, servem ao lúdico, que perpassa toda a cena.

 

Nesse sentido, é que afirmava, acima: se o teatro foi fundamental para a formação do escritor Machado de Assis, não o foi enquanto forma que desse conta do processo social brasileiro, como se pode vislumbrar em seus romances “maduros”. Dito de outra maneira, é possível afirmar que Machado, no teatro, não encontrou a forma ideal com que pudesse tratar da sociedade local, como o fez no romance e no conto.

 

 

 

POESIA

 

Machado de Assis, é dado de se evidenciar, inicia sua vida literária pela poesia. Já em 1854, aos quinze anos de idade, estréia na imprensa com a publicação, em jornal tido de pouca expressão, o Periódico dos pobres, de um poema, intitulado, como seria vezo do poeta, ao longo de sua trajetória, ao dedicar poemas a pessoas em evidência, ou mesmo a inscrevê-los em álbuns particulares de registro de poemas — hábito da época que se estende às menininhas de ainda hoje –, “à Ilma. Sra. D.P.J.A.”, D. Petronilha, o ficamos sabendo ao final do poema[34]. Segue-se, em 1855, o poema “Ela”, publicado na Marmota Fluminense, de Paula Brito, em que colabora até 1861. Em 1864, publica o seu primeiro livro de poesias, Crisálidas; em 1870, publica Falenas; em 1875, Americanas. Em 1901, publica o livro Poesias completas, antologia de sua obra poética, coligida por ele mesmo, tendo eliminado, dos livros anteriores, 27 poemas, incluindo, por sua vez, nas Poesias completas, o até então ainda inédito livro de poemas Ocidentais.

 

Assim como já se afirmava a respeito do teatro de Machado, a poesia foi, juntamente com os seus provérbios teatrais, à Musset, a sua porta de entrada para o mundo das letras, propiciada pelo apoio inicial, também é necessário ressaltá-lo, de Paula Brito. A poesia e o teatro representaram, em suma, os seus caminhos iniciais de ascensão social, a lhe dispensarem o devido prestígio, caminho para angariar simpatias e ingressar não somente nas altas rodas intelectuais da sociedade fluminense da época como, também, aspiração de tantos outros, no serviço público, que lhe forneceria, durante toda a sua vida, os meios de subsistência.

 

Isso é da vida literária do País no século XIX, e, por que não dizê-lo, do século XX ou mais, o Estado, como diz Antonio Candido, em Literatura e sociedade, servindo de mecenato aos intelectuais. Machado de Assis seguiu esse caminho, primeiro via poesia e teatro, a que se deve aduzir a sua atuação jornalística, como crítico teatral e cronista, até chegar a sua consecução maior: a prosa de ficção, que corre, até certo ponto, cronologicamente, paralela à sua atuação como poeta e dramaturgo. Crisálidas é de 1864, como já indicado. Falenas é de 1870, contemporâneo ao seu primeiro livro de reunião de contos, os Contos fluminenses, às vésperas, os dois, portanto, de seu primeiro romance, Ressurreição, de 1872. O livro de poesias Americanas, de 1875, vem após o livro de contos Histórias da meia-noite, de 1873, e do romance A mão e a luva, de 1874, e às vésperas de Helena, de 1876.

 

A partir de então, segue-se, no entanto, longo interstício, preenchido pela narrativa romanesca, até chegar a Poesias completas, com a inclusão de Ocidentais, considerado, pela crítica, o melhor livro de poesias de Machado, alusão, até certo ponto, à sua “segunda fase” como romancista e contista, mesmo porque o livro de poemas vem à luz após romances como Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899), ou de livros de contos como Papéis avulsos (1882), Histórias sem data (1884) e Várias histórias (1896).

 

O interstício, entre Americanas até a coletânea de Poesias completas, segue os rumos do que se pode perceber na trajetória teatral de Machado de Assis: o Machado poeta, assim como o dramaturgo, cede lugar ao Machado mestre da prosa.

 

Se Machado, no teatro, não se arriscou a construir uma comédia realista de maior profundidade, requerida por Quintino Bocaiúva, por exemplo, a requerer uma representação  da  sociedade brasileira da época — o que se leria, depois, nos romances “maduros” de Machado e mesmo nos romances “menores”, em que vasculha, embora sob olhar benigno, as assimetrias de classe –, na poesia ficou preso aos ditames do tempo, assumindo posição conservadora, pautado pela régua temática e formal de seus antecessores, e mesmo contemporâneos, porque, pela forma, ou fôrma, e pela temática, reproduziu não somente fórmulas consagradas pelo Romantismo como, pela retidão dos versos, concedeu voz ao Parnasianismo, instauração de uma “ordem” na poesia brasileira, em acordo — mas em desacordo com a sua narrativa — com a criação  da Academia Brasileira de Letras.

 

O Machado poeta, nesse sentido, seguiu os passos da institucionalização da literatura no Brasil. Foi poeta que se estabeleceu na esteira dos românticos, de um Casemiro de Abreu, de um Fagundes Varela ou de Álvares de Azevedo, e, mais, mas em diapasão muito menor, de um Gonçalves Dias, sem que se possa esquecer, ao lado, os seus poemas de jovem militante liberal, de exaltação à liberdade, manifestando-se contra a opressão do México (“Epitáfio do México”) ou da Polônia (“Polônia”) ou os seus poemas como “Hino patriótico” ou “A cólera do Império”, que, se lembram a posterior poesia retórica de Castro Alves, voltada à declamação em público, são, do ponto de vista de hoje pelo menos, absolutamente anódinos, justamente pela falta de empolgação que fuja ao lugar-comum. Assim como o são também inexpressivos os seus poemas encomiásticos, verdadeiros panegíricos sem vibração poética, como é o caso do “SONETO A S.M. O IMPERADOR, O SENHOR D. PEDRO II”, publicado em 02 de dezembro de 1855, pelo jovem Machadinho, ou, como ele próprio assina, “Pelo seu reverente súdito J.M. M d’ASSIS”, como consta de Toda poesia de Machado de Assis, organizado por Cláudio Murilo Leal, já citado.

 

Se Machado, em suas obras iniciais, recorreu aos românticos, serviu, também, pela correção, objetividade, falta de lirismo, que não é a de todos os parnasianos, de regramento ao Parnasianismo, já o dizia, em seu culto pela forma ou, também, pela fôrma, a lembrar um Olavo Bilac, com o burilamento do verso em poemas que constam, até hoje, de nossas antologias, como o apólogo “Círculo vicioso” ou “A mosca azul”. O rigor da forma é procedimento que se acentua em sua obra final, em que se pode perceber, também, para além da forma, e ao contrário dos poemas iniciais, a presença do niilismo de “Uma criatura”, por exemplo, a propiciar uma leitura que aproxima o Machado poeta, do ponto de vista temático e de visão do mundo, do romancista “maduro”.

 

A poesia de Machado pode ser vista, nesse sentido, como paradigma dos caminhos da poesia no Brasil, se assim a vislumbrarmos: caminho de ascensão social, angariação de prestígio, a poesia vista ainda como cume do fazer literário. A mesma trajetória, e estratégia, seria utilizada também pelos parnasianos. Se para Machado a poesia significava inserção no meio literário, e caminho para o serviço público, para os parnasianos o fazer poético, com constantes recorrências ao universo imagístico greco-romano, ou de constante reafirmação das “agruras” da composição poética, como se lê no clássico “Profissão de fé”, de Bilac, servia à inserção do poeta no mundo da palavra-mercadoria, através de sua atividade jornalística, a atividade poética justificando o emprego no jornal. São seqüências da formação de nossa vida literária, a poesia bem comportada legitimando o espaço social e, no caso de Bilac, político, em sua militância cívica republicana oficial. São traços de nosso campo cultural, que Machado, em seu fazer poético, e mesmo crítico, soube normatizar e fixar, como persona pública a se situar entre o Romantismo e o Parnasianismo.

 

A sua poesia merece, por certo, como aliás vem merecendo, estudos acadêmicos, mas não é de ampla circulação entre leitores. Não há, na verdade, como negar a assertiva de Manuel Bandeira: “É um perigo para o poeta assinalar-se fortemente nos domínios da prosa. Entra ele nesse caso numa competência muito mais ingrata que a dos seus confrades: a competência consigo próprio.” Machado, nesse aspecto, não conseguiu competir consigo próprio: sua poesia representa o seu “eu demonstrativo”, o do cidadão em consonância com o campo cultural e social em que se movia; sua prosa, ao contrário, em especial a de sua fase “madura”, entre a galhofa aparente e o desnudamento, nas entrelinhas, do social, representa o que de mais cativante se encontra na literatura brasileira.

 

Mas voltemos ao poeta Machado. Crisálidas é livro romântico, eivado de clichês da época, como tão bem acentua Cláudio Murilo Leal em seu excelente ensaio “Um poeta todo prosa”[35]. Falenas, de sua parte, é um livro em que se manifesta, embora não ao ponto do que se observa em Americanas, a propensão narrativa do Autor, como se lê no poema “Pálida Elvira”, não obstante a presença, no livro, de um poema como “Ite, missa est”, em que a narrativa, aí sim perpassada por regrada dose de lirismo, se esvai diante da contrição poética. Sobrepõe-se, no conjunto, no entanto, o prosaísmo e a narração.

 

Americanas é livro, por excelência, de poemas narrativos. A prosa narrativa, exposta em versos, o perpassa inteiramente, assim como também uma ideologia conservadora, a lembrar os primeiros romances de Machado, não lembrasse, primeiro, Gonçalves Dias e Alencar, este com seus romances fundacionais, em busca de uma genealogia da nação. Machado, em Americanas, recompõe, na verdade, uma das vertentes da literatura “nacional”, a passar por Basílio da Gama, Santa Rita Durão, Gonçalves Dias e Alencar, apontada no “Instinto de nacionalidade” como um dos veios fortes da literatura brasileira. Mas com razoável diferença em relação a um Gonçalves Dias, embora muito próximo, ideologicamente, de Alencar.

 

Se Alencar, assim como o afirma Alfredo Bosi em Dialética da colonização[36], citando Augusto Meyer, atenua as relações colonizador/colonizado, para, no contraponto, ressaltar o “mito sacrificial”, a dizer que o indígena, em seu consórcio com o colonizador — os indígenas pactuados com os portugueses, veja-se bem, ao contrário dos indígenas aliados aos franceses –, precisa, a bem da supremacia do colonizador, morrer fisicamente, como ocorre em Iracema, ou morrer simbolicamente, como ocorre a Peri em O Guarani, Peri tomando nome português e assumindo a fé católica, e se Gonçalves Dias, em seus poemas histórico-narrativos, nos apresenta, na contramão de Alencar, o horror da colonização em O canto do Piaga  (“Não sabeis o que o monstro procura?/ Não sabeis a que vem, o que quer?/ Vem matar nossos bravos guerreiros./Vem roubar-lhes a filha, a mulher!”), Machado, em seu epigonismo, pode-se dizer, deixa a desejar em seus poemas indigenistas, em ambos os sentidos. É poesia fora de época, de um poeta que se quer indigenista, sem apresentar nem o clamor indignado pela extinção dos povos vencidos, como em Gonçalves Dias, nem ideologia de peso na formação nacional, como em Alencar.

 

Mesmo nos poemas que, no livro, remetem ao núcleo da sociedade brasileira, ou à sociedade escravista, a ecoar a poesia sobre o negro, o que seria do seu tempo, como ocorre no poema “Sabrina”, Machado revela-se como um conservador, não somente na forma, mas também no trato da matéria. Não obstante tome como matéria do poema a relação entre senhores e escravos, e não mais o tema, distante, espacial e temporalmente, das “raças extintas” e idealizadas, há, no poema, um fundo moralizante: a escrava se doa ao senhorzinho e, uma vez preterida, por razões de classe, se redime, preservando-se, na iminência do suicídio, da morte em nome do filho que carrega no ventre. Longe estamos dos horrores da escravidão denunciados por um Castro Alves, por exemplo, independentemente da denúncia do poeta “condoreiro” aproveitar aos brancos, que desejavam se livrar, por extemporâneo nos círculos do capital, da escravidão.

 

Ocidentais, como já apontava anteriormente, é o livro de poesias mais bem realizado de Machado. Sonetos como “O desfecho”, “Círculo vicioso”, “Uma criatura”, “Mundo interior”, “Suave mari magno”, “Soneto de natal”, ou “No alto”, são poemas que, a par da sua retidão formal, refletem e se indagam sobre a condição humana, fraturada entre a ambição, por vezes desmedida, e a inutilidade da própria existência.

 

Se um poema como “O desfecho” pode, muito bem, lembrar o delírio de Brás Cubas, ou “Mundo interior” a duplicidade entre a natureza exterior e a “alma interior” que habita muitos dos contos do Machado “maduro”, ou um “A mosca azul” lembrar a própria loucura de um Rubião, há que se observar, no entanto, que Machado, levado, quem sabe, pela forma, nos sonetos principalmente, apresenta, sempre, a sua chave interpretativa: o homem encontra-se diante do abismo, a lhe solapar as possibilidades de existência. Essa condição, no entanto, não vem sugerida por Machado, como em sua prosa madura, mas sempre explicitada. Não por acaso, o vocábulo abismo, que já diz tudo, surge, como definição da condição humana, nos poemas “O desfecho”, “Uma criatura” e “Mundo interior”, que se colocam quase em seqüência nas páginas iniciais de Ocidentais. Mesmo a ironia, contida, que se entrevê em “Perguntas sem resposta”, mas inegavelmente presente na expressão “Pálida Maria!”, a par de encontrar, já no título do poema, sua equação, encontra, ao final, seu derradeiro veredito: “Vênus, porém, Vênus brilhante e bela,/ Que nada ouvia, nada respondia,/ Deixa rir ou chorar numa janela/ Pálida Maria.” Isso para não lembrar o “Suave mari magno”, poema em que Machado, apesar do título, em estilo elevado, relembra a condição do pobre-diabo de um cão, para explicitar o sadismo que habita o humano.

 

São poemas que tangenciam o prosador maduro da “segunda fase”, mas que parecem sufocados pela forma, o dizia, não encontrando Machado, como já o afirmava a respeito do teatro, formas alternativas de composição, senão aquelas do Romantismo, já anacrônicas, e as do Parnasianismo. Resultou, tudo, numa poesia bem comportada, com investidas no duplo da condição humana, por certo, mas longe das alternativas testadas na prosa narrativa, como no romance e no conto. O que era mérito da prosa, a própria narrativa, é empecilho ao poema.

 

Por fim, resta reportar o sempre lembrado soneto “A Carolina”:

 

Querida, ao pé do leito derradeiro

Em que descansas dessa longa vida,

Aqui venho e virei, pobre querida,

Trazer-te o coração do companheiro.

 

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro

Que, a despeito de toda lida,

Fez a nossa existência apetecida

E num recanto pôs o mundo inteiro.

 

Trago-te flores, — restos arrancados

Da terra que nos viu passar unidos

E ora mortos nos deixa separados.

 

Que eu, se tenho nos olhos malferidos

Pensamentos de vida formulados,

São pensamentos idos e vividos.

 

A notação biográfica do soneto é óbvia, o poema escrito para a falecida esposa Carolina. No conjunto dos poemas de Machado, talvez por isso mesmo, mas não só, é, no entanto, e apesar da reminiscência e convívio familiar, poema que fica, porque perpassado por frêmito lírico, raro em sua poesia. Nele, sente-se, como na alta lírica ocidental, não o tema, apenas, do tempo fugaz, que bem poderia ser clichê, mas a própria corrosão do tempo, a carcomer a existência, ânsia de vida, temperada, ao mesmo tempo, pela sabedoria viril de que tudo passa, o poeta também.

 

É poema “ático”, enxuto, sem recorrências a figuras greco-romanas, como é do seu tempo, e de sua poesia, mas que ecoa, por isso mesmo, a lírica ocidental. “Soles ire et redire possunt”: “Os sóis podem ir e retornar. A nós, no entanto, está reservada uma única e eterna noite”, diria, citando, de memória, Catulo. Essa “única e eterna noite” não é a de Machado, tão-somente, e a de Carolina, mas é a do destino, inevitável, que a todos ronda. Vem daí o seu lirismo, sem as lamúrias, por vezes melodramáticas, do Romantismo convencional, nem o afastamento da vida, sem vida, pelo distanciamento da forma e da fôrma, do Parnasianismo. É poema que se insere, sem rebaixamento, no mau sentido, entre Catulo e Camões, e Pessoa e Drummond. Machado, em seu poema elegíaco, réquiem que suas personagens dos contos, como Pestana, não conseguiram compor, instância brasileira, problema de identidade, nacional inclusive, escreve, agora, em sua maturidade, e sem a malícia dos contos, jogo entre a aspiração e a consecução, entre o erudito e o popular, entre “O machete e o violoncelo”, mas a sério, o seu tributo a Carolina, e à vida, sempre efêmera.

 

A forma é a do soneto, mesmo porque não construímos “formas novas” no Brasil, já o afirmava Antonio Candido, mas o poema “A Carolina”, forma parcimoniosa de declaração de amor a Carolina, e ao mundo, embora os seus abismos, persiste por seu tom lírico, apesar da forma, aparentemente congelada no tempo pela fôrma parnasiana.

 

Entre Crisálidas, Falenas, Americanas e Ocidentais resta, enfim, “A Carolina”, em que o eu lírico de Machado se expande, elegia diante da morte, mas também tributo, arredio, por certo, à vida.

 

Para concluir: “A Carolina” indica o poeta que Machado poderia ter sido, tendo sido travado, no entanto, pelo formalismo, pela ação pedagógica, digâ-mo-lo, a favor de uma forma/fôrma poética rígida, que levou até ao fim da vida, salvo em “A Carolina”, não obstante a presença, neste, do soneto como fôrma. Na poesia, Machado de Assis, sem acentuada veia lírica, não se encontrou, enfim, com a sua prosa, embora a maioria de seus poemas sejam prosa versificada. Não se encontrou com a poesia, enfim, nem com uma forma poética que enformasse, criticamente, a sociedade brasileira.

 

 

 

A CRÔNICA

 

Machado de Assis, já o vimos, e enfatizamos, lançou-se na vida literária através do jornal, meio de produção e divulgação das idéias que, no Brasil, adquire importância no século XIX, a ponto de o próprio Machado, em sua juventude, liberal ardente, se indagar sobre a sobrevivência do livro diante do jornal, meio democrático, a seu ver, de difusão do conhecimento, como podemos ler, entre outros, em artigo de 1959, intitulado “O jornal e o livro”, ou, também de 1859, “A reforma pelo jornal”.

 

É no jornal que publica seus poemas, depois enfeixados em livro; é no jornal e nas revistas que publicaria, mais tarde, seus contos e seus romances “em fatias”, para depois juntá-los em livro. O jornal — a que se podem justapor as revistas de circulação periódica, como o Jornal das Famílias — pode, e deve, ser visto, desse modo, como o meio de circulação por excelência não somente do embate político, pois que os jornais, não necessariamente as revistas de moda e de entretenimento diverso, da segunda metade do século XIX se caracterizavam mais por suas posições políticas explícitas do que por seu noticiário, mas também como meio privilegiado de circulação da produção intelectual do período.

 

E foi ele, o jornal, o berço, se assim podemos dizê-lo, do intelectual Machado de Assis. Foi através do jornal que o mulato de origem pobre se afirmou e angariou simpatias, mas também desafetos e desconfianças, e galgou os degraus da vida rumo a sua ascensão social. Redator, editorialista, folhetinista-cronista, finalmente contista e romancista, Machado jamais abandonou as páginas do jornal, mesmo depois de se afastar da labuta diária na redação para assumir a carreira de funcionário público, para cuja conquista, aliás, a projeção alcançada via jornal foi decisiva.

 

É sua atividade no jornal, em sua configuração à época, o que pode, inclusive, nos dar uma visão não somente sobre os tortuosos caminhos do mulato em sua busca de ascensão social, que finalmente se concretizaria — dado biográfico a incidir, quer se queira ou não, em sua postura como persona pública, em seu constante branqueamento, patrocinado pela elite branca, a se estender inclusive até aos dias de hoje –, mas sobre a sua obra como um todo, entre o romance, o conto, o teatro, a poesia e a crítica literária, a que se pode agregar a sua atividade inclusive como tradutor não somente de peças teatrais, mas também de folhetins romanescos.

 

É a sua atividade no jornal, é possível afirmá-lo, uma de suas principais matrizes — ao lado, diria, de sua obra como escritor inicialmente inflamado pelos ideais liberais, depois, uma vez escaldado pela realidade imposta pelo regime patriarcal vigente, e mesmo depois da Abolição e do fim da Monarquia e da implantação do trabalho formalmente “livre”, e da Proclamação da República, como escritor na aparência evasivo — do seu estilo peculiar, mediado, como o indicamos a respeito do romance, e ainda o veremos, pelo estilo solto à Sterne.

 

O estilo peculiar é o da crônica. A crônica é considerada “gênero menor”, gênero que talvez, e não por acaso, mais bem se tenha aclimatado, com o tempo, no Brasil e, diz bem Antonio Candido, em Recortes, é literatura “ao rés-do-chão”. Ela nasce e flui do jornal, em consonância com o próprio meio de produção de que deriva: o jornal é rascunho do dia-a-dia, produzido às pressas, para um leitor também com pressa, que o lê para se inteirar das notícias recentes. Daí também a crônica, em sua efemeridade, lida às pressas, mas com deleite, sem, no entanto, deixar de referir-se às circunstâncias do dia-a-dia ou da semana.

 

Machado intuía isso. Se, a seu tempo, o jornal encontrava-se em período de transição, entre a militância política, o noticiário, e a miscelânea de folhetins-romances, folhetins-comentários diversos, Machado vincula admiravelmente, já em 1859, a atividade do folhetinista — leia-se, no caso, o comentário disperso dos fatos, a crônica, enfim –, ao jornal: “[...] o folhetim nasceu do jornal, o folhetinista por conseqüência do jornalista.” No mesmo artigo, assevera: “Escrever folhetim e ficar brasileiro é na verdade difícil”.

 

Machado, como folhetinista, procede, em conseqüência, conforme seu intuito, desde sempre: preencher as lacunas da vida literária brasileira, assim como o faria no romance, no conto, na crítica. O “Instinto de nacionalidade”, escrito mais de uma década depois de “O folhetinista”, o atesta, como já apontado: passa a literatura brasileira a limpo, para detectar os seus descaminhos e incidir concretamente sobre os seus rumos. Se para o jovem Machado, escrever folhetim (crônica) e ficar brasileiro é difícil, Machado, como jornalista/folhetinista/cronista, faria justamente isto: tornar a crônica, ao longo de sua atividade como escritor, um gênero perfeitamente aclimatado no Brasil. O Machado folhetinista/cronista traz o efêmero do cotidiano, o fato esparso, os faits divers para as páginas do jornal, comentando os tempos que se passam no Brasil, conectando-os com o mundo a ele contemporâneo.

 

De 1855 a 1861, colabora na Marmota fluminense, de Paula Brito. Sua trajetória como cronista regular inicia-se em 1859, em O Espelho, em que, vimos acima, traça, já, a sua trajetória de cronista, a se estender até ao final do século. Entre crônicas escritas sob pseudônimo, colunas compartilhadas com outros jornalistas, consagra-se como cronista com as suas “Balas de Estalo”, vindas a público entre 1883 e 1886, com “Bons Dias!”, entre 1888 e 1889, e com “A Semana”, entre 1892 e 1897, publicadas, estas, na Gazeta de notícias.

 

Nesse sentido, é impossível dissociar o romancista, o contista, o prosador emérito, de sua atividade jornalística. Muito pelo contrário: o romancista e o contista surgem, já o indicava, além da tradição literária estabelecida pelos seus predecessores, ou da tradição ocidental, em que incidia a tradição anglo-saxônica, do jornalista/cronista: o estilo do cronista arguto, caviloso, cheio de requebros, idas e vindas, digressivo, capaz de falar de Manaus e Jerusalém ao mesmo tempo, a intercalar falas, comentários dispersos, recursos de coesão e desconexão textual ao mesmo tempo, sem deixar, com isso, de divertir, intrigar e advertir o leitor sobre o que se passa a sua volta, é também o estilo do romance “maduro” de Machado, como se lê em Memórias póstumas de Brás Cubas, entre outros.

 

As crônicas de “A Semana” são as mais conhecidas, fruto do período de maturidade de Machado, e do período historicamente conturbado por que passa o Brasil no momento. Machado assistira à passagem da Monarquia à República; às crises políticas do novo regime, com a ascensão de Deodoro, o golpe de Deodoro e o de Floriano Peixoto, e à instituição da ditadura florianista. Vivia, no momento em que inicia a sua contribuição à Gazeta, a própria crise do regime, com as ameaças de revolta, a censura à imprensa, o rescaldo do Encilhamento, com a criação de empresas fictícias, lançamento de debêntures que se resumiam a papéis sem valor, e assiste à Revolta da Armada e à Revolução de 1993, no Rio Grande do Sul, o Estado do Sul eterna ameaça, ao ver de Machado, à unidade da nação. É a crise financeira, é a crise política, é a própria proposta de imigração chinesa em debate no Senado, para repor a mão-de-obra escrava, sob condições similares, que habitam a crônica machadiana do período.

 

É no jogo entre o dizer, o poder dizer, insinuar, calar, que Machado passeia pelos acontecimentos históricos do período, aliás um dos eixos do romance Esaú e Jacó, sem deixar, com isso, de inserir, no espaço exíguo e determinado da crônica, o delírio típico que encontramos também em seus romances ditos “maduros”.

 

São crônicas em que se percebe a sua crítica constante ao positivismo como doutrina, mas que se espraiava por todo o campo cultural e político da época, atingindo, em cheio, as instituições. Quem, afinal, fora o fundador da República, Benjamim Constant, ou o Marechal Deodoro, como se pode ler na crônica de 28 de agosto de 1892? Quem haveria de decidi-lo? A Constituição de 1891, ou os discursos parlamentares, ou a Imprensa, que mostrou igual divergência? Ou o Rio News, a adotar meio-termo, dizendo ser o Marechal um dos fundadores da República? Para apimentar a questão, vem à tona, então, a própria origem da folha do Rio News, de origem anglo-saxônia, diz Machado, meio-termo entre “a bela unidade latina” — no que Machado remete, já, às suas leituras, quem sabe “influências”, do campo cultural anglo-saxônico — a que contrapõe, por sua vez, na mesma crônica, malícia pura, o ideário da Igreja Católica, “bem latina”, a meter S. Paulo e S. Pedro no mesmo credo... São digressões, por óbvio, mas que dizem da realidade local: “Tu és Pedro e sobre esta pedra etc. Saulo, Saulo, por que me persegues?” A nova “Igreja”, leia-se a República, está posta, mas daí derivam também os conflitos, para além do meio-termo, utilizado por Machado para indicar, justamente, o inverso: o fundador de tudo foi Benjamim Constant, um positivista utópico, quem sabe, ou Deodoro, ou, por extensão, Floriano, um perseguindo o outro, Floriano, por fim, em seu pragmatismo a lembrar o “terror” da Revolução Francesa, a se consagrar, com e sobre o terror, como o fundador da República?  Isso, sem esquecer que Saulo, a caminho de Damasco, tema quase obsessão de Machado desde jovem, se transforma em Paulo, o que remete, não só e novamente ao romance Esaú e Jacó, mas também à questão política local, Pedro, o Imperador, representando o passado e o Império, e Paulo, o futuro, embora ambos vistos como  simples troca de tabuletas, como se lê em Esaú e Jacó. Citar Pedro e Saulo, omitir Paulo, são cabriolas do narrador, que, saltitante, tenta passar sobre o tempo contingente, sem deixar de comentá-lo, embora a censura, que possivelmente, ao ver de John Gledson, o deixa literalmente calado durante algum tempo, e também A Gazeta[37].

 

Por vezes, ao não poder dizer, já o dizia eu, vem o “delírio” — depois, em tempos mais recentes, durante a ditadura militar, inúmeros jornais utilizar-se-iam também, não necessariamente de delírios, mas que, no contexto, também o eram, de receitas de bolo, ou de trechos de Os Lusíadas, ou de histórias estapafúrdias, o que pode dar bem a atualidade de Machado na percepção da vida nacional, ao tratar de aparentes banalidades, indício contundente, no entanto, do “terror” de seu presente, perpassado, o delírio, ora por veia lírica, entre rosas, borboletas, momentos abruptamente interrompidos pela urgência do tempo contingente, ora perpassado por ironia ácida, como é caso dos “chins”, entre mutilados e portadores de terríveis deficiências físicas, a servirem, no entanto, ao mundo do trabalho, ora pelas pequenas “crônicas” inseridas nas crônicas, debitando Machado as suas historietas a interlocutores de seu aparente convívio.

 

Sobre a discussão em torno da imigração dos “chins”, cabe, aliás, uma citação da crônica de 18 de setembro de 1892: “Depois, o trabalho. Que outro bicho humano iguala o chim? Um cego, entre nós, pega da viola e vai pedir esmola cantando. Ora, o Padre João de Lucena [e aí Machado debita, como apontava acima, as suas historietas, crônicas na crônica, a outrem...] refere que na China todos os cegos trabalham de um modo original. São distribuídos pelas casas particulares e postos a moer arroz ou trigo, mas de dois em dois, “porque fique assim a cada um menos pesado o trabalho com a companhia e conversação do outro”. Os aleijados, se não têm pernas, trabalham de mãos; os que não têm braços, andam a ganho [lembrem-se os “escravos de ganho”, em incidência local] com uma cesta pendurada ao pescoço, para levar compras às casas que os chamam –, ou servem de correio a pé. Aproveita-se ali até o último caco de homem.”

 

É crítica contundente ao Escravismo, pois que assim se tratavam os escravos, mas também à República, que pretende, através de muitos de seus representantes, recompor, sob outro regime político, as mesmas condições de trabalho vigentes durante a o regime escravista. O tratamento previsto aos “chins” lembra, por certo, embora em tom mais ameno, o que Machado afirma sobre a imigração italiana, quando se refere, em outras crônicas, aos italianos anarquistas, à sua expulsão do País, ou à fuga das fazendas, com a ida dos imigrantes à Argentina, por exemplo, a nos lembrar as revoltas do imigrantes diante das condições impostas pelo regime do colonato.

 

É crítica ao Escravismo, mas também crítica feroz, possivelmente mais do que ao regime escravista/monárquico, porque estável[38], à República, que, pensa ele, Machado, não se distingue, no trato aos trabalhadores, da escravidão. Regímen por regímen, já o afirmava, disso dá conta o episódio da tabuleta, em Esaú e Jacó.

 

É essa desrazão, entre o apontamento do fato, suas ilações, entre o “terror político”, a fantasia, o discurso evasivo e digressivo, na própria contramão das “razões de Estado”, mas na seqüência da tradição de Laurence Sterne, como já indicado, que o texto se articula com a sociedade brasileira da época. Entre a denúncia, o cômico, o sério, o jocoso, a ironia, o humour, a postular a própria derrisão da lógica positiva e positivista, que Machado constrói, enfim, a sua crônica, a “loucura” e o “desconcerto do mundo” das crônicas encontrando, na sociedade local, o seu correlato formal.

 

Aqui, para o que interessa nesta “apresentação”, cito apenas uma crônica, a de 14 de agosto de 1892, como exemplo do que estou a afirmar. Machado inicia a crônica com “Semana e finanças são hoje a mesma coisa. E tão graves são os negócios financeiros, que escrever isto só, pingar-lhe um ponto e mandar o papel para a imprensa, seria o melhor modo de cumprir o meu dever.”  Mas logo, na seqüência, remete o texto ao leitor e elabora uma espécie de metacrônica, dizendo dos poetas maiores, contraponto dos menores, em que se insere, os leitores não dispensando os assuntos mínimos. Por que saber de finanças — quando isso era do tempo, ecos, inclusive, do Encilhamento e das emissões de moeda por parte do Estado — enquanto, ao mesmo tempo, se falava justamente sobre isso nos bondes, de forma, diz Machado, ininteligível?  Não seria melhor roer as unhas, nervos à flor da pele, em última instância, dos outros, mas que Machado remete a si mesmo, demonstração de que se inteirava, e participava dos acontecimentos da semana?        Mas, melhor do que se imiscuir nas conversas de bonde, seria olhar as tabuletas das lojas, como a que dizia: Ao Planeta do Destino”, Machado invertendo a inscrição, ironicamente, para “Ao Destino do Planeta”, se é que o tem, diria ainda, indicada a dubiedade com reticências... Interliga, desse modo, o destino do planeta com a economia, a serem lidos às avessas: “Quantas verdades escondidas em frases trocadas!”, o que pode servir de indicação de leitura aos destinos do planeta, à economia, mas também ao modo de escrita e à vida nacional. E segue-se a observação, também auto-reflecção-textual,  sobre as tiras de papel, poucas, ainda, para preencher o espaço do jornal. Elas, as tiras do jornal, era preciso preenchê-las, não obstante bastasse uma única afirmação, como constava ao início da crônica.

 

Machado, tentando preencher — veja-se-o ironicamente, tantos os assuntos da semana — o espaço da crônica, porque até então somente quatro tiras, passa a escrever, a seguir, sobre o Senado, em sua discussão sobre os “chins” — um dos alvos da crônica de 18 de setembro, como vimos –, e sobre o arroz, e o chá, em sagaz encadeamento pela coordenação frasal, para chegar, como se fluxo de consciência, a partir da raça chinesa,  às diferentes raças, como diz, à alemã, que considera um enclave no Sul do País, e à judia, o que lhe lembra Colombo e a sua canonização, impedida pelos amores que trouxera a uma judia, uma questão de economia católica, diz também, atando Machado as pontas das poucas tiras com afirmação inicial do texto, vinculando insidiosamente Colombo, os judeus e a economia, aqueles financiando os reinos de Castela no empreendimento da Conquista, embora buscassem os reis católicos as benções do deus católico... E então vem o delírio, loucura pura, outra obsessão em Machado, vistos como digressão, humour e ironia, embora interligados à questão de Colombo e aos reis católicos. Recorre à Bíblia, ao “Cântico dos cânticos”, e instaura um diálogo imaginário entre Colombo e o poema bíblico. O pensamento “rompe os séculos”, e Machado passa, na crônica, a desenhar, entre o preconceito e a sensualidade, as judias de “olhos negros e de olhos garços, umas que deslizam sem pisar no chão, outras que atam os braços ao descuidado com a simples corda das pestanas infinitas”, o “pio genovês” a perder-se no “no pecado mofento, esse fedor judaico (em itálico, no texto) — deleitoso, se querem, mas de entontecer e perder uma alma por todos os séculos dos séculos.” E a história continua, Machado imaginando como Colombo e a amada fizeram para dissimular e, às sombras do catolicismo ortodoxo, ou ao ver da Igreja, “pecar”, utilizando texto canônico da própria Igreja para exaltar o amor:

 

“— O meu amado é para mim como um cacho do Chipre, que se acha nas vinhas de Engadi.”

 

“— Os teus olhos são como os das pombas, sem falar no que está escondido dentro. Os teus dois peitos são como filhinhos gêmeos de cabra montesa, que se apascentam entre as açucenas.”

 

“— Eu me levantei para abrir ao meu amado; as minhas mãos destilaram mirra.”

 

“— Os teus lábios são como uma fita escarlate, e o teu falar é doce.”

 

“— O cheiro dos teus vestidos é como o cheiro do incenso.”

 

“Quantas uniões danadas não se mantêm por acordos semelhantes, em consciência, às vezes!”, afirma Machado, na seqüência, para “tornar à gente cristã, às eleições municipais, à senatorial, aos italianos que deixam a terra [...]”, deixando entrever, entre o aparente cansaço com a vida — “tão aborrecido estou” — o que ia pelo País: diante de tudo, era preciso, outra incidência irônica, “o descanso físico e mental, o esquecimento, a contemplação que prende com o cochilo, o cochilo que expira no sono...”

 

Na realidade — e a crônica de Machado, como mímesis, o dizia –, o País era (?) o caos, loucura na verdade, enformada pela forma das crônicas, forma também dos romances maduros de Machado, entre a digressão, o espezinhamento dos pobres, e a errância dos “heróis”, a lembrar a literatura “adoidada” do século XVIII, ao avesso do real-naturalismo do século XIX.

 

Mas enfim: se as referências concretas, em termos históricos, dos comentários de Machado sobre a e em “A Semana” são difíceis de serem decifradas, pela alusão, sem explicitação, a acontecimentos do momento — o que John Gledson quer salvar, em suas notas apostas às crônicas –, é possível afirmar, considerando-se o período histórico em que Machado escrevia, e o seu emparedamento entre tempos históricos em mutação, que ele, Machado de Assis, encontrou o seu rumo como escritor, prosador em especial: fez do descosido dos seus textos um cozido, por certo estranho, mesmo porque recorrendo a outras receitas, que não as corriqueiras, do seu País. Pode se lido como cozido de sabor por vezes alecrinesco, bem-cheiroso, às vezes apresentando-se até com certa petulância, para se mostrar como palatável, mas de fundo acre, que, se não sabe ao paladar de alguns, é amargor que carregava em sendo brasileiro, desejando sê-lo, como um homem de “seu tempo e de seu país”... 

 

 

 

 

 

 


 

[1] VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1969. ROMERO, Sílvio. Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira. Campinas. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1992. Ver, também, ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960.

 

[2] MAYA, Alcides. Machado de Assis. Algumas notas sobre o “humour”. Rio de Janeiro: Jacinto Silva, 1912. Há  edição recente, publicada pela Editora Movimento/UFSM.

 

[3] MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EdUSP, 1988. FACIOLI, Valentim. “Várias histórias para um homem célebre”. In: BOSI, Alfredo et al. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982.

 

[4] MEYER, Augusto. Machado de Assis. Porto Alegre: IEL: Corag, 2005. A propósito, ver BOSI, Alfredo. Brás Cubas em três versões: estudos machadianos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

 

[5] PEREIRA, Astrojildo. Machado de Assis. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959.

 

[6] FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974.

 

[7] BOSI, Alfredo. Machado de Assis. O enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999. Cf., também, de Alfredo Bosi, Brás Cubas em três versões: estudos machadianos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

 

[8] GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e historia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. Ver de Gledson, também, Machado de Assis: impostura e realismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. Cf., também, de Gledson, Por um novo Machado de Assis: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

 

[9] GOMES, Eugênio. Machado de Assis. Rio de Janeiro: São José, 1958. Ver, também, Espelho contra espelho. Rio de Janeiro: Progresso Editorial, 1949. MERQUIOR, José Guilherme. “Gênero e estilo das Memórias póstumas de Brás Cubas”. Colóquio/Letras, Lisboa, Julho de 1972. De Merquior, ver, também, “O romance carnavalesco de Machado”, In: Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 1987. Cf., a respeito da tradição luciânica, SÁ REGO, Enylton José de. O calandu e a panacéia:Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica.  Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

 

[10] SOUSA, José Galante de. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1955. MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis. (1839-1870): ensaio de biografia intelectual. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

 

[11] BAPTISTA, Abel Barros. A formação do nome — Duas interrogações sobre Machado de Assis. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.

 

[12] CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1964. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. Literatura e sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1965. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1998. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Seqüências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

 

[13] FARIA, João Roberto. O teatro realista no Brasil: 1855-1865. São Paulo: Perspectiva, 1993. Teatro de Machado de Assis. Edição preparada por João Roberto Faria. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Tornquist, Helena. As novidades velhas: o teatro de Machado de Assis e a comédia francesa. São Leopoldo, Editora Unisinos, 2002.

 

[14] ASSIS, Machado de. Crítica literária. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W. M. Jackson Inc., 1955. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1997, vol III.

 

[15] LUKÁCS, Georg. Ensaios sôbre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

 

[16] Romero, Sílvio. História da literatura brasileira. Op. Cit. p. 1506, 1509/10/11.

 

[17] LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Tradução, posfácio e notas por José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000.

 

[18] ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Campinas, São Paulo: Pontes, 1990.

 

[19] CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Op. Cit., vol. II, p 141. Cf., também, SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. Op. Cit.

 

[20] Ver GLEDSON, John. “Os contos de Machado de Assis: o machete e o violoncelo”. In: ASSIS,  Machado de. Contos:uma antologia. Seleção, introdução e notas por John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

 

[21] MORETTI, Franco. Atlas do romance europeu. 1800-1900. Tradução de Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

 

[22] STERNE, Laurence. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Tradução, introdução e notas por José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

 

[23] FORSTER, E.M. Aspectos do romance. Porto Alegre: Globo, 1969. CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1972.

 

[24] CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

 

[25] Ver GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. ASSIS, Machado de. Casa velha. Introdução de Lúcia-Miguel Pereira; ilustrações de Santa Rosa. São Paulo: Martins/Brasília: INL, 1972.

 

[26] Cf. FISCHER, Luís Augusto. “Contos de Machado: da ética à estética”. In: SECCHIN, Antonio Carlos et al. Machado de Assis, uma revisão. Rio de Janeiro: In-Fólio, 1998.

 

[27] Veja-se, a propósito, o excelente estudo comparativista de Patrícia Lessa Flores da Cunha, que analisa os contos de Machado e Poe explorando o motivo do duplo, relacionando-o, no entanto, e no que respeita a Machado, em viés diferente do que aqui se almeja, principalmente a uma motivação de ordem biográfica. Cf. FLORES DA CUNHA, Patrícia Lessa. Machado de Assis: um escritor na capital dos trópicos. Porto Alegre: IEL: Editora Unisinos, 1998.

 

[28] Ver, a propósito, Erläuterungen und Documente. Franz Kafka. Die Verwandlung. Herausgegeben von Peter Beicken. Stuttgart: Reclam, 1992.

 

[29] FREUD, Sigmund. “O estranho”. In: Edição standard  das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1986.

 

[30] Somente para enfatizar o que já se encontra no texto, aqui e acolá, em que há de se insistir: é o que ocorre, também, com o idealismo alemão, os Estados alemães diante da França revolucionária, o que dá, aos alemães, a sensação das “idéias fora do lugar”, já apontadas por Lukács em seu ensaio sobre o romance histórico (Cf. LUKÁCS, Georg. La novela histórica. México: Ediciones Era, 1966), ou, talvez, com o que ocorre na Rússia, entre o fim da servidão, o aparato czarista, e o embate entre a modernização à francesa e o “atraso” das instituições de tradição eslava, a compor um dos descompassos das literaturas da periferia.

 

[31] Veja-se, a respeito, a releitura, e reescrita, instigante, do ensaio de Luís Augusto Fischer a propósito dos contos de Machado de Assis, entre “éticos” e “estéticos”, anteriormente citado. FISCHER, Luís Augusto. Machado e Borges — e outros ensaios sobre Machado de Assis. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2008.

 

[32] SALLES GOMES, Paulo Emílio. “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”. In: Argumento I. São Paulo: Paz e Terra, 1973.

 

[33] AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1971.

 

[34] Cf., a propósito, ASSIS, Machado de. Toda poesia de Machado de Assis. Organização e prefácio de Cláudio Murilo Leal. Rio de Janeiro: Record, 2008.

 

[35] LEAL, Cláudio Murilo. “Um poeta todo prosa”. In: SECCHIN, Antonio Carlos et al. Rio de Janeiro: In-Fólio, 1998.

 

[36] BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

 

[37] Cf. ASSIS, Machado de. A Semana: crônicas (1892-1893). Edição, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Hucitec, 1996.

 

[38] Ver John Gledson, em sua introdução às crônicas de A Semana, acima citada.