Médico é remédio

 


 

Texto-fonte:

http://www2.uol.com.br/machadodeassis/.

 

Publicado originalmente em A Estação, de 31/10/1883 a 15/11/1883.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Em que diabo conversam estas duas moças metidas na alcova? Conversam do Miranda, um rapaz engenheiro, que vai casar com uma amiga delas. Este Miranda é um noivo como qualquer outro, e não inventou o quadrado da hipotenusa; é bonito, mas não é um Apolo. Também não é rico. Tem mocidade, alguma instrução e um bom emprego. São vantagens, mas não explicam que as duas moças se fechem na alcova para falar dele, e muito menos que uma delas, a Julieta, chore às bandeiras despregadas.

 

Para compreender ambas as coisas, e principalmente a segunda, é preciso saber que o nosso Miranda e Julieta amaram-se algum tempo. Pode ser mesmo que ele não a amasse; ela é que com certeza morria por ele. Trocaram muitas cartas, as dele um pouco secas como um problema, as dela enfeitadas de todos os retalhos de frases que lhe lembravam dos romances. Creio mesmo que juraram entre si um amor eterno, não limitado à existência do sol, no máximo, mas eterno, eterno como o próprio amor. Vai então o miserável, aproveita-se da intimidade de Julieta com Malvina, namora a Malvina e pede-a em casamento. O que ainda agrava este fato é que Malvina não tinha melhor amiga que Julieta; andaram no colégio, eram da mesma idade e trocavam as suas mais íntimas confidências. Um dia Julieta notou certa frieza na outra, escassez de visitas, poucas cartas; e tão pouco advertiu na causa que, achando também alguma diferença no Miranda, confiou à amiga as suas tristezas amorosas. Não tardou, porém, que a verdade aparecesse. Julieta disse à amiga coisas duras, nomes feios, que a outra ouviu com a placidez que dá a vitória, e perdoou com magnanimidade. Não é Otávio o demente, é Augusto.

 

Casam na quarta-feira próxima. O pai da noiva, amigo do pai de Julieta, mandou-lhe um convite. O ponto especial da consulta de Julieta a esta outra amiga Maria Leocádia, é se ela deve confessar tudo à mãe para que não a leve ao casamento. Maria Leocádia reflete.

 

— Não, respondeu ela finalmente: acho que você não deve dizer nada. Estas coisas não se dizem; e, demais, sua mãe não fará caso, e você tem sempre de ir...

 

— Não vou, não vou... Só amarrada!

 

— Ora, Julieta; deixa disso. Você não indo, dá um gosto a ela. Eu, no caso de você, ia; assistia a tudo, muito quietinha, como se não fosse nada.

 

— Velhaca! falsa! interrompia-se Julieta, dirigindo-se mentalmente à outra.

 

Maria Leocádia confessou que era uma perfídia, e, para ajudar a consolação, disse que o noivo não valia nada, ou muito pouco. Mas a ferida era recente, o amor subsistia e Julieta desatou a chorar. A amiga abraçou-a muito, beijou-a, murmurou-lhe ao ouvido as palavras mais cordiais; falou-lhe ao brio. Julieta enxugou as lágrimas; daí a pouco saía de carro, ao lado da mãe, com quem viera visitar a família da amiga.

 

O que aí fica passa-se no Rio de Janeiro, onde residem todas as pessoas que figuram no episódio. Há mesmo uma circunstância curiosa: — o pai de Julieta é um oficial de marinha, o de Malvina outro, e o de Maria Leocádia outro. Este último sucumbiu na guerra do Paraguai.

 

A indiscrição era o pecado venial de Maria Leocádia. Tão depressa falou com o namorado dela, o Bacharel José Augusto, como lhe referiu tudo o que se passara. Estava indignada; mas o José Augusto, filósofo e pacato, achou que não era caso de indignação. Concordava que a outra chorasse; mas tudo passa, e eles ainda teriam de assistir ao casamento de Julieta.

 

— Também o que faltava era ela ficar solteira toda a vida, replicou Maria Leocádia.

 

— Logo...

 

Cinco minutos depois, metiam o assunto na algibeira, e falavam de si mesmos. Ninguém ignora que os assuntos mais interessantes derrubam os que o são menos; foi o que aconteceu aos dois namorados.

 

Na rua, porém, José Augusto tornou a pensar na amiga da namorada, e achou que era naturalmente triste a situação. Considerou que Julieta não era bonita, nem rica; tinha uma certa graça e algumas prendas; mas os noivos não andavam a rodo, e a pobrezinha ia entrar em nova campanha. Neste ponto da reflexão, sentiu que estava com fome. Tomara apenas uma xícara de chá, e foi comer. Mal se sentou aparece-lhe um colega de academia, formado dois anos, que esperava por dias uma nomeação de juiz municipal para o interior. José Augusto fê-lo sentar; depois, olhou para ele, e, como ferido de uma idéia súbita, desfechou-lhe esta pergunta:

 

— Marcos, tu queres uma noiva?

 

Marcos respondeu que preferia um bife sangrento. Estava com fome... Veio o bife, veio pão, vinho, chá, anedotas, pilhérias, até que o José Augusto perguntou-lhe se conhecia Julieta ou a família.

 

— Nem uma nem outra.

 

— Hás de gostar dela; é interessantíssima.

 

— Mas que interesse...?

 

— Sou amigo da família.

 

— Pois casa-te.

 

— Não posso, retorquiu José Augusto rindo; tenho outras idéias, atirei o lenço a outra odalisca... Mas, sério; lembrei-me hoje de ti a propósito dela. Crê que era um bom casamento.

 

— Tem alguma coisa?

 

— Não, não tem; mas é só o que lhe falta. Simpática, bem-educada, inteligente, muito meiga; uma excelente criatura... Não te peço que te obrigues a nada; se não gostares ou tiveres outras idéias, acabou-se. Para começar vai sábado a um casamento.

 

— Não posso, tenho outro.

 

— De quem?

 

— Do Miranda.

 

— Mas é o mesmo casamento. Conheces a noiva?

 

— Não; só conheço o Miranda.

 

— Pois muito bem; lá verás a tua.

 

Chegou o sábado. O céu trouxe duas cores: uma azul para Malvina, outra feia e horrenda para Julieta. Imagine-se com que dor se vestiu esta, que lágrimas lhe não arrancou a obrigação de ir assistir à felicidade da outra. Duas ou três vezes, esteve para dizer que não ia, ou simplesmente adoecer. Afinal, resolveu ir e mostrar-se forte. O conselho de Maria Leocádia era o mais sensato.

 

Ao mesmo tempo, o Bacharel Marcos dizia consigo, atando a gravata ao espelho:

 

— Que interesse tem o José Augusto de me fazer casar, e logo com a tal moça que não conheço? Esquisito, realmente... Se, ao menos, fosse alguma coisa que merecesse e pudesse...

 

Enfiou o colete, e continuou:

 

— Enfim, veremos. Às vezes estas coisas nascem assim, quando menos se espera... Está feito; não me custa dizer-lhe algumas palavrinhas amáveis... Terá o nariz torto?

 

Na véspera, o José Augusto dizia a Maria Leocádia:

 

— Queria guardar o segredo, mas já agora digo tudo. Ando vendo se arranjo um noivo para Julieta.

 

— Sim?

 

— É verdade; já dei uns toques. Creio que a coisa pode fazer-se.

 

— Quem é?

 

— Segredo.

 

— Segredo comigo?

 

— Está bom, mas não passe daqui; é um amigo, o Bacharel Marcos, um bonito rapaz. Não diga nada a Julieta; é muito orgulhosa, pode recusar, se entender que lhe estamos fazendo algum favor.

 

Maria Leocádia prometeu que seria muda como um peixe; mas, sem dúvida, há peixes que falam, porque tão depressa entrou no salão e viu Julieta, perguntou-lhe se conhecia um Bacharel Marcos, assim e assim... Julieta respondeu que não, e a amiga sorriu. Por que é que sorria? Por um motivo singular, explicou ela, porque alguma coisa lhe dizia que ele podia e viria a ser a consolação e a desforra.

 

Julieta estava linda e triste, e a tristeza era o que mais lhe realçava as graças naturais. Ela tratava de dominá-la, e conseguia-o às vezes; mas nem disfarçava tanto, que se não conhecesse por baixo da crosta alegre uma camada de melancolia, nem por tanto tempo que não caísse de espaço a espaço no mais profundo abatimento.

 

Isto mesmo, por outra forma, e com algumas precauções oratórias, lhe foi dito por José Augusto, ao pedir-lhe uma quadrilha, durante a quadrilha e depois da quadrilha. Começou por lhe declarar francamente que estava linda, lindíssima. Julieta sorriu; o elogio fez-lhe bem. José Augusto, sempre filósofo e pacato, foi além e confessou-lhe em segredo que achava a noiva ridícula.

 

— Não é verdade? disse vivamente Julieta.

 

E depois, emendando a mão:

 

— Está acanhada.

 

— Não, não; ridícula é que ela está! Todas as noivas ficam bem. Olhe a cintura do vestido: está mais levantada de um lado que de outro...

 

— O senhor é muito reparador, disse Julieta sorrindo.

 

Evidentemente, estava gloriosa. Ouvia proclamar-se bela, e a noiva ridícula. Duas vitórias enormes. E o José Augusto não disse aquilo para cumprimentá-la. Pode ser que carregasse a mão no juízo que fez da noiva; mas em relação a Julieta disse a verdade, tal qual a sentia, e continuava a sentir fitando os lindos olhos da abandonada. Daí a pouco apresentou-lhe o Marcos, que lhe pediu uma valsa.

 

Julieta lembrou-se do que lhe dissera Maria Leocádia a respeito deste Marcos, e, posto não o achasse mau, não o achou tão especialmente belo que merecesse o papel que a amiga lhe atribuiu. Marcos, ao contrário, achou-a divina. Acabada a valsa, foi ter com José Augusto, entusiasmado.

 

— Realmente, disse ele, a tua recomendada é uma sílfide.

 

— Ainda bem. Bonita, não?

 

— Lindíssima, graciosa, elegante, e conversando muito bem.

 

— Já vês que te não enganei.

 

— Não; e, realmente, é pena.

 

— O quê?

 

— É pena que eu não ouse.

 

— Que não ouses? Mas, ousa, peralta. O que é que te impede de ousar?

 

— Ajudas-me?

 

— Se eu mesmo te propus!

 

José Augusto ainda nessa noite falou a Julieta acerca do amigo, louvou-lhe as qualidades sólidas e brilhantes, disse-lhe que tinha um grande futuro. Também falou a Maria Leocádia; contou-lhe o entusiasmo do Marcos, e a possibilidade de fazê-lo aceitar pela outra; pediu-lhe o auxílio. Que ela trabalhasse e ele, e tudo se arranjaria. Conseguiu ainda dançar uma vez com Julieta, e falou-lhe da conveniência de casar. Há de haver algum coração nesta sala, reflexionou ele, que sangre muito de amor.

 

— Por que não diz isso com mais simplicidade? redargüiu ela sorrindo.

 

A verdade é que Julieta estava irritada com o trabalho empregado em fazê-la aceitar um noivo, naquela ocasião, principalmente, em que era obrigada a fazer cortejo à felicidade da outra. Não falei desta nem do noivo; para quê? Valem como antecedentes da ação. Mas que sejam bonitos ou feios, que estejam ou não felizes, é o que não importa. O que importa unicamente é o que vai suceder com a rival vencida. Esta retirou-se para casa aborrecida, abatida, dizendo mentalmente as coisas mais duras à outra; até a madrugada não pôde dormir. Afinal, passou por uma breve madorna, acordou nervosa e com sono.

 

— Que mulherzinha! pensava o José Augusto indo para casa. Embatucou-me com as tais palavras: — Por que não diz isso com mais simplicidade? Foi um epigrama fino, e inesperado. E a ladra estava bonita! Realmente, quem é que deixa a Julieta para escolher a Malvina! A Malvina é uma massa de carne, sem feitio...

 

Maria Leocádia tomou a peito o casamento da amiga e José Augusto também. Julieta não dava esperanças; e, coisa singular, era menos expressiva com a amiga do que o namorado desta. Tinha vergonha de falar com a outra em tais matérias. Por outro lado, a linguagem de José Augusto era mais própria a fazer-lhe nascer o amor, que ela sinceramente desejava sentir pelo Marcos. Não queria casar sem amor. José Augusto, posto que filósofo e pacato, adoçava as suas reflexões de uma certa cor íntima; além disso, dava-lhes o prestígio do sexo. Julieta chegou a pedir-lhe perdão da resposta que lhe dera no dia das bodas de Malvina.

 

— Confesso, disse ela, que o amor não pode falar com simplicidade.

 

José Augusto concordou com esse parecer; e ambos entraram por uma tal floresta de estilo, que se perderam inteiramente. Ao cabo de muitos dias, foram achar-se à porta de uma caverna, de onde saiu um dragão azul, que os tomou e voou com eles pelos ares fora até à porta da matriz do Sacramento. Ninguém ignora o que estes dragões vão fazer às igrejas. Maria Leocádia teve de repetir contra Julieta tudo o que esta disse de Malvina. Plagiária!