O que são as moças
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Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1866.
Diz-se muita coisa feroz a respeito da amizade das mulheres. Ora, este conto tem por objeto a amizade de duas mulheres, tão firme, tão profunda, tão verdadeira, que as famílias respectivas, para melhor caracterizá-la, davam às duas a designação de Orestes e Pílades... de balão. Já se usava balão no tempo deste conto; isto é, as mulheres que haviam sido belas desde Eva até dez anos atrás sem o auxílio da crinolina, imaginaram que sem a crinolina já não podiam agradar.
Se outras razões não houvesse para suprimir a crinolina bastava a simples comparação entre... Mas não, leitoras, deste modo interrompo o romance e deito já em vosso espírito um germe de aversão pelo singelo escritor.
Tenho, pois, aqui a história de duas mulheres amigas e unidas como carne e unha. Razões de simpatia e de convivência longa trouxeram esta amizade, que fazia a felicidade das famílias e a admiração de toda a gente. Uma chamava-se Júlia e a outra Teresa. Esta tinha cabelos louros e era clara; aquela tinha-os castanhos e era morena. Eram estas as diferenças; no mais, igualmente belas e igualmente vestidas. Vestidas, sim, porque quando não estavam juntas, a primeira que acordava mandava perguntar à outra que vestido pretendia trajar naquele dia, e era assim que ambas sempre andavam vestidas do mesmo modo.
Imagine-se depois o resto. Nenhuma delas ia ao teatro, ao baile, ao passeio, sem a outra. À mesa de algum jantar, fosse ou não de cerimônia, o que esta comia, comia aquela, às vezes sem consulta, por simples inspiração.
Esta conformidade, tão ostensiva como era, não alterava o fundo da amizade, como acontece geralmente. Eram verdadeiramente amigas. Quando uma adoecia, a outra não adoecia, como devia ser, mas isto pela simples razão de que a doente não recebia um caldo que não fosse das mãos da outra. Talvez que esta simples circunstância influísse na cura.
Ambas contavam a mesma idade, com diferença de dias. Tinham vinte anos.
Já estou a ouvir uma pergunta da parte das leitoras, pergunta que naturalmente dará mais interesse ao meu conto, pela simples razão de que não responderei a ela.
A pergunta é esta. Aquelas duas almas, tão irmãs, tão conformes, namoravam acaso o mesmo indivíduo? A pergunta é natural e lógica, adivinho mesmo os terrores a que pode dar lugar o desenvolvimento dela; mas nada disso me demove do propósito de deixá-la sem resposta.
O mais que posso dizer é que até o momento em que a nossa história começa o coração de ambas não havia ainda palpitado por amor, coisa rara nos vinte anos, idade em que a maioria das mulheres já conserva vinte maços de cartas, correspondentes a outros tantos namorados inconstantes ou infelizes. Quero ao menos dotar as minhas heroínas destas duas singularidades.
Teresa é filha de um proprietário; Júlia é filha de um empregado público de ordem superior. Tinham as mães vivas e eram filhas únicas: não importa saber mais nada.
Teresa morava em Catumbi. Júlia nos Cajueiros. Calculem daqui a maçada que levava o moleque encarregado de ir dos Cajueiros ao Catumbi ou vice-versa para saber de que maneira se vestiam as duas amigas, que, como disse, até nisto queriam manter a mais perfeita conformidade!
Estamos no mês de junho. Faz algum frio. Júlia, retirada para o seu gabinete de trabalho, ocupa-se em terminar um bordado que destina mandar a Teresa. Tem a porta e janela fechadas por causa do frio. Trabalha com atividade para acabar o bordado naquele mesmo dia. Mas alguém vem interrompê-la: é uma mulatinha de dez anos, cria de casa, que acaba de receber uma carta mandada por Teresa.
Júlia abre a carta e lê o seguinte:
Minha querida Júlia. — talvez esta noite lá vá. Tenho coisas muito importantes a contar-te. Que romance, minha amiga! É para duas horas, senão mais. Prepara-te. Até logo! — Tua do coração, Teresa.
Júlia leu a carta, releu-a, e murmurou:
— Que singularidade!
Depois, escreveu as seguintes linhas em resposta a Teresa:
Vem, minha querida. Se não viesses ia eu! Há muito que não te vejo e quero ouvir-te e falar-te. Com que ouvidos te hei de ouvir, e com que palavras te hei de falar. Nem cinco horas. O melhor é vires dormir cá. — Tua Júlia.
O leitor compreende facilmente que as coisas muito importantes de que falava Teresa não seriam decerto nem a alça de fundos, nem a mudança de ministério, nem mesmo a criação de bancos. Aos vinte anos só há um banco: o coração; só há um ministério: o amor. As firmezas e as infidelidades são a alça e a baixa de fundos.
Daqui concebe o leitor, que é perspicaz, o seguinte: — o negócio importante de Teresa é algum amor.
E dizendo isto o leitor prepara-se para ver despontar no horizonte daquele coração virgem a primeira alva de um sentimento puro e ardente. Não serei eu que lhe impeça o prazer, mas só lho consentirei nos posteriores capítulos; neste não. Dir-lhe-ei somente, para melhor orientá-lo, que a visita prometida por Teresa não teve lugar por causa de visitas inesperadas que foram à casa dela. A moça arrepelou-se, mas não era possível vencer aquele obstáculo. Vingou-se porém; não deu palavra durante a noite e deitou-se mais cedo que de costume.
Dois dias depois Teresa recebia de Júlia a seguinte carta:
Minha querida Teresa. — Quiseste contar-me não sei que acontecimento; dizes-me que preparas uma carta para isso. Enquanto espero a tua carta, escrevo-te eu uma para dar-te parte de um acontecimento meu.
Até nisto parecemos irmãs.
Ah! se morássemos juntas seria a suprema felicidade; nós que juntas vivemos tão iguais.
Sabes que até hoje estou como a livre borboleta dos campos; ninguém tem feito bater o meu coração. Pois bem, chegou a minha vez.
Aí vais rir, minha cruelzinha, destas confidências; tu que não amas, vais zombar de mim que me alistei nas bandeiras do amor.
Amo, sim, e não poderia deixar de fazê-lo, tão bela, tão interessante é a pessoa em questão.
Quem é? perguntarás tu. Será o Oliveira? O Tavares? O Luís Bento? Nenhum desses, descansa. Nem lhe sei o nome. Não é conhecido nosso. Vi-o apenas duas vezes, a primeira há oito dias, a segunda ontem. Verdadeiramente o amor descobriu-se ontem. Que belo rapaz. Se o visses ficavas a morrer por ele. Quisera fazer-te a pintura, mas não sei. É um belo rapaz, de olhos pretos, moreno, cabelos abundantes e da cor dos olhos; um par de bigodes grossos e pretos.
Tem passado aqui por nossa rua, às tardes, entre as cinco e seis horas. Passa sempre a cavalo. Olha, Teresa, até o cavalo me parece adorável; cuido às vezes que está ensinado, porque ao passar em frente às nossas janelas, começa a saltar, como que me cumprimenta e agradece a simpatia que o dono me inspira.
Que tolices estou eu dizendo! Mas desculpa, minha Teresa, isto é amor. No amor sente-se muita coisa que não se sente de ordinário. Agora sei.
Vais perguntar-me se ele gosta de mim, se repara em mim? Repara posso afirmar-te; mas se gosta não sei. Porém é acaso possível que se repare muito em alguém sem gostar? A mim parece que não. Talvez seja ilusão do meu coração e dos meus desejos.
Não sabes como isto me tem posto a cabeça tonta. Ontem mamãe reparou e me perguntou que tinha eu; respondi que nada, mas de modo tal que ela sacudiu a cabeça e disse baixinho: Ah! amores, talvez!
Estive para abraçá-la, mas recuei e entrei para o quarto. Tenho medo que se saiba disto; entretanto, não creio que seja crime gostar de um moço bonito e bem educado, como ele parece ser. Que dizes tu?
Preciso dos teus conselhos. Tu és franca e és minha amiga verdadeira. Tuas palavras me servirão de muito. Se eu não tivesse uma amiga como tu, abafava com semelhante coisa.
Escreve-me, quero palavras tuas. Se quiseres o portador esperará; em todo o caso desejo que me respondas hoje.
Adeus, Teresa; até amanhã, porque eu e mamãe lá vamos. Escreve-me e sê sempre amiga da tua amiga, Júlia.
Teresa a Júlia:
Minha Júlia. — Apaixonada! Que me dizes tu? Pois é possível que achasses afinal o noivo do teu coração? E assim, sem mais nem menos, como uma chuva de verão, caindo no meio de um dia claro e bonito?
Dou-te do fundo d’alma os meus parabéns.
E se os dou não é simplesmente porque eu deseje a tua felicidade, é porque igualmente devo receber parabéns de tua parte. Sabes por que motivo? É porque também amo! Também, sim... Anch’io sono pittore! como diz o mano Gabriel.
Vê como a sorte protege nossos corações. Seria para doer que só uma de nós se apaixonasse e deixasse a outra no inteiro abandono. Mas não; Deus nos uniu e não quer que caminhemos isoladamente. Dá-nos as mãos a ambas e quer que sigamos de braço dado pela alameda do amor. Pois caminhemos, minha querida. Irás com o teu namorado e eu irei com o meu.
Ah! o meu é um belo rapaz, é a mesma figura que pintas na tua carta. Se lhe soubesse o nome mandava dizer-te aqui; mas não sei, porque mal o tenho visto passar às tardes a cavalo. Também a cavalo, como o teu; que felicidade! Belos cabelos e belos olhos. Que olhos, minha Júlia! Mais bonitos que os meus, posso jurar. Nunca vi olhos assim. Parecem mágicos; não sei por quê, mas não posso fitá-los.
Já o vi cinco vezes. A segunda estava tão embebido para mim que foi quase esbarrar contra um carro.
Fiquei tão vexada! As Avelares, que moram defronte, puseram-se a falar entre si. Parece que descobriram. A mim não me importa que se riam ou não. É de inveja, porque eu duvido que haja um rapaz de gosto que as namore, tão feias são. A mais velha parece uma lagosta; a mais moça tem cara de periquito; a do meio é periquito e lagosta ao mesmo tempo. Mano Gabriel chama aquela gente — a família impossível. E olha que é.
Mas aqui vou eu já longe do meu namorado e dos nossos amores, que vão par a par. É, como te disse, uma verdadeira proteção da sorte. Aceitamo-la, minha Júlia; amemos juntas, sejamos felizes à mesma hora, para que à mesma hora nos transfira para o céu.
Nada de idéias tristes.
Cá fico, minha querida Júlia, à tua espera. — Tua Teresa.
Júlia a Teresa:
Até logo. Escrevi este bilhete só para dizer-te que ele passou aqui ontem à tarde. Estou cada vez mais apaixonada. Adeus. — Júlia.
À noite do dia aprazado reuniram-se as duas amigas em Catumbi. Pelas cartas que aí ficam escritas imaginem os leitores do tom em que foi a conversa. A sós, no gabinete de Teresa, puderam aquelas almas abrir-se e confiar uma à outra todos os segredos e todas as esperanças. Talvez chegassem a chorar; lágrimas naquela idade são como a chuva da primavera. Caem para deixar o céu mais belo e a terra mais jubilosa.
Dizia Teresa:
— Tu não sabes, minha Júlia, como aquele moço me deixou o coração. Não penso senão nele. Já sonhei com ele duas vezes. A primeira foi um sonho de felicidade; a segunda foi um sonho terrível.
— Ah!
— Sonhei que o vi, no mesmo cavalo, rolar por um despenhadeiro abaixo. Dei um grito e acordei. Que sonho, meu Deus!
— Felizmente era sonho.
— É verdade.
— Mas ainda não me contaste o primeiro sonho.
— O primeiro...
— Nada de vergonha; o primeiro foi um sonho de felicidade, não? Pois conta. Não sou eu também confidente de felicidades?
— Sonhei que estávamos em vésperas de casar. Ele, a sós comigo, no jardim do tio Mateus, jurava aos meus pés, pela centésima vez, que eu seria o último pensamento de sua vida. Acreditarás que chorei mesmo no sonho, e que quando acordei tinha os olhos úmidos?
— Acredito, sim.
— Foi este o primeiro sonho. E tu? Não tens sonhado? Conta-me tudo.
— Não tenho sonhado, não; mas posso dizer que vivo em perpétuo sonho. Trago presente na memória a figura dele, de noite e de dia. É o mesmo ou talvez melhor que sonhar.
— Também eu! disse Teresa suspirando.
Júlia continuou:
— Olha, se eu fosse tão feliz que me casasse com ele, e se tu também te casasses com o teu, havíamos de morar juntas. Que vida feliz, hein?
— Oh! não fales!
— O amor de um lado e a amizade do outro. Que felicidade.
Bateram à porta do gabinete.
Teresa perguntou quem era.
— Sou eu, respondeu uma voz masculina.
— É o mano Gabriel, disse ela voltando-se para Júlia.
E foi abrir a porta.
Gabriel apareceu à porta. Era um rapaz simpático, muito parecido com a irmã. Tinha um ar de franqueza e de galhofa, sem excluir a delicadeza das maneiras, que o fazia querido das moças.
— Conversavam? Queria saber em quê. Imagino que não era sobre as sandálias de S. Francisco de Paula.
— Cala a boca, herege! disse Teresa.
— É heresia, sei, não precisa pôr mais na carta. Então sobre que conversavam as meninas?
— Quer saber? disse Júlia. Sobre os indiscretos.
— Passam em revista a humanidade. Pois eu aposto que não era sobre os indiscretos que falavam. Era talvez sobre amores.
— Apre lá, mano!
— Isso que tem entre moças?... A senhora minha irmã anda agora de namoro, sabe, D. Júlia?
As duas moças trocaram um olhar. Teriam sido ouvidas? Gabriel olhava para a irmã com ar de quem tinha prazer em ver aquela confusão. Teresa, depois de um minuto de silêncio, aventurou estas palavras:
— Quem lhe meteu estas coisas na cabeça?
— Ah! eu adivinho.
— Pois enganou-se na adivinhação; mas se fosse verdade?...
— Se fosse verdade era uma coisa muito natural, e por isso não sei por que motivo não havia eu de saber as coisas do teu coração.
— Deus me livre!
— Ora essa! disse Gabriel sentando-se num pufe, por que não havia eu de saber? Eu compreendo que D. Júlia não me conte os seus amores. Mas tu...
— Meus amores? disse Júlia.
— Sim, senhora, sim, os seus amores. Aposto que também não os tem?
— Nada tenho, é verdade.
— Nada, a mim é que não engana; sei que os tem, não só a senhora, como Teresa; e eu, na qualidade de irmão de uma e criado de outra, hei de saber de tudo... É a minha resolução.
— Tu ouvistes? perguntou Teresa a Gabriel.
— Tudo.
— Ah! que curioso! exclamaram as duas.
Gabriel ria-se para ambas e divertia-se interiormente com o embaraço em que ambas ficaram. As duas, não podendo suportar o olhar do moço, caíram nos braços uma da outra.
Poucos dias depois um baile reunia as duas famílias. Era um baile de anos da filha do Comendador ***.
Pouco importa saber à nossa história quem eram os convidados, nem qual era a toilette das senhoras, nem quais as mais belas, nem as mais adoráveis e adoradas.
Basta-nos saber que as duas heroínas deste conto primavam de graça e de gosto. Nisto a natureza e a arte as fizeram igualmente irmãs. Os leitores nos dispensam sem dúvida a descrição minuciosa do traje de cada uma delas.
Mesmo nos bailes poucas vezes se separavam Júlia e Teresa; em caso de força maior, resignavam-se, mas era para voltar logo a reunir-se.
Gabriel achava-se presente a esse baile.
Às dez horas da noite apareceu nos salões um cavalheiro que, por sua galharda presença e beleza original, começava a adquirir certa reputação. Era um filho de Campos; muito jovem fora à Europa, de onde voltara havia poucos dias.
Antes que o moço convidado chegasse à saleta onde se achavam as duas heroínas, lá lhes chegara a fama. Uma natural curiosidade falou em ambas as criaturas. Vê-lo, foi um pensamento que assaltou a um tempo o espírito de Júlia e Teresa; mas ambas julgaram que deviam ir ao toilette ver mais duas amigas que lá as esperavam no fundo do vidro de um espelho, muito parecidas com elas, e talvez mais amigas ainda de cada uma delas, do que elas o eram entre si.
Foram.
Uma mulher tem sempre uma fita a prender, um fio de cabelo a arranjar, quando se trata de ver um homem pela primeira vez, ou mesmo pela segunda, ou mesmo pela centésima vez.
É por assim dizer as armas que elas dispõem para entrar no duelo da casquilhice, duelo onde não há necessidade de cartel nem de testemunhas.
Arranjada a fita ou o cabelo, ou, como talvez acontecesse, porque neste ponto a tradição é obscura, feita unicamente uma simples e rápida inspeção, dispunham-se as duas amigas a voltar ao salão.
Júlia ia adiante; com uma das mãos afastou o reposteiro para sair; mas Teresa, do outro lado, fez o mesmo, e ambas puseram o pé fora da porta ao mesmo tempo, quando por um rápido movimento tornaram a entrar.
Olharam-se.
— Lá está ele! disseram ambas.
— Ele quem? perguntou Teresa.
— O meu namorado, respondeu Júlia. E o teu também está?
— Também.
Fora, com efeito, passeavam alguns cavalheiros.
As duas amigas colaram o olho a uma fresta do reposteiro e começaram a indicar uma à outra quem era o dono do coração.
Momentos depois desta investigação feita em voz baixa, e com a respiração compressa, olharam-se com espanto:
— É o mesmo!
Esta exclamação partiu de ambas.
Em tais ocasiões há sempre um momento de silêncio, ainda quando se trata de corações tão intimamente ligados como eram aqueles dois.
Com efeito, o acaso, autor de muitos lances imprevistos, preparara às duas amigas aquela circunstância engenhosa de ambas se apaixonarem pelo mesmo indivíduo. Era naturalmente o que lhes poderia acontecer de pior.
O silêncio que houve entre as duas amigas deu lugar a que muitas reflexões fizessem ambas sobre tão extraordinária situação. Mas prolongá-lo era piorar as coisas. Foi Teresa quem falou em primeiro lugar.
— Na verdade, é preciso que a sorte nos reserve como eterno exemplo de confraternidade para que nos aconteça tão singular encontro.
— É verdade, disse Júlia.
— Era o primeiro, e por desgraça é o mesmo.
— Dizes bem, por desgraça, porque... tu o amas, não?
— Muito. E tu?
— Tanto como tu. É uma desgraça.
As duas amigas foram sentar-se tristes. Creio até que uma lágrima rolou-lhes pela face, como se já de antemão estivessem a chorar o bem que iam perder mediante um ato de suspiro.
Estiveram assim durante algum tempo.
Depois Teresa levantou-se e foi a Júlia.
— Minha querida, somos irmãs pelo coração; se o teu amor é forte, se dele depende a tua vida, seja a conquista unicamente tua. Consola o teu coração e não te importes comigo.
— Isso não, respondeu Júlia levantando-se. Em nome do que devo eu consentir esse sacrifício? Não chorar para ver-te chorar, Teresa, prefiro morrer!
Tamanho interesse duvido eu que alguém tenha visto, sobretudo com o ar de convicção sincera daquele; era um espetáculo que eu sinto ter sido apenas observado pelos espelhos do toilette e pela pena do romancista que penetra até no íntimo do pensamento.
Todavia, se aquela luta da recusa do namorado em questão se prolongasse mais algum tempo, corria o risco de ser monótona. Parece que ambas compreenderam isto, porque trataram de pôr termo a ela.
Ocorreu, porém, a ambas uma idéia que até ali não tinha aparecido. Foi Teresa quem primeiro a enunciou.
— Mas, dize-me cá, se ele nos iludir a ambas? Não disseste que ele parecia corresponder-te?
— Correspondia.
— Também a mim.
— Enganava a ambas.
— Enganava. Isto é importante. Nós nos doíamos de amor por ele, sem sabermos que ambas fazíamos convergir o nosso espírito para um mesmo ponto, e ele, contente por contar com o coração de ambas, de ambas se ria entre si.
— Parece que é verdade isso.
— É, sem dúvida.
Juntou-se ao desgosto da situação um grão de despeito. Era o sal que faltava. Devo mesmo dizer que se não houvesse aquele despeito tão natural, o coração das duas moças sofreria dobradamente. Até então apenas tinham a idealidade de uma má fortuna contra quem exalar os seus suspiros e clamores; agora tinham diante de si um ente vivo, humano, a causa da situação aflitiva a que eram levadas.
Assim que, uma vez concordes em que o moço zombava delas, as duas moças ficaram igualmente acordes num ponto: era que ele não devia entrar nas suas preocupações, posto que tão indigno se mostrara.
Mas quem pode responder pelo coração? Era ainda o coração quem as animava contra o jovem namorado comum. Enganavam-se, talvez; venceria o amor ou a amizade? É o que as leitoras vão saber se tiverem a paciência de passar aos capítulos seguintes.
Não pertenço ao número dos narradores que atribuem aos leitores uma cegueira completa para a averiguação de certos pontos das suas narrativas. Fica entendido que o leitor sabe já que o namorado de Júlia e Teresa, e o rapaz entrado às 10 horas na casa do Comendador ***, causando tanto abalo aos convidados, eram uma e a mesma pessoa.
Isto posto, direi mais duas palavras sobre o misterioso namorado. Já disse que chegara da Europa e que era um guapo rapaz. Acrescentarei que se chama Daniel. Tem 25 anos de idade. Profissão: duzentos contos em títulos da dívida pública e prédios inscritos nas companhias de seguro contra o fogo. Era gastador, mas gastava com certa conta; isto por experiência, visto que os duzentos contos eram já os restos de uma fortuna de oitocentos que lhe deixara o pai.
Tal é em traços largos o namorado das duas raparigas, que seria de quantas quisesse, tão próprio a inspirar amores era ele.
Júlia e Teresa tinham saído para o salão.
Não viram Daniel.
Mas, na ocasião em que se anunciava uma quadrilha, viram aproximar-se do lugar em que elas estavam Daniel e Gabriel: Daniel era míope; quando pôs a luneta e conheceu as duas raparigas fez um gesto de surpresa. Não convinha, porém, mostrar-se conhecido de nada, e para logo se acalmou. Gabriel conduziu-o, apresentou-o às duas amigas, e disse para sua irmã que dançasse com ele.
— Tenho par, murmurou Teresa.
— Tens, é verdade, disse Gabriel, mas o teu par sou eu. Ora, eu cedo em favor de Daniel.
Não era possível recuar. Todavia, Teresa não quis decidir-se sem consultar Júlia com o olhar.
Júlia levantou simplesmente os ombros; Teresa adivinhou o movimento e tomou o braço de Daniel.
Gabriel voltou-se para Júlia e disse:
— Se não tem par, D. Júlia. O meu vis-à-vis é Daniel.
— Não tenho, respondeu a moça.
Nesse momento soara o sinal da quadrilha. Júlia levantou-se e aceitou o braço do irmão de Teresa. Iam tomar lugar em frente de Teresa e Daniel, quando um cavalheiro se apresentou reclamando uma quadrilha de Júlia, a qual dizia ser aquela.
— Eu me enganei; o meu par era este cavalheiro.
O moço não insistiu.
Júlia corou. Tinha faltado à verdade e acabava de cometer uma imprudência; mas apenas se achou diante do par Teresa e Daniel, a moça esqueceu tudo, e cravou na amiga um olhar inteligente e indagador.
Entretanto a quadrilha começou e seguiu o seu curso. Daniel conversava muito com Teresa; esta respondia-lhe por monossílabos; mas de certo ponto em diante parecia interessar-se menos que ao princípio.
Qual seria o motivo da conversa?
Era esta a pergunta que Júlia fazia consigo. Mas não podendo saber logo, ardia por ver a quadrilha acabada. A quadrilha acabou; apenas se achou a sós com Teresa perguntou-lhe curiosa qual o objeto do diálogo que tivera com Daniel; Teresa respondeu que ele fizera correr a conversa sobre banalidades, que era um homem aborrecido e comum.
Isto tranqüilizou a outra.
Dançou-se ainda algumas quadrilhas. Era já uma hora da noite. A família de Teresa, a instâncias desta, adiara a saída.
Gabriel apareceu de repente a Júlia levando pelo braço o seu amigo Daniel.
— O meu amigo Daniel é o melhor valsista da sala, incluindo-me eu próprio, disse ele a Júlia.
E, voltando-se para Daniel, continuou:
— D. Júlia é a melhor valsista desta sala, incluindo minha mana.
Seguiu-se uma valsa entre Daniel e Júlia: era natural.
A valsa foi realmente digna dos elogios que dos dois valsistas fizera Gabriel.
Quando pararam Júlia estava extenuada. De fadiga ou comoção? Talvez de uma e outra coisa. O que é certo é que Daniel tanto valsava como falava ao ouvido de Júlia, palavras brandas, rápidas e incisivas.
Ora, no fim da noite eis em resumo o que Daniel havia dito a Júlia e a Teresa.
A Teresa:
— Amo-a muito; é a única que trago em meu pensamento. Um capricho levou-me a querer brincar com a sua amiga; mas eu não tenho nem quero ter outro amor que não seja este. É a minha alma, é a minha vida, é o meu futuro, é o meu céu. Ame-me, ame-me!
A Júlia:
— Amo-a muito; é a única que trago no meu pensamento. Um capricho levou-me a querer brincar com a sua amiga; mas eu não tenho, nem quero ter outro amor que não seja este. É a minha alma, é a minha vida; é o meu futuro, é o meu céu! Ame-me, ame-me!
Passaram-se alguns dias depois do baile.
Nenhum acontecimento importante mudou a ordem antiga das coisas; as duas amigas comunicaram-se com freqüência; as cartas iam e vinham com presteza, e a afeição fraternal parecia não ter sofrido em coisa alguma.
Uma só coisa se notava na correspondência de Júlia e de Teresa; era um silêncio obstinado a respeito de Daniel. Esse silêncio, depois dos acontecimentos e do diálogo dos dois no baile, era natural; mas acaso a declaração de Daniel influiria no ânimo?
Vamos ver o que foi.
Daniel continuava a passar todas as tardes como anteriormente em Catumbi e nos Cajueiros. À hora do costume já as duas moças se achavam à janela.
Como explicar o procedimento de Daniel? Amaria ambas? Impossível. Enganaria ambas ou uma só?
O amor, para Daniel, era simplesmente um objeto de distração; ele não amava, nem a Júlia, nem a Teresa; divertia-se com ambas, por mero passatempo.
Em tão má hora o fez, ou antes com toda a perfídia, que as duas boas moças declararam-se apaixonadas por ele.
E esta paixão foi a nuvem que cobriu o céu de amizade, até então puro e radiante.
Os dias correram do modo por que os leitores adivinham. O silêncio recíproco a respeito de Daniel deu a entender a Júlia e a Teresa que eram rivais uma da outra.
Isto devia naturalmente trazer uma explicação. Foi o que aconteceu; as duas, um dia que se achavam juntas, levaram naturalmente a conversa para o objeto comum.
Ambas declararam que amavam Daniel e comunicaram a esperança que este lhes dava. Como da primeira vez, chegaram ao conhecimento de que ambas eram enganadas. As cartas que ambas recebiam de Daniel foram igualmente comunicadas. A nova traição do rapaz foi descoberta.
No meio, porém, destas rivalidades e das nuvens que começavam a ensombrar o quadro da afeição fraternal de Júlia e de Teresa, o coração foi readquirindo os seus direitos e pôde contrabalançar o amor.
O que é certo é que um mês depois Júlia e Teresa recebiam uma da outra uma carta de desistência.
Eis a carta de Teresa a Júlia:
Minha querida Júlia. — Sei quanto sofres, sei como amas Daniel. Compreendo esse amor por ele, visto que o tenho igualmente. Mas eu posso sofrer os golpes da fatalidade e reerguer-me sã e salva. Duvido que o possas tu. Sente-se que a tua vida depende desse amor.
Assim, pois, vou fazer o que meu coração me dita. É um dever de amizade leal, como convém a quem está sincera em tudo isto.
Amo Daniel, é verdade, mas entre o meu e o teu sacrifício, prefiro o meu. Sufocarei a minha paixão. Ama-o tu sozinha e sê feliz.
Procedendo assim, estou longe de crer que mereça louvores ou agradecimentos; faço o dever. Salvar uma amiga de uma dor grave é um dever de amizade. Se a amizade não servisse para estas grandes ocasiões seria uma coisa fácil.
Quando o céu nos fez tão iguais, e o mesmo sentimento nos ligou, foi para que nos mostrássemos assim. Se hoje faço isto, amanhã farás outra coisa por mim, e teremos ambas merecido o nome de verdadeiramente amigas.
Sossega, pois, o teu coração; alimenta as tuas esperanças. Ama Daniel. Sê feliz e crê-me tua amiga, — Teresa.
Quando Júlia lia esta carta de Teresa, Teresa lia a seguinte carta de Júlia:
Minha Teresa. — Daniel é um tanto bandoleiro; mas ele pode ser firme e fiel, se um coração verdadeiramente apaixonado o contiver. Qualquer de nós lhe daria esse coração, mas de nós ambas só tu pareces mais fraca, mais exclusivamente apaixonada. Eu o estou bastante, mas agradeço restar-me um pouco de razão para ver que devo fazer um sacrifício em teu favor.
A que chegaríamos se eu insistisse em conservar o amor de Daniel? A uma luta estéril, sem resultado, a não ser o de perdermos ambas a tranqüilidade do coração e a felicidade da nossa vida. Que isso me sucedesse a mim, pouco me importaria, mas tu é que não deves sofrer, e eu lastimaria do fundo d’alma tão funesto resultado.
O que te digo, pois, é que o ames só e procures ganhar exclusivamente toda a afeição de Daniel. Ele pode fazer-te feliz, e pela minha parte vou pedir a Deus que coroe os teus votos.
Não te importes comigo; sou mais forte do que tu; posso lutar e vencer. Por que não? Quando me faltasse coragem, bastaria a idéia de que cumpria um dever de irmã para ganhar forças. Não será uma luta estéril, a luta do meu coração contra o amor. Mas vença o dever, e tanto basta para fazer-me contente.
Ama-o e sê feliz. Do coração to deseja a tua, — Júlia.
Estas duas cartas, chegando ao mesmo tempo e dizendo a mesma coisa, produziram idênticos efeitos.
Ambas viram que de parte a parte havia um sacrifício de amizade. Mas ambas persistiram no que haviam entendido, sem querer aproveitar o sacrifício da outra.
Novas cartas e novas recusas da parte de ambas.
E, para realizar o sacrifício oferecido, ambas deram de tábua ao gamenho Daniel.
A primeira vez que se encontraram caíram nos braços uma da outra, quase lavadas em lágrimas.
— Obrigada, minha amiga! O teu sacrifício é grande, mas em vão; não posso aceitá-lo.
— Nem eu o teu.
— Por que não?
— Por que não?
— Aceita.
— Aceita tu.
E deste modo cada uma delas tratava de ver quem seria a mais generosa que a outra.
Respondendo desta maneira, atirado de uma para outra, recusado por sentimento de magnanimidade, Daniel foi quem perdeu no tal joguinho. De onde se prova o provérbio que é sempre mau correr a duas lebres.
Mas falta à nossa história o epílogo e a moralidade.
***
Quinze dias depois das cenas que se acabam de narrar, Teresa escreveu a Júlia as seguintes linhas:
Minha Júlia. — Sei que és minha amiga e partilharás a minha felicidade. Vou ser feliz.
A felicidade para nós outras reduz-se a muito pouco: encher o nosso coração e satisfazer a nossa fantasia.
Vou casar. Acabo de ser pedida. O meu noivo possui o meu coração, e posso dizê-lo, sem vaidade para mim, eu possuo o dele.
Perguntarás quem ele é. É natural. Não te lembras do Alfredo Soares? Pois é ele. Vi-o tantas vezes a frio; não sei por que comecei a amá-lo. Hoje se ele não me pedisse, creio que eu morreria. O amor é isto, Júlia: é problema que só a morte ou o casamento resolve.
Adeus, abençoa o futuro de tua amiga, — Teresa.
Júlia leu esta carta e respondeu as seguintes linhas:
Minha Teresa. — Estimo do fundo d’alma a tua felicidade e faço votos para que sejas completamente feliz. O teu noivo merece-te; é um belo mancebo, bem educado e de boa posição.
Mas não quero que te entristeças. O céu nos fez amigas e irmãs, não podia dar-nos a felicidade por meio. Também me deparou alguma coisa; e, se não estou pedida, vou sê-lo esta tarde.
Não conheces o meu noivo; chama-se Carlos da Silveira, tem 25 anos, e é um coração de pomba. Ama-me como eu amo a ele.
Meu pai não se poderá opor a este casamento. O que resta é que ele seja feito no mesmo dia, para que, fazendo em igual hora a nossa ventura, ratifiquemos a sorte propícia e idêntica que o céu nos deparou.
Agradeçamos a Deus tanta felicidade. Até amanhã à noite. Tua, — Júlia.
No dia seguinte reuniram-se todos, não em casa de Teresa, mas em casa de Júlia, nos Cajueiros. Estavam as duas e os dois noivos. Gabriel acompanhara a família à visita.
As duas moças comunicaram os seus projetos de felicidade. Nenhuma delas censurou à outra o silêncio que guardara até a hora do pedido em casamento, porque ambas tinham praticado a mesma coisa.
Ora, Gabriel, que soubera por sua irmã Teresa da recusa de ambas relativamente a Daniel, aproveitou uma ocasião que as acompanhou à janela e disse-lhes:
— Não há nada como a amizade. Admiro cada vez mais o ato de generosidade que ambas praticaram a respeito de Daniel.
— Ah! sabe! disse Júlia.
— Sei.
— Fui eu quem lho disse, acrescentou Teresa.
— Mas, continuou Gabriel, são tão felizes que o céu lhes deparou logo um coração para responder aos seus.
— É verdade, disseram as duas.
Gabriel olhou para ambas, e depois, à meia voz, com intenção disse:
— Com a singularidade de que a carta de desistência do coração do primeiro foi escrita depois do primeiro olhar amoroso do segundo.
As duas moças coraram e esconderam o rosto.
Tinham de ficar vexadas.
Caía assim o véu que encobria o sacrifício e via-se que ambas haviam praticado o sacrifício no interesse pessoal; ou por outra: largavam um pássaro tendo outro em mão.
Mas as duas moças casaram-se e ficaram tão amigas como antes. Não sei se no correr dos tempos houve sacrifícios semelhantes.