Sem olhos
Texto-Fonte:
http://www2.uol.com.br/machadodeassis
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, dezembro,
1876.
O chá foi servido na
saleta das palestras íntimas às quatro visitas do casal Vasconcelos. Eram estas
o Sr. Bento Soares, sua esposa D. Maria do Céu, o bacharel Antunes e o
desembargador Cruz. A conversa, antes do chá, versava sobre a última soirée
do desembargador; quando o criado entrou, passaram a tratar da morte de um
conhecido, depois das almas do outro mundo, de contos de bruxas, finalmente de
lobisomem e das abusões dos índios.
— Pela minha parte,
disse o Sr. Bento Soares, nunca pude compreender como o espírito humano pôde
inventar tanta tolice e crer no invento. Vá que uma ou outra criança dê crédito
às suas próprias ilusões; para isso mesmo é que são crianças. Mas, que um homem
feito...
— Que tem isso?
observou o desembargador apresentando a xícara ao criado para que lhe repetisse
o chá; a vida do homem é uma série de infâncias, umas menos graciosas que as
outras.
— Queres mais chá,
Maria? perguntou a dona da casa à esposa de Bento Soares, que acabava de beber
a última gota do seu.
— Aceito.
O bacharel Antunes
apressou-se a receber a xícara de D. Maria do Céu, com uma cortesia e graça,
que lhe rendeu o mais doce dos sorrisos.
— Eu acompanho o
desembargador, disse Bento Soares.
Enquanto o bacharel
Antunes ampliava ao marido de Maria do Céu o obséquio que acabava de prestar a
esta, com a mesma solicitude, mas sem receber o mesmo nem outro sorriso, e
passava ao criado a xícara vazia, Bento Soares prosseguia em suas idéias acerca
das abusões humanas. Bento Soares estava profundamente convencido que o mundo
todo tinha por limites os do distrito em que ele morava, e que a espécie humana
aparecera na terra no primeiro dia de abril de 1832, data de seu nascimento.
Esta convicção diminuía ou antes eliminava certos fenômenos psicológicos e
reduzia a história do planeta e de seus habitantes a uma certidão de batismo e
vários acontecimentos locais. Não havia para ele tempos pré-históricos, havia
tempos pré-soáricos. Daí vinha que, não crendo ele em certas lendas e contos da
carocha, mal podia compreender que houvesse homem no mundo capaz de ter crido
neles uma vez ao menos.
A conversa, porém,
bifurcou-se; enquanto o desembargador referia a Bento Soares e ao dono da casa
algumas notícias relativas a crenças populares antigas e modernas, as duas
senhoras conversavam com o bacharel, sobre um ponto de toilette... Maria
do Céu era uma mulher bela, ainda que baixinha, ou talvez por isso mesmo,
porquanto as feições eram consoantes à estatura: tinha uns olhos miúdos e
redondos, uma boquinha que o bacharel comparava a um botão de rosa, e um nariz
que o poeta bíblico só por hipérbole poderia comparar à torre de Galaad. A mão,
que essa, sim, era um lírio dos vales — lilium convalium —, parecia
arrancada a alguma estátua, não de Vênus, mas de seu filho; e eu peço perdão
desta mistura de coisas sagradas com profanas, a que sou obrigado pela natureza
mesma de Maria do Céu. Quieta, podiam pô-la num altar; mas, se movia os olhos,
era pouco menos que um demônio. Tinha um jeito peculiar de usar deles que
enfeitiçou alguns anos antes a gravidade de Bento Soares, fenômeno que o
bacharel Antunes achava o mais natural do mundo. Vestia nessa noite um vestido
cor de pérola, objeto da conversa entre o bacharel e as duas senhoras. Antunes,
sem contestar que a cor de pérola ia perfeitamente à esposa de Bento Soares,
opinava que era geral acontecer o mesmo às demais cores; donde se pode
razoavelmente inferir que em seu parecer a porção mais bela de Maria não era o
vestido, mas ela mesma.
Uma contestação, em
voz mais alta, chamou a atenção deles para o grupo dos homens graves. Bento
Soares dizia que o desembargador mofava da razão, afiançando acreditar em almas
do outro mundo; e o desembargador insistia em que a existência dos fantasmas
não era coisa que absolutamente se pudesse negar.
— Mas, desembargador,
isto é querer supor que somos uns beócios. Pois fantasmas...
— Não me dirá nada de
novo, interrompeu Cruz; sei o que se pode dizer contra os fantasmas; não
obstante, existem.
— Como as bexigas;
também se diz muita coisa contra elas.
— Fantasmas! exclamou
Maria do Céu. Pois há quem tenha visto fantasmas?
— É o desembargador
quem o diz, observou Vasconcelos.
— Deveras?
— Nada menos.
— Na imaginação, disse
o bacharel.
— Na realidade.
Os ouvintes sorriram;
Maria fez um gesto de desdém.
— Se a entrada na
Relação dá em resultado visões dessa natureza, declaro que vou cortar as asas
às minhas ambições, observou o bacharel olhando para a esposa de Bento Soares,
como a pedir-lhe aprovação do dito.
— Os fantasmas são
fruto do medo, disse esta, sentenciosamente. Quem não tem medo não vê
fantasmas.
— Você não tem medo?
perguntou a dona da casa.
— Tanto como deste
leque.
— Sempre há de ter
algum, opinou Vasconcelos.
— Não tenho medo de
nada nem de ninguém.
— Pode ser, interveio
o desembargador; mas se visse o que eu vi uma vez, estou certo de que ficaria
apavorada.
— Alguma bruxa?
— O diabo?
— Um defunto à
meia-noite?
— Um duende?
Cruz empalidecera.
— Falemos de outra
coisa, disse ele.
Mas o auditório tinha
a curiosidade aguçada, e o próprio mistério e recusa do desembargador faziam
crescer o apetite. Os homens insistiram; as senhoras fizeram coro com eles.
Cruz imolou-se ao sufrágio universal.
— O que eu vi foi há
muitos anos, disse ele; ainda assim conservo a memória fresca do que me
aconteceu. Não sei se poderia ir até o fim; e desde já estou certo de que vou
passar uma triste noite...
Uma risadinha de Maria
do Céu interrompeu o desembargador.
— Prepare o auditório!
disse ela. Vamos ver que a montanha dá à luz um ratinho.
Alguns sorriram; mas o
desembargador estava sério e pálido. Bento Soares ofereceu-lhe uma pitada de
rapé, enquanto Vasconcelos acendia um charuto. Fez-se grande silêncio; só se
ouvia o tic-tac do relógio e o movimento do leque de Maria do Céu. O desembargador
olhou para os interlocutores, como a ver se era possível evitar a narração; mas
a curiosidade estava tão pendente de todos os olhos, que era impossível
resistir.
— Vá lá! disse ele.
Contarei isto em duas palavras.
Quando eu estudava em S. Paulo raras vezes gozava as férias todas na fazenda de meu pai; ia a Cantagalo passar
algumas semanas e voltava logo para o Rio de Janeiro, aonde me chamava o meu
primeiro e último namoro, paixão de quatro anos, que a Igreja consagrou e só a
morte extinguiu. Nas férias do terceiro ano fui morar no primeiro andar de uma
casa da Rua da Misericórdia. No segundo morava um homem de quarenta anos que
parecia ter mais de cinqüenta, tão alquebrado e encanecido estava. Éramos os
dois moradores únicos, salvo o meu pajem, que fazia o número três. O vizinho de
cima não tinha criado.
A primeira vez que o
vi foi logo no dia seguinte da minha entrada na casa. Ao passar pelo corredor
dei com ele na escada, que ia do primeiro para o segundo andar, de pé, com um
livro aberto nas mãos. Tinha um pé no quinto e outro no sexto degrau. Fiquei a
olhar de baixo para ele durante algum tempo; não o conhecendo, entrei a
suspeitar se seria algum ladrão. O pajem explicou-me que era o morador de cima.
Dois dias depois,
estando eu à noite em casa, perto das onze horas a ler na minha sala, senti
alguém bater-me à porta; fui abrir; era o vizinho, que descera, com um livro na
mão, talvez o mesmo que lia dois dias antes na escada, não sei.
— Venho incomodá-lo,
não? disse ele.
Fiz um gesto duvidoso,
e fiquei a olhar para ele como quem espera uma explicação.
— O morador da loja,
continuou ele, disse-me hoje que o senhor é estudante. Talvez me possa explicar
uma coisa. Sabe hebraico?
— Não.
— É pena! disse ele
consternado.
Ficou alguns instantes
silencioso, a olhar para o livro e para o teto. Depois fitou-me, e disse:
— Ando a ver se meto
dente numa passagem de Jonas.
Dizendo isto,
sentou-se abrindo o livro sobre os joelhos. Joelhos chamo eu, porque é esse o
nome daquela região; mas o que ele tinha naquele lugar das pernas eram dois
verdadeiros pregos, tão magro estava. A cara angulosa e descarnada, os olhos
cavos, o cabelo hirsuto, as mãos peludas e rugosas, tudo fazia dele um
personagem fantástico. Esteve algum tempo ainda silencioso, até que continuou:
— Há aqui um versículo
de Jonas, é o 11 do cap. IV, em que leio: “E então eu não perdoarei a grande
cidade de Nínive, onde há mais de cento e vinte mil homens, que não sabem
discernir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda?”. Como entende o senhor
este versículo?
A idéia que o vizinho
era doido apoderou-se logo de meu espírito. Que outra coisa seria, vindo
consultar a semelhante hora, a um vizinho de três dias, sobre um texto de
Jonas? Também eu não tinha medo nesse tempo — tal qual como a Sra. D. Maria do
Céu —, deixei-me estar quieto na cadeira, a olhar sem responder, contendo uma
grande vontade de rir.
— Que lhe parece?
repetiu o vizinho.
— Que quer o senhor
que me pareça?
— “Homens que não
sabem discernir a mão direita da esquerda”; — frase que, geralmente, tem um
sentido óbvio, e vem a ser nada menos que isto: o profeta refere-se às crianças
ninivitas. Jeová quer perdoar a cidade por amor dos meninos que ela encerra.
Mas eu dou do texto uma interpretação que vai assombrar o mundo.
— Sim?
— Jonas não alude às
crianças, mas aos canhotos que são os homens que não podem discernir a direita
da esquerda. Sendo assim, veja o senhor a importância da minha interpretação.
Duas coisas se concluem dela: 1ª que os ninivitas eram geralmente canhotos; 2ª
que o ser canhoto era no entender dos hebreus um grande mérito. Desta última
conclusão nasceu uma terceira, a saber, que chamar canhoto ao diabo é estar
fora do espírito bíblico. Isto é claro como água e evidente como a luz.
A profunda convicção
com que ele disse tudo isto, e o ar de triunfo com que ficou a olhar para mim,
confesso que me impressionaram singularmente. Não sabia que dizer; o melhor era
concordar, declarando que a sua opinião era por força verdadeira.
— Não lhe parece?
disse ele. Contudo, não sendo eu forte no hebraico, desejava consultar alguém
que me dissesse se o texto original está bem traduzido na Vulgata, e se a
expressão bíblica é essa ou outra diferente. Liquidado este ponto, escreverei
um livro. Afiança-me que não sabe hebraico?
— Não sei sequer o
alfabeto.
— Nesse caso há de
perdoar.
Dizendo isto,
ergueu-se, fez-me uma cortesia e deu um passo para a porta. Ali parou e
voltou-se.
— Esquecia-me
dizer-lhe o meu nome; devia de ser a primeira coisa. Chamo-me Damasceno
Rodrigues, moro há três anos aqui em cima, onde estou às suas ordens. Viva!
Não esperou que lhe
dissesse o meu nome; curvou-se e saiu. Imaginem facilmente como fiquei; a
vontade de rir foi o primeiro efeito; o segundo foi uma mistura de pena, receio
e curiosidade. No dia seguinte, disse ao pajem que tirasse informações acerca
de Damasceno Rodrigues. Tirou-as, e o que liquidei delas foi que o meu vizinho
morava aí havia três anos, como dissera; que era um velho médico, sem clínica;
que vivia pacificamente, saindo apenas para ir comer a uma casa de pasto da
vizinhança ou ler duas horas na biblioteca pública; enfim, que no bairro
ninguém o tinha por doido, mas que algumas velhas o supunham ligado ao diabo.
Esta crença, comparada com a idéia que o homem tinha a respeito do Canhoto,
dava bem para uma anedota romântica, que eu podia escrever logo depois que
voltasse a S. Paulo; tal foi o motivo que me levou a visitá-lo alguns dias
depois.
O segundo andar era
antes um sótão puxado à rua; compunha-se de uma sala, uma alcova e pouco mais.
Subi. Achei-o na sala, estirado em uma rede, a olhar para o teto. Tudo ali era
tão velho e alquebrado como ele; três cadeiras incompletas, uma cômoda, um
aparador, uma mesa, alguns farrapos de um tapete, ligados por meia dúzia de
fios, tais eram as alfaias da casa de Damasceno Rodrigues. As janelas, que eram
duas, adornavam-se com umas cortinas de chita amarela, rotas a espaços. Sobre a
cômoda e a mesa havia alguns objetos disparatados; por exemplo, um busto de
Hipócrates ao pé de um bule de louça, três ou quatro bolos, meio pote de rapé,
lenços e jornais. No chão também havia jornais e livros espalhados. Era ali o
asilo do vizinho misterioso.
Achei-o, como lhes
disse, estirado na rede, a olhar para o teto. Não me sentiu entrar; mas eu
falei-lhe e ele ergueu um pouco a cabeça.
— Quem é? disse ele.
— Eu.
— O senhor?
— Seu vizinho de
baixo.
— Ah! disse ele
erguendo-se; pode entrar.
— Não se incomode;
vinha apenas pagar-lhe a visita.
Damasceno tinha-se
levantado; e das cadeiras ofereceu-me a melhor, isto é, a que não tinha costas,
porque das outras duas, uma estava exausta de palhinha e a outra possuía três
pés somente.
O riso de Damasceno
era pior que a seriedade; sério, dava ares de caveira; rindo, havia nele um
gesto diabólico; a tudo resiste porém ambição do escritor juvenil. Eu queria
uma novela, e estava disposto a conversar com o diabo em pessoa. Para dizer alguma coisa, falei-lhe na passagem de Jonas.
— Descobriu alguma
coisa? perguntei-lhe.
— Nada, tornou ele,
mas cuida que pensei mais em semelhante assunto?
— Supunha.
— Qual! No dia
seguinte deixei-o de lado.
— Entretanto, creio
que era importante decidir se realmente o nome de Canhoto dado ao diabo...
Damasceno interrompeu-me
com uma risadinha sardônica e gelada que me tapou a boca. Não tive ânimo de
continuar e faltava-me assunto para entretê-lo. Ele, entretanto, meteu as mãos
na algibeira das calças e começou a andar de um para outro lado, ora cabisbaixo
e silencioso, ora olhando para o teto e murmurando alguma coisa que eu não
podia perceber. Havia no rosto daquele homem, além da velhice precoce, uma
expressão de tristeza e amargura que os olhos não podiam contemplar
impunemente. Ao mesmo tempo era tão extraordinária a figura e tão singulares os
costumes dele, que a gente tinha prazer em o conversar e atrair, quando menos
por sair um pouco da vulgaridade dos outros homens.
Damasceno passeou
cerca de oito minutos, sem me dizer palavra. Ao cabo deles, parou defronte de
mim.
— Mancebo, disse ele,
quais são as suas idéias a respeito da lua?
— Poucas... algumas
notícias apenas.
— Sei, disse ele
desdenhosamente; o que anda nos compêndios. Pífia ciência é a dos compêndios! O
que eu lhe pergunto...
— Adivinho.
— Diga.
— Quer saber se também
suponho que o nosso satélite seja habitado?
— Qual! são devaneios,
são conjecturas... A lua, meu rico vizinho, não existe, a lua é uma hipótese,
uma ilusão dos sentidos, um simples produto da retina dos nossos olhos. É isto
que a ciência ainda não disse; é isto o que convém proclamar ao mundo. Em
certos dias do mês, o olho humano padece uma contração nervosa que produz o
fenômeno lunar. Nessas ocasiões, ele supõe que vê no espaço um círculo redondo,
branco e luminoso; o círculo está nos próprios olhos do homem.
— Pode ser.
— Nem é outra coisa.
— Donde se conclui que
todos somos lunáticos, aventurei eu galhofeiramente.
— Talvez, redagüiu,
ele, rindo muito.
Depois de rir, caiu na
rede; as pernas, que andavam à larga nas calças, aliás estreitas, cruzavam-se à
maneira oriental, e ele ficou sentado defronte de mim.
— Lunáticos! repetiu
ele.
— Dada a sua teoria,
expliquei eu.
— Teoria de lunático?
— Perdão.
Já me não ouvia; com
os dedos no ar fazia figuras extravagantes, retas, curvas, ângulos e
triângulos, rindo à toa, com o riso pálido e sem expressão dos mentecaptos. Não
havia dúvida; era uma alma sem consciência. Arrependi-me de alguma coisa que
disse menos pensada, e procurei ao mesmo tempo um meio de sair dali sem o
irritar. Não me foi difícil; três vezes me despedi, sem que ele me respondesse;
saí sem objeção.
Chegando ao meu
aposento, senti alguma coisa semelhante ao prazer de um homem que foge de um
perigo ou a um incidente desagradável. Efetivamente a conversa de um homem sem
juízo não era segura. Eu cuidava ter diante de mim um espírito original;
saía-me um louco; o interesse diminuía ou mudava de natureza. Determinei acabar
ali as minhas relações com Damasceno.
Durante quinze dias
encontrei-o duas vezes, na escada; cumprimentou-me e falou-me como se tivera
intactas todas as molas do cérebro. Queixou-se-me apenas de alguma dor de
cabeça e palpitações do coração.
— Temo que isto vá a
acabar, disse ele a segunda vez.
— Não diga isso!
— Verá; estou à beira
da eternidade; vou dar o salto mortal.
Não alimentei a
conversa e saí. Nessa noite contou-me o pajem que Damasceno Rodrigues me
procurara com muitas instâncias dizendo que desejava confiar-me um segredo. Era
provavelmente alguma nova fantasia semelhante à de Jonas e à da lua, e eu não
queria animar os desvarios de um pobre velho. Não lhe mandei dizer que estava
em casa nem o procurei. Alta noite, e estando a ler, ouvi um gemido no andar de
cima. Subi devagarinho, colei o ouvido à porta da sala de Damasceno, mas nada
mais ouvi.
Soube no dia seguinte
que Damasceno adoecera. Fui vê-lo pela volta do meio-dia. Como ele nunca
fechava a porta, não foi preciso incomodá-lo, para lá entrar. Achei-o deitado
na cama, com os olhos cerrados e os braços estendidos ao longo do corpo e por
fora da coberta. Abriu os olhos, e sorriu ao ver-me.
— Que tem? perguntei.
— Uma opressão no
peito.
— Tomou alguma coisa?
— Que me fizesse mal?
— Não; algum remédio.
— Não tomei nada.
— Bem; é preciso ver o
que isso é; vou mandar vir um médico.
Damasceno tinha os
olhos cravados na parede; não me respondeu. Ia sair, para dar ordens ao meu
criado, quando vi o enfermo sentar-se na cama, e olhando para a parede que lhe ficava
ao lado dos pés, clamar aflito:
— Não! ainda não!
Vai-te! Depois, daqui a um ano!... a dois... a três... Vai-te, Lucinda!
Deixa-me!
Corri a Damasceno,
falei-lhe, apalpei-lhe a testa, que estava quente, e obriguei-o a deitar-se.
Uma vez deitado, ficou arquejante, a olhar para a sala, sem querer dirigir os
olhos para os pés da cama.
— O que é que sente?
perguntei.
Não disse nada; talvez
me não ouvisse. Saí para mandar chamar um médico, e voltei ao quarto do
enfermo. Estava dormindo. O médico veio, examinou-o, interrogou-o, receitou
enfim alguma coisa, que imediatamente mandei preparar na mais próxima botica.
Mandei a uma casa da vizinhança arranjar caldos e galinha; finalmente dispus-me
a não sair de casa nesse dia.
Não contava com o
amor; duas linhas escritas em uma folha de papel bordado, como se usava no meu
tempo, vieram mudar a resolução em que eu assentara. Saí, depois de fazer
muitas recomendações ao criado e prometendo voltar cedo. Às oito horas da noite
achava-me em casa; fui ter logo com o doente. Achei-o sossegado.
— Entre, entre, meu
amigo, disse ele; deixe-me chamar-lhe assim, porque não tenho ninguém mais a
quem dê esse doce nome.
— Está melhor?
— Estou; mas são
melhoras passageiras.
— Não diga isso.
— São. Isso há de acabar
cedo. Sabe o que é a morte?
— Imagino.
— Não sabe. A morte é
um verme, de duas espécies, conforme se introduz no corpo ou na alma. Mata em
ambos os casos. Em mim não penetrou no corpo; o corpo geme porque a doença
reflete nele; mas o verme está na alma. Nela é que eu o sinto a roer todos os
dias.
— Pois matemos o
verme, disse eu, apresentando-lhe uma colher do remédio.
Damasceno olhou para o
remédio e para mim, e sorriu, com uma expressão de tranqüilo ceticismo.
— Pobre moço! disse ele,
depois de alguns instantes de silêncio.
— Vamos!
— Logo mais, amanhã,
ou depois que eu morrer. Talvez ainda possa fazer algum benefício ao meu
cadáver. A alma não bebe água.
Insisti, mas foi
baldado. Damasceno resistiu intrepidamente. Quando as minhas instâncias lhe
pareceram excessivas começou a irritar-se, e eu, receoso de algum novo delírio,
proveniente da exacerbação, cedi; fui ter com o criado que me referiu haver
Damasceno tomado apenas uma colher do remédio e um caldo. Voltei ao quarto, achei-o
tranqüilo.
A luz do quarto era
pouca, e esta circunstância, ligada ao espetáculo da doença e às feições do
pobre velho alienado, não menos que às recordações que já me prendiam a ele,
tornara a situação por extremo penosa. Sentei-me ao pé da cama e tomei-lhe o
pulso; batia apressado; a testa estava quente. Ele deixou que eu fizesse todos
esses exames sem dizer nada. Tinha os olhos no teto e parecia alheio de todo à
minha pessoa e à situação. Pouco depois chegou o médico, soube da resistência
do enfermo em continuar a tomar o remédio, examinou-o, fez um gesto de
desânimo, e ao sair disse-me que o homem estava perdido.
A perspectiva não era
para mim agradável. Não podia razoavelmente desampará-lo e tinha talvez de
assistir à sua morte naquela noite. Chamei o criado e escrevi um bilhete a dois
colegas de S. Paulo, residentes na Corte, pedindo-lhes que viessem passar a
noite comigo. O criado saiu e eu sentei-me outra vez ao pé da cama.
No fim de alguns
minutos, vi que Damasceno se agitava. Perguntei-lhe o que tinha.
— Nada, respondeu ele,
mudo de posição. Que horas são?
— Nove e um quarto.
— E o senhor pretende
passar a noite comigo?
— Naturalmente.
O rosto do enfermo
iluminou-se.
— Boa alma! exclamou
ele.
Depois procurou a
minha mão e teve-a presa entre as suas algum tempo, olhando para mim com uma
expressão de agradecimento, que lhe parecia tornar bela a fisionomia seca e
dura.
— Que lhe fiz eu para
merecer tanta dedicação? perguntou ele ao cabo de alguns minutos de silêncio.
— Não falemos disso.
Damasceno calou-se.
— Que idade tem?
— Vinte e dois anos.
— Feliz! feliz!
Calou-se outra vez e
pareceu concentrar-se de novo. Pensei que iria dormir, mas ele voltou-se para
mim dizendo:
— Quero pagar-lhe os
seus benefícios.
— Pagará depois.
— Não; há de ser já.
Ergueu o corpo,
apoiando o cotovelo na cama, pegou-me na mão e cravou em mim os olhos, acesos
de uma luz repentina e única.
— Mancebo, disse ele,
com a voz cava; não olhe nunca para a mulher do seu próximo.
— Sossegue, disse eu.
— Sobretudo não a
obrigue a que ela olhe para o senhor. Comprará por esse preço a paz de sua vida
toda.
A gravidade com que
ele proferiu estas palavras excluía toda a idéia de loucura. A própria
fisionomia parecia revelar o regresso da consciência. Olhei para ele algum
tempo sem responder, nem ousar pedir-lhe explicação. Damasceno fitou o ar com
expressão melancólica, abanou a cabeça três vezes e suspirou. Depois a cabeça
caiu sobre o ombro, e ele ficou algum tempo quieto. Ouvindo o sino das dez
horas, abriu os olhos e voltou-se para mim.
— Por quê se não vai
deitar?
— Não tenho sono.
— Perder uma noite por
causa de um desconhecido!
— Não se preocupe
comigo; descanse, que é melhor.
Damasceno meteu a mão
debaixo do travesseiro, como procurando alguma coisa. Era uma chave. Deu-ma.
— Abra-me a gavetinha
da cômoda, a do lado da rua.
— E depois?
— Tire de lá uma
caixinha.
A caixinha era de
couro e teria um palmo de comprimento. Quando lha levei, ele pô-la sobre a cama
e olhou mudo para ela. Depois, tocou em uma pequena mola; a caixa abriu-se, e
ele tirou de dentro um pequeno maço de papéis.
— Se eu morrer, disse
ele, queime isto.
— Feche tudo, é
melhor.
— Não é preciso. O que
aí está é um segredo, mas eu não quero morrer sem lho revelar. Não lhe disse há
pouco que não consentisse nunca em olhar ou ser olhado pela mulher de seu
próximo? Pois bem; saberá o resto.
A curiosidade
pendurou-se-me dos olhos e, apesar da pouca luz da alcova, é possível que ele
reparasse nisto, porque vi-o sorrir com uma expressão maliciosa e discreta.
— São papéis de
família, continuou Damasceno; coisas que só a mim interessam. Há aqui, porém,
uma coisa que o senhor pode ver desde já.
Dizendo isto, destacou
do maço de papéis uma miniatura e deu-ma pedindo que a visse. Aproximei-me da
luz e vi uma formosa cabeça de mulher, e os mais expressivos olhos que jamais
contemplei na minha vida. Ao restituir a miniatura reparei que ele a desviou
apressadamente dos olhos metendo-a logo, com a mão trêmula, entre os papéis.
— Viu-a?
— Vi.
— Não me diga nada do
que lhe parece. Imagino qual será a sua impressão. Calcule qual seria a minha
há quinze anos, diante do original. Ela tinha vinte anos; e eu vinte e cinco...
Damasceno
interrompeu-se; arrependia-se talvez; e eu não ousava, em tal situação,
mostrar-me indiscreto e curioso. Ele entretanto atava o maço de papéis e a
miniatura com um cadarço velho, e entregou-me tudo.
— Guarde. Jura que
queimará isso?
— Juro.
Guardei no bolso o
maço enquanto ele, reclinando o corpo, ficou tranqüilo. Durante cinco minutos
nada disse; começou a murmurar palavras sem sentido, com esgares próprios de
louco. Esta circunstância chamou-me à realidade. Não seriam os papéis e o
retrato coisas sem valor, a que ele em seu desvario atribuía tamanha
importância? Damasceno falou de novo.
— Guardou?
— Guardei.
— Deixe ver.
— Está aqui, disse-lhe
eu, mostrando o embrulho.
— Está bem.
E depois de uma pausa:
— Eu era moço, ela
moça; ambos inocentes e puros. Sabe o que nos matou? Um olhar.
— Um olhar?
— Era no interior da
Bahia. Lucinda casara-se na capital com o Dr. Adr... Não importa o nome; era
médico como eu, mas rico e dado a estudos de botânica e mineralogia. Andava por
Jeremoabo naquele tempo. Eu encontrei-o num engenho e travei relações com ele.
A mulher era linda como o senhor viu aí. Ele era sábio, taciturno e ciumento.
Havia nela tanta modéstia e recato — talvez medo — que o ciúme dele podia
dormir com as portas abertas. Mas não era assim; o marido era cauteloso e
suspeitoso; ameaçava-a e fazia-a padecer. Eu percebi isso, e a compaixão
apoderou-se de mim. A compaixão é um sentimento pérfido; abstenha-se dele ou
combata-o. Quem sabe se a que sente agora por mim não lhe dará mau resultado?
Estremeci ouvindo esta
última palavra. Ele parou um instante e continuou:
— Lucinda não me
olhava nunca. Era medo, era talvez intimação do marido. Se me falava alguma vez
era secamente e por monossílabos. Meu coração deixou-se ir da compaixão ao amor
pelo mais natural dos declives, amor silencioso, cauto, sem esperança nem
repercussão. Um dia, em que a vi mais triste que de costume, atrevi-me a
perguntar-lhe se padecia. Não sei que tom havia em minha voz, o certo é que
Lucinda estremeceu, e levantou os olhos para mim. Cruzaram-se com os meus, mas
disseram nesse único minuto — que digo? nesse único instante, toda a devastação
de nossas almas; corando, ela abaixou os seus, gesto de modéstia, que era a
confirmação de seu crime; eu deixei-me estar a contemplá-la silenciosamente. No
meio dessa sonolência moral em que nos achávamos, uma voz atroou e nos chamou à
realidade da vida. Ao mesmo tempo achou-se defronte de nós a figura do marido.
Nunca vi mais terrível expressão em rosto humano! A cólera fazia dele uma
Medusa. Lucinda caiu prostrada e sem sentidos. Eu, confuso, não me atrevia a
explicar nem a pedir explicações. Ele olhou para mim e para ela. Sucedera à
primeira manifestação silenciosa da cólera uma coisa mais apagada e mais
terrível, uma resolução fria e quieta. Com um gesto despediu-me; quis falar,
ele impôs silêncio com os olhos. Quase a sair voltei e, apesar da oposição,
expus-lhe toda a singularidade de seu procedimento. Ouviu-me calado. Vendo que
nada alcançava e não querendo que sobre a infeliz pairasse a menor suspeita,
nem que ela padecesse sem outro motivo, mais grave, expus-lhe francamente os
meus sentimentos em relação a ele e a ela, a afeição que Lucinda me inspirara,
protestando com todas as forças pela inteira dignidade da infeliz. Riu-se, e
não me disse nada. Despedi-me e saí...
Estas recordações
pareciam abater o enfermo. A voz, ao chegar àquela palavra, era fraca e rouca;
ele fez uma longa pausa, cobrindo os olhos com as mãos ocas e transparentes.
Alguns minutos depois continuou:
— Passaram-se algumas
semanas. Um dia, levado por necessidade de ofício, fui a Jeremoabo, pensando em
Lucinda e um pouco receoso de algum sucesso desagradável. Lucinda havia
morrido; e a pessoa que deu esta notícia benzeu-se supersticiosamente e não
revelou mais nada, apesar das minhas instâncias. Que teria havido? A idéia de
que o marido a houvesse assassinado, apoderou-se de meu espírito; mas eu não
ousava formular a pergunta. Indagando mais, ouvi de uns que ela cometera
suicídio, de outros que desaparecera; enfim alguns criam que estava apenas
doente às portas da morte. Esta diversidade de notícias era claro indício de
que alguma coisa grave se passava ou estava passando. Fui ter à propriedade do
marido, resoluto a saber tudo e a salvar a vida da inocente, se fosse
possível...
Damasceno
interrompeu-se de novo. Estava cansado e opresso. Pedi-lhe que suspendesse por
algum tempo a narração e guardasse o fim para o dia seguinte, apesar da
curiosidade que me picava interiormente. Ao mesmo tempo admirava a perfeita
lucidez com que ele me referia aquelas coisas, a comoção da palavra, que nada
tinha do vago e desalinhado da palavra dos loucos. Era aquele mesmo o homem que
me consultara acerca de Jonas e me expusera uma teoria nova acerca da lua?
Enquanto em meu espírito resolvia esta dúvida, Damasceno agitava-se no leito,
como buscando melhor cômodo. A vela estava a extinguir-se, acendi outra e fui
até à janela ansioso pelo criado e os dois amigos a quem escrevera. A rua
estava deserta; apenas ao longe se ouvia o passo de um ou outro transeunte.
Voltei ao quarto. Damasceno estava então sentado na cama, um pouco reclinado
sobre os travesseiros.
— Não tenha medo,
disse ele, venha ouvir o resto, que é pouco, mas instrutivo. Fui ter com o
médico. Logo que soube que eu o procurara veio receber-me contente. Disse-lhe
francamente o que ouvira dizer a respeito da mulher, as opiniões e versões
diferentes, a necessidade que havia de instruir o povo da verdade e retirar de
sobre ele alguma suspeita terrível. Ouviu-me calado. Logo que acabei, disse-me
que eu fizera bem em ir vê-lo; que Lucinda estava viva, mas podia morrer no dia
seguinte; que, depois de cogitar na punição que daria ao olhar da moça
resolvera castigar-lhe simplesmente os olhos... Não entendi nada; tinha as
pernas trêmulas e o coração batia-me apressado. Não o acompanharia decerto, se
ele, apertando-me o pulso com a mão de ferro, me não arrastasse até uma sala
interior... Ali chegando... vi... oh! é horrível! vi, sobre uma cama, o corpo
imóvel de Lucinda, que gemia de modo a cortar o coração. “Vê, disse ele, só lhe
castiguei os olhos”. O espetáculo que se me revelou então, nunca, oh! nunca
mais o esquecerei! Os olhos da pobre moça tinham desaparecido; ele os vazara,
na véspera, com um ferro em brasa... Recuei espavorido. O médico apertou-me os
pulsos clamando com toda a raiva concentrada em seu coração: “Os olhos
delinqüiram, os olhos pagaram!”
A cabeça do enfermo
rolou sobre os travesseiros, enquanto eu, aterrado do que ouvia e da expressão
de sincero horror e aparente veracidade com que ele falava, olhei em volta de
mim como procurando fugir. Damasceno ficou longo tempo arquejante.
De repente, dando um
estremeção ergueu a cabeça e olhou para a parede que ficava do lado inferior da
cama:
— Vai-te! exclamou ele
aflito. Vai-te! ainda não!... Olhe!... Olhe! lá está ela! lá está!... O dedo
magro e trêmulo apontava alguma coisa no ar, enquanto os olhos, naturalmente
fixos, resumiam todo o terror que é possível conter a alma humana.
Insensivelmente olhei para o lugar que ele indicava... Olhei; e podem crer que
ainda hoje não esqueci o que ali se passou. De pé, junto à parede, vi uma
mulher lívida, a mesma do retrato, com os cabelos soltos, e os olhos... Os
olhos, esses eram duas cavidades vazias e ensangüentadas.
Naquela meia luz da
alcova, e no alto de uma casa sem gente, a semelhante hora, entre um louco e
uma estranha aparição, confesso que senti esvairem-se-me as forças e quase a
razão. Batia-me o queixo, as pernas tremiam-me, tanto eu ficara gelado e
atônito. Não sei o que se passou mais; não posso dizer sequer que tempo durou
aquilo, porque os olhos se me apagaram também, e perdi de todo os sentidos.
Quando dei acordo de
mim, estava no meu quarto, deitado, tendo a meu lado os dois amigos que mandara
chamar. Ambos procuraram desviar-me do espírito a lembrança do que se passara
no quarto de Damasceno; precaução ociosa, porque de nada me lembrava então e o
abalo fora tamanho que o passado como que desaparecera. Passei uma noite cruel,
entre a agitação e o abatimento. Sobre a madrugada dormi.
Acordei com sol alto.
Pude então recordar a cena da véspera, e só a recordação me fazia tiritar e
gelar a alma. Quis ir ver o doente porque, apesar dos sucessos anteriores,
interessava-me o pobre velho condenado a uma triste visão perpétua.
— É tarde!
disseram-me.
— Por quê?
— O doente morreu.
Senti que uma gota me
brotava dos olhos, foi a única lágrima que ele obteve dos homens.
Meus colegas referiram-me
que a morte sucedera ao romper da manhã, estando presente um deles e o criado.
Damasceno morreu a falar das mais desencontradas coisas: de guerras, de
meteoros e de S. Tomás de Aquino. Seu último gesto foi para abraçar o sol, que
dizia estar diante dele. Morreu enfim ou, antes, restituiu-se à eternidade,
segundo a expressão do meu colega, a cujos olhos o doente parecera um esqueleto
que visitara por algum tempo a terra.
Não pude assistir ao
enterro; estava abatido e doente; mas um dos meus amigos foi até o cemitério.
Com um deles fui dormir aquela e as noites seguintes, não podendo passá-las
debaixo do mesmo teto em que se dera a terrível aparição. A justiça arrecadou o
que pertencia a Damasceno Rodrigues; ele vivia do aluguel de duas casinhas e de
algumas apólices, que se lhe encontraram. Não tinha herdeiros.
Só muitos dias depois
atrevi-me a ver de novo o retrato da mulher que ele me dera. Ainda assim não
foi sem terror, e arrependi-me de o ter feito, porque toda a cena se me
reproduziu logo ante os olhos. Era miraculosamente bela a mártir de Jeremoabo;
eu compreendia, não só a loucura de Damasceno, mas também a ferocidade do
esposo.
O desembargador fez
pausa, no meio do geral silêncio de constrangimento que sua narração produzira.
Vasconcelos foi o primeiro que falou:
— Não podemos duvidar
que o senhor visse a figura dessa mulher, disse ele; mas como explicar o
fenômeno?
— A dificuldade é
maior do que pensa, acudiu o desembargador. O episódio teve um epílogo.
— Ah!
— Quando referi a
aparição a algumas pessoas, ninguém me deu crédito; e os mais polidos atribuíam
o caso a um pesadelo. Evitei expor-me à incredulidade e ao ridículo. Mais
tarde, já senhor de mim, determinei contar a catástrofe de Damasceno em um
jornal que escrevíamos na Academia. Tratando de colher alguma coisa mais acerca
do infeliz, vim a saber, com grande surpresa minha, que ele nunca estivera na
Bahia, nem saíra do Sul. Já então não era só o interesse literário que me
inspirava; era a liquidação de um ponto obscuro e a explicação de um fenômeno.
Casara aos vinte e dois anos em Santa Catarina, de onde só saiu aos trinta e três, não podendo, portanto, encontrar-se com o original do retrato, aos vinte
e cinco, solteiro, em Jeremoabo; finalmente, a miniatura que me confiara era
simplesmente o retrato de uma sobrinha sua, morta solteira. Não havia dúvida: o
episódio que ele me referira era uma ilusão como a da lua, uma pura ilusão dos
sentidos, uma simples invenção de alienado.
— Mas, sendo assim...
— Sendo assim, como vi
eu a mulher sem olhos? Esta foi a pergunta que fiz a mim mesmo. Que a vi, é
certo, tão claramente como os estou vendo agora. Os mestres da ciência, os
observadores da natureza humana lhe explicarão isso. Como é que Pascal via um
abismo ao pé de si? Como é que Bruto viu um dia a sombra de seu mau gênio?
— O seu caso é talvez
mais simples que esses todos; o desvario do doente foi contagioso, e fez com
que o senhor visse o que ele supunha ver.
— Pois é pena!
exclamou o desembargador; a história de Lucinda era melhor que fosse
verdadeira. Que outro rival de Otelo há aí como esse marido que queimou com um
ferro em brasa os mais belos olhos do mundo, em castigo de haverem fitado
outros olhos estranhos? Crê agora em fantasmas, D. Maria do Céu?
Maria do Céu tinha
seus olhos baixos. Quando o desembargador lhe dirigiu a palavra, estremeceu,
ergueu-se. O bacharel fez o mesmo; mas foi dali a uma janela — talvez tomar ar
— talvez refletir a tempo no risco de vir a interpretar algum dia um hebraísmo
das Escrituras.