Valério
Texto-Fonte:
http://www2.uol.com.br/machadodeassis
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, dezembro, 1874.
Valério era fluminense; veio à luz com a revolução de 1831. O pai estava no campo, enquanto ele nascia humildemente, entre as lágrimas de sua mãe e os cuidados de uma velha comadre. Quando o pai voltou à casa, encontrou esse aumento na família. Beijou o filho, consolou a mulher, comeu alguma coisa, e foi passar a noite num dos clubes do tempo.
A paternidade é anterior à sociedade; mas os amores novos fazem esquecer os velhos, e a paixão política domina, em certos casos, os primeiros instintos da natureza.
Nascido entre lágrimas, foi Valério criado entre penas. O pai, que era um pobre militar, não tinha recursos de sobra para deixar à família, e morreu pouco depois da revolução. A mãe educou como pôde o pequeno até à idade de sete anos; a pobre senhora morreu sem poder vê-lo num colégio. Valério passou então à casa do padrinho, que era um general conhecido naquele tempo por suas façanhas e mentiras, mas no fim de contas boa alma e amigo de servir. O general mandou ensinar ao afilhado os primeiros rudimentos da língua e um pouco de latim. Vendo os progressos do pequeno, determinou mandá-lo estudar direito, e nesse propósito estava quando faleceu sem testamento. Os poucos bens que tinha caíram nas mãos dos parentes, e Valério ficou senhor das calçadas da rua, na idade de catorze anos.
Como não é nossa intenção contar dia por dia a vida do rapaz, corramos um véu sobre os acontecimentos da sua adolescência até encontrá-lo em 1861, com trinta anos de idade, sem mais fortuna do que quando nascera, nem recurso certo para ocorrer às necessidades da vida. Tentara estudar direito, mas não conseguira alcançar os meios precisos para um curso regular. Não tinha ofício nenhum, não só porque não o arrastava para aí a vocação, como porque, sentindo-se apto para uma carreira literária, temia perder a sua utilidade no mundo, adotando um meio de vida em que nada podia fazer.
Desistiu do intento de estudar direito; fechou os livros numa caixa, e contentando-se com o pouco que sabia de latim, geografia e história, entregou-se todo aos dois empregos de que tirava escassos recursos: escrevente de cartório e revisor de provas de tipografia.
Não consta em memória de homem que estes dois empregos tenham dado grandes rendas a quem os exerce. Valério vivia pobremente; recebia um mesquinho ordenado da tipografia e cobrava pela rasa o trabalho do cartório. De quando em quando algum translado de inventário lá lhe dava com que comprar um paletó. Mas, como nem sempre havia translado, nem sempre havia paletó novo. Os cotovelos, amigos da liberdade, operavam-lhe às vezes soluções de continuidade nas mangas. Nem era raro ver um botão solitário na cintura, tendo o outro caído de velhice.
Uma das coisas que Valério estudara com proveito era a gramática portuguesa. Por isso, sabendo que vagara uma cadeira de gramática num colégio público, Valério propôs-se à cadeira, e foi pedi-la ao funcionário competente. A cadeira foi dada a outro peticionário que escrevera nestes termos ao diretor: “Não consta-me que haja candidato sério ao lugar que vagou nessa escola. Desejava consultar V.Exª. a respeito”.
Valério contentou-se com a tipografia e o cartório. Dividia o tempo entre esses dois empregos; o pouco que lhe restava mal chegava para dormir. Ocupava um aposento numa casa da Rua das Flores e facilmente se imaginará que o aposento não primava pelo luxo. O mesmo espaço servia de sala e alcova; a mobília era escassa e pobre.
Tal era a vida de Valério aos trinta anos; abundância de apetite e escassez de jantares, isso e a segunda classe de Chamfort; muito trabalho e pouquíssimos recursos. Nulo passado, escasso presente, tristíssimo porvir. Quando Valério meditava sobre as condições da sua existência, a sua mocidade sem risos, o seu futuro sem esperanças, lançava um olhar melancólico para o suicídio, como a solução razoável do problema da vida, e perguntava entre si se a moral que desarma o braço do homem não era simplesmente uma moral de convenção. Imediatamente, porém, volvia a sentimentos melhores; encarava severamente a responsabilidade que lhe corria de carregar a vida dignamente, sem violência nem rebeldia; adiava o suicídio para o próximo desânimo.
Contribuíam para esta filosofia severa algumas horas de ambição e devaneio, em que Valério esquecia provas e translados, e lançava o espírito por esses espaços fora em busca de felicidades sonhadas e imaginadas grandezas. Não tinha objeto sua ambiciosa imaginação: ora vivia uma vida de amores, ora ocupava um trono de glória; agora imaginava-se Petrarca, mais tarde acreditava-se Pitt; construía castelos no ar, embriagava-se com perfumes do Oriente, dominava as turbas pasmadas, vivia um romance e repousava na história.
Quando descia dessas alturas vertiginosas, Valério tinha ao menos esquecido a miséria atual, porque sonhar é esquecer, e esquecer é muita vez toda a felicidade da vida.
Costuma a fortuna complicar estas misérias com amores impossíveis; desta vez foi propícia, arredando do rapaz qualquer dessas aventuras que pudessem agravar-lhe o mal. Além disso, Valério era um tanto artista e poeta na maneira de apreciar as mulheres; amaria Safo, porque era musa — desdenharia a princesa de Talleyrand, apesar de formosa, porque era parva. Queria as mulheres inteligentes e instruídas — não as mulheres sabichonas, que é a pior casta de mulheres deste mundo, e Valério odiava o pedantismo, qualquer que fosse o seu sexo.
Odiar o pedantismo é entrar em luta com uma boa parte da gente que neste mundo dá cartas. Valério conheceu praticamente esse mal uma vez que sorriu à socapa, ouvindo no Carceller, onde almoçava, um doutor entre doutores. O orador de café percebeu o sorriso do estranho, levantou-se e disse-lhe dois impropérios literários, que Valério suportou com uma paciência mais estóica que evangélica, porque não era humilde, senão filósofo.
O incidente não alterou as opiniões do escrevente de cartório; pelo contrário, confirmou-lhas.
Não encontrara até então nenhuma mulher nas condições em que ele a desejava, e se encontrasse seria o remate do seu infortúnio. Ainda quando viesse a ser amado por ela, que futuro podia oferecer-lhe um pobre rapaz sem eira nem beira, sem proteção nem amizade neste mundo?
Pensava em tudo isto Valério, e, se tinha em si mundos de ternura, recalcava-os no mais íntimo do coração. Como não freqüentava nenhuma casa, não tinha ocasião de ser tentado pelo amor.
Aconteceu uma vez que o escrivão do cartório onde ele trabalhava, reunindo em casa algumas pessoas para jantar e dançar, convidou os seus escreventes, entre os quais o nosso Valério, que recusou o convite. Ofendido no seu melindre de anfitrião, o escrivão franziu a testa e murmurou:
— Está bem.
Compreendeu o pobre escrevente a causa daquele movimento, e não convindo zangar-se com o homem que lhe dava meios de vida, confessou ingenuamente que a causa da recusa era simplesmente uma questão de sapateiro. O escrivão desrugou a testa, meteu a mão no bolso, tirou dez mil-réis e entregou-os ao escrevente, dizendo-lhe:
— Podia dizê-lo logo; sabe que não sou unhas de fome, e além disso temos contas entre nós. Descontaremos isto no traslado de falência que lá tem consigo.
Saiu Valério com os dez mil-réis no bolso e dirigiu-se a um sapateiro para munir-se de um par de botas que substituísse os sapatos velhos que fingiam calçar-lhe os pés. Ia pensando no aborrecimento que lhe causaria passar a tarde e a noite em casa do escrivão, sem conhecer ninguém, quando foi detido por um indivíduo que lhe disse:
— Ia agora mesmo procurá-lo. Quando me dá aquela continha?
A continha de que falava o sujeito era o resto de um paletó que Valério comprara quinze dias antes: cinco mil-réis.
Valério balbuciou algumas palavras de desculpa, e o indivíduo acostumado a ouvi-las de muita gente não se abalou com elas, e insistiu na pergunta. No fim de dez minutos, o devedor não tinha conseguido abalar o credor, puxou do bolso a nota de dez mil-réis e com ela pagou os cinco que devia.
Estava, pois, reduzido a cinco mil-réis. Não era difícil comprar com esse dinheiro um par de sapatos, nem os seus eram de maior preço. Dirigiu-se a um sapateiro de décima classe, e aí mercou um par de sapatos de bezerra, que o sapateiro afirmava serem novos, mas que Valério supôs terem já alguma experiência do mundo e das calçadas. Com um bilhete de gôndola, perdido no bolso do colete, pagou Valério a um barbeiro que lhe limpou a cara; depois foi vestir-se como pôde, e às quatro horas estava em casa do escrivão.
Sabem todos com que cara aparece um homem quando vai pela primeira vez dans le monde. O acanhamento é visível; não dá um passo que não olhe para todos; esconde-se voluntariamente e sempre que pode. Valério estava nessa situação, acrescendo que o seu vestuário aumentava o contraste da sua pessoa no meio da sociedade em que se achava. Não havia luxo nem elegância nas pessoas convidadas pelo escrivão; a reunião era familiar, e o escrivão não estava em grandes relações com Botafogo. Mas, apesar de tudo, havia entre a sociedade e Valério um abismo. O escrivão recebeu o rapaz com certa afabilidade de superior, que mostrava da parte do homem um vício de educação ou de caráter — porquanto o escrevente do cartório era um convidado da casa, e, como tal, estava nivelado com os outros. Nem o escrivão notava essa diferença nem Valério deu por ela; o cumprimento do escrivão causou grande prazer ao rapaz, que já estava embaraçadíssimo quando se viu alvo dos olhares das moças e dos rapazes.
O jantar foi animado, e Valério achava-se satisfeito vendo a alegria dos outros. Dentro de uma hora cederam os estômagos a palavras às línguas, e começou uma série de brindes ao dono da casa que foi designado por várias metáforas descabeladas, entre outras a de um funcionário municipal que lhe chamou camarista de Têmis. O escrivão sorriu com um ar de quem ignorava o que era Têmis; mas a palavra camarista soou-lhe bem ao ouvido. O orador de sobremesa é um tipo universal; entre nós tem já alcançado uma posição sólida e brilhante. Valério, que não conhecia o tipo, admirou muito a loqüela dos oradores e a compridez dos speechs, e mais ainda os aplausos e risadas dos circunstantes, conforme os discursos fossem patéticos ou gaiatos. Todos tiveram parte nas saúdes; e o último brinde foi levantado pelo escrivão, que falou nestes termos:
— Meus senhores! Se há na vida de um homem instantes de felicidade é certamente este em que os amigos se reúnem à roda de nós, para cumprimentar-nos e partilhar conosco as afeições sinceras e profundas. (Muito bem!) Folgo de ver-vos esquecer outros cuidados para entregar-vos todos a festejar o meu dia, que, como é natural e usual na sociedade, é o primeiro dia da existência, desta existência, senhores, que, apesar de amaldiçoada, é sempre cara ao nosso coração, cara, repito, principalmente quando os amigos nos servem de lenitivo. Eu bebo aos meus amigos.
Cada um bebeu à sua saúde e preludiou-se a debandada. Seguiu-se mais tarde um pequeno concerto em que um flautista arrebatou o auditório tocando umas variações sobre o já secante Carnaval de Veneza; e às nove horas começou a primeira quadrilha.
Valério foi simples espectador do baile; não sabia dançar, nem que soubesse não dançaria logo da primeira vez que se achava em sociedade. Encostou-se a uma porta que dava para a sala e contemplou os movimentos de toda aquela gente alegre. A única pessoa, que, apesar de tudo, estava um tanto inquieta, era o dono da casa. Esperava um convidado que não viera. Um convidado que era a verdadeira cúpula do edifício festival, o coronel Borges, militar reformado, ex-deputado, ex-quase-ministro, figura que devia impor à reunião e levantá-lo muito alto no ânimo dos convidados.
O tempo corria com essa rapidez máxima que costuma ter em certas ocasiões, e o escrivão, semelhante à célebre esposa do conto, perguntava à irmã Ana, que era neste caso um moleque, se não via rien venir là-bas.
Nesta ânsia foram ouvidas as dez horas.
Às dez e meia apareceu o coronel Borges acompanhado da família, que se compunha da mulher, senhora de quarenta e cinco outonos, e de uma filha, menina de dezoito primaveras. O coronel pertencia a essa classe indefinível de homens que estão entre a primavera e o outono, nem velhos, nem moços, mistura de Saturno e Antínous.
O escrivão recebeu o coronel com vivas demonstrações de amizade e respeito, às quais o coronel respondeu com esse ar solene e grave das capacidades e das nulidades. A entrada dos novos convidados fez impressão na sala; sentia-se a superioridade social do homem que, além do mais, tinha a ventura de ser pai de uma formosíssima filha. Os rapazes sufocaram na garganta um grito de admiração; e as moças disfarçaram um gesto de despeito.
Valério deu lugar a que passasse a família; a filha do coronel passou rente com ele. Ia cheia de perfumes e bálsamos; o rapaz respirou-lhos sem querer, e pela primeira vez sentiu a vertigem que pode causar uma mulher quando sabe escolher os aromas do seu uso. Não lhe escapou a pasmosa beleza da moça. Acompanhou com os olhos aquela figura elegante como uma palmeira, flexível como um junco, temperado com a graça do gesto e a soberania do porte. A moça sentou-se entre a mãe e a senhora do escrivão. Pôde ser contemplada a gosto por todos. Era excessivamente clara, uma dessas brancuras de mármore, aspecto de estátua onde se não supõe haver coração. Tinha olhos negros, plácidos embora rutilantes, resguardados por longos cílios que ela às vezes apertava, menos por defeito de vista que por sestro. Penteava-se segundo a moda do tempo, mas sem afetação. Sorria discretamente, e quando bastava para mostrar duas ordens de dentes corretos e alvos. O seu vestuário não exagerava a moda corrente, mas era luxuoso e perfeitamente acomodado à elegância das suas formas.
Valério contemplava admirado a beleza da moça e o mesmo faziam os demais rapazes, que já se preparavam para suplicar-lhe a honra de dançar uma polca ou uma quadrilha. Parece que a rapariga estava acostumada àqueles triunfos, porque apenas se sentou, correu os olhos pela sala sorrindo com um ar de satisfação íntima; a mãe também se alegrou, e quanto ao pai, depois de conversar um pouco com alguns sujeitos a quem conhecia, foi para o interior da casa a convite do escrivão, que queria obrigá-lo a comer uns acepipes expressamente preparados para esse fim.
Não tardou que a filha do coronel dançasse, e Valério pôde admirar-lhe a graça, a reserva, a elegância dos seus movimentos. O pobre escrevente não lhe tirava os olhos de cima; duas ou três vezes encontraram-se os seus com os dela; Valério corava de vexado, como se o surpreendessem a cometer um crime. Quanto à moça, não se perturbava nem parecia zangar-se; olhava também para Valério com um olhar longo e tranqüilo. O rapaz chegou a supor que era um movimento de simpatia, e Deus sabe que sonhos não lhe passavam então pelo espírito atordoado; a verdade, porém, é que a moça gostava de ser admirada; era uma dessas belezas capazes de vender o patrimônio do amor por um prato de admirações.
À meia-noite foi servida uma ceia volante; Valério deixou discretamente o seu posto e foi para dentro descansar e comer alguma coisa. Confessou de si para si que estava com fome. Sentou-se ao pé de uma mesa pequena, recebeu de um criado uns pastelinhos, e começou a ruminar tranqüilamente. Cumpre acrescentar que ao bom do rapaz repugnou ver comer a jovem rainha da noite. Era escrúpulo de calouro. É mais poético não assistir à operação dos queixos quando se ama a uma mulher, mas — ai triste! — nem por isso fica suprimida a operação. O estômago não tem sexo; e a natureza tem exigências fatais. Aqueles lábios, que nos parecem exclusivamente feitos para risos e beijos, são a entrada indispensável de covilhetes e pastéis. É possível que na próxima edição da obra, o autor da criação corrija esse gravíssimo ponto; mas por enquanto a obra há de ser lida assim... ou morre de traça nos livreiros.
Perto do escrevente estavam algumas pessoas, ocupadas também em dar que fazer ao estômago, exceto o coronel, que, tendo já comido, conversava paternalmente com o escrivão e mais dois sujeitos.
— E quando se publica esse folheto? perguntou o escrivão.
— Creio que breve, respondeu o coronel; o autor, que, como lhe disse, é meu amigo íntimo, promete que dentro de uma semana estará à venda.
— Estou ansioso por ver isso! exclamou um velho com feições de militar; ataca o governo?
— Se eu lhe digo que é uma filípica! tornou o coronel. É um opúsculo de fazer época.
— Disso precisamos nós.
Os ímpetos de oposicionista do militar não agradavam ao escrivão, que tinha filho em não sei que secretaria de Estado. Por isso tratava de desviar a conversa do assunto do opúsculo.
— Sempre queria vê-lo dançar, coronel!
— Qual! já não é para mim.
— Como se chama o opúsculo? perguntou o militar.
— Não sei se devo confiar tanta coisa; o autor não me autorizou... mas... é verdade que daqui uma semana... chama-se o opúsculo: Abaixo as máscaras!
— Magnífico! magnífico título! exclamou o militar.
Ouvindo o título do opúsculo, Valério estremeceu, e prestou à conversa mais atenção do que até ali. O velho militar continuou a elogiar o título, e insistiu com o coronel para que dissesse onde poderia ir comprar o opúsculo quando ele aparecesse.
— Suponho que em todas as livrarias; mas, se quer eu lhe arranjarei um e mandar-lho-ei antes de publicado.
— Tanto favor! A obra é bem escrita?
— Dizem que sim; eu não entendo de estilos.
Sem medir todo o alcance da inconveniência, Valério interrompeu a conversa dizendo:
— Entendo eu um pouco; e acho que o estilo do opúsculo de que se trata é excelente.
Houve um súbito silêncio logo depois das palavras do escrevente. O escrivão fez uma careta de desgosto vendo que Valério se intrometia aonde ninguém o chamara; e o coronel, disfarçando quanto podia um sorriso delator, perguntou ao vizinho quem era aquele sujeito; o vizinho disse que o não conhecia. O coronel voltou-se para Valério.
— Conhece então a obra? perguntou-lhe.
— Conheço.
— Conhece o autor?
— Não, senhor.
— Então houve traição...
— Não, senhor; eu sou revisor de provas na tipografia onde se está imprimindo o folheto.
Novo silêncio e mais prolongado. O escrivão tinha a cara mais vermelha que um pimentão; se um olhar fulminasse, Valério já não era gente, pois o que o escrivão lhe lançou continha raios de raiva, despeito, nojo. Traduzido em vulgar, o olhar do escrivão queria dizer:
— Pois este pelintra vem ter a honra de jantar comigo, ver dançar os outros, estar aqui confundindo com pessoas de certa ordem, e se há de ouvir e calar, responde quando ninguém lhe pergunta, e por fim de contas, confessa-se revisor das provas!
Valério não viu o olhar do escrivão, nem compreendeu o silêncio de todos.
— Gosto imenso do estilo do folheto, e creio que há de fazer época.
— Eu assim penso, disse o coronel sorrindo para Valério; mas, quem assim fala e julga, não é decerto um simples revisor...
— Sou também escrevente no cartório do Sr. Z.
— Ah! Escrevente e revisor! mas não é isso bastante; vejo que tem humanidades... estudou...
— Muito pouco... e há muito tempo.
— Mas tem o gosto apurado...
— Não sei; eu digo o que me parece.
— Descontaremos a modéstia, disse o coronel; vejo que tem certos estudos... Quer um charuto?...
— Não fumo...
— É um vício; corrija-se dele. Charutos, meus senhores?... Hoje fuma-se por toda a parte... Pensa então que o folheto tem bom estilo?
— Excelente.
— É a opinião de algumas pessoas que leram o folheto; eu confesso, de estilos não sei.
— Nem eu, disse o militar.
A situação de Valério estava um pouco salva; a bondade com que o coronel tratava ao escrevente teve o dom de acalmar os furores do escrivão, que já trocava palavras com o rapaz; e quando viu levantar-se o coronel de braço com Valério, a indiferença do escrivão tornou-se em viva simpatia.
Valério pôde contemplar ainda durante meia hora a interessante filha do coronel, que durante essa noite dançara alegremente como quem não tem cuidados no futuro nem saudades do passado.
Depois de despedir-se do escrivão, o coronel apertou a mão do escrevente, dizendo-lhe:
— Não se esquece?
— Não, senhor.
— Nº 14.
Ninguém ouviu estas palavras do coronel ao rapaz; mas o escrivão adivinhou que alguma coisa íntima se passara entre o rapaz e o coronel.
— Cultive esta amizade, disse o escrivão a Valério, quando o coronel saiu; é um excelente homem e dotado de uma inteligência brilhante; freqüente esta roda, que vai bem.
O coronel Borges possuía alguns cabedais, bastante para sustentar a casa e deixar patrimônio à família. A sua principal paixão era a política; era esse verdadeiro pão cotidiano que ele pedia a Deus com heróica humildade. Se lhe tirassem a política do mundo, o mundo ficaria um ermo. A política era para ele o sol do mundo moral; quando a política desaparecesse começaria a morte. Nesse caso, dizia ele, poderei dormir. Pessoas de algum juízo afirmavam que, antes que a morte viesse, o coronel dormiria, e essa realidade era a maior dor que ele poderia ter.
Não nos enganemos, entretanto. A política do coronel não existe nos livros de Montesquieu nem Maquiavel; tinha outros códigos; a outras leis obedecia. A política do coronel começava no subdelegado e acabava no coronel. Uma remoção de comarca valia para ele um princípio. A Guarda Nacional e a polícia eram para ele toda a opinião pública. Sorria com desdém quando lhe falavam de outras coisas que não fossem estas coisas práticas. Escudado no axioma que diz que a política é uma ciência de aplicação, o coronel tinha mais respeito a um juiz municipal que a um artigo de lei, porquanto a lei era o tema e o juiz municipal a imagem da aplicação.
Na Câmara fez um papel de mudo; mas o seu ar de gravidade era respeitado como um sintoma de sabedoria. Aplicava muitas vezes esta resposta de Sólon a Pariandro: Não sabes tudo que é impossível ao tolo calar-se durante um festim? O Parlamento, no juízo dele, era o festim da opinião, e se era verdade, como ele dizia, que a opinião estava na política, podemos sem afronta da lógica compará-lo a um covilhete. Covilhete sou, responderia o homem, mas para a boca dos meus adversários, que me hão de engolir quer queiram quer não.
Não falava nem escrevia. Os amigos políticos ofereceram-lhe um lugar numa gazeta; recusou. Estranharam-lhe a recusa; por que motivo recusava ele a tribuna e a imprensa? Explicou-se, dizendo que não tinha os talentos requeridos. Ninguém aceitou a explicação; atribuíram-lhe a virtude da modéstia. O deputado sorriu. O sorriso é a elasticidade aplicada à conversação; diz tudo e nada; isto e aquilo; o mau e o bom; confessa e nega; aceita e recusa.
Deixou o Parlamento sem fazer manifestação nenhuma; mas ficou-lhe a reputação de homem de bom conselho, qualidades políticas, gravidade de pensar, e recolheu-se à tenda, como Aquiles, disposto a não sair dela sem que lhe matassem um Pátroclo. Aconteceu justamente que um parente da mulher recebeu garrote do governo, e o sangue dessa vítima, que gozava de perfeita saúde, reclamou vingança imediata. Pegou na pena e escreveu um livro de duzentas páginas em que dizia coisas do arco-da-velha ao governo e ao país. Quis conservar o mais restrito incógnito; mandou o folheto à imprensa por mão de seu sobrinho, a quem confiou a direção do preparo tipográfico; e aguardava ansioso o dia em que aparecesse a obra e fizesse pasmar o mundo literário.
— Olha lá, meu André, dizia-lhe a esposa, não te vás meter em trabalhos...
— Que trabalhos, Luísa?
— Eu sei! Descompor o governo! Não te podes arriscar a ser preso?
— Isso não me há de acontecer, por desgraça minha! Obter a palma do martírio! Não, não sou tão feliz!
Benzeu-se a esposa, que era temente a Deus e à polícia, enquanto o coronel mandava para a tipografia as provas que o sobrinho lhe trouxe.
Aguardava-se a publicação da obra, que, na opinião do autor, era uma colubrina de bronze coado, quando se deu o sarau do escrivão e encontro de Valério. O escrevente prometera lá ir à casa do coronel no dia seguinte, e assim o fez, depois dos trabalhos da imprensa, que terminaram pelas sete ou oito horas.
No cumprimento exato da promessa, influiu acaso a filha do foliculário? Indo à casa do coronel, Valério levava a esperança de avistar-se com a moça? Para ser verdadeiro, devo dizer que não. Era talvez mais poético que assim fosse; mas não era a idéia do rapaz. Valério fazia justiça à sua posição, que era nenhuma. Não nutria a esperança de merecer da moça um momento de atenção; demais a impressão da noite anterior, conquanto fosse viva, passara depressa, do mesmo modo que se esvoam os sonhos da sorte grande ao proletário que não tem com que comprar um bilhete.
Digamos a verdade toda.
Valério foi exato na execução da sua palavra pela esperança de que o coronel viesse a protegê-lo, e as palavras do escrivão influíram também para isso. Na situação em que se achava, queria mão que o levantasse, amigo que o protegesse. Não tinha mão nem amigo. O coronel pareceu-lhe homem talhado para ajudar um rapaz laborioso e pobre. Valério não quis repelir aquele auxílio da fortuna.
Recebeu-o alegremente o coronel.
— Bem-vindo seja, meu amigo, disse-lhe ele, convidando-o a entrar para a sala. Cuidei que não viesse.
— Bem sei que é um pouco tarde, respondeu o escrevente, mas só agora acabei o trabalho.
— Não é por isso... Pensei que não viesse, porque não supunha que um pedido meu pudesse trazê-lo cá tão cedo.
Valério fez um gesto; o coronel interrompeu-lho:
— Já sei o que me vai dizer, e eu, por exceção, creio no seu protesto. Não falemos nisso. Diga-me: toma chá comigo, não?
— Não posso, Sr. coronel.
— Por quê?
— Tenho um trabalho urgente.
— Ainda hoje?
— Sim, senhor.
— Trabalha muito!
— Assim é preciso.
— Pois trabalhará até mais tarde; mas por hoje é meu.
Valério não respondeu, ainda que contrariado com o obséquio. Quanto ao ex-deputado, entrou logo a falar no opúsculo que devia aparecer dentro de oito dias, e de novo perguntou se o achava bem escrito. Ouvida a confirmação de Valério, o coronel não se deteve; e confessou-lhe que era o autor. Valério já devera tê-lo percebido, mas o rapaz, apesar dos trinta anos feitos, era de uma ingenuidade pueril. Cumprimentou o coronel pela obra, e o coronel sorriu com ar de satisfação.
Entrou a conversa pela política a dentro. Valério de política apenas sabia alguma coisa que lia nos jornais do Carceller quando lá ia almoçar. Mas era fácil conversar com o coronel; fazia-se o papel de confidente. Tão reservado era o ex-deputado na rua e na Câmara, como expansivo em casa, principalmente quando o auditório não lhe parecia nímio instruído.
Veio uma mucama dizer que o chá estava pronto.
Quando Valério e o coronel entraram na sala de jantar, já lá estavam sentadas a Sra. D. Luísa e a menina Hélvia. O coronel fez uma apresentação geral do conviva, que não deixou de estremecer quando encontrou os olhos da moça. Esta fitou tranqüilamente os seus no rapaz, e pareceu conhecê-lo; fez um esforço de memória e lembrou-se de tê-lo visto na véspera na casa do escrivão.
Nenhum incidente perturbou este chá patriarcal entremeado de observações políticas do coronel e vagos suspiros da filha. A Sra. D. Luísa, sabendo, na conversa, que Valério nascera no dia da revolução de abril, contou uma anedota do tempo, e o coronel aproveitou o ensejo para dizer a sua opinião sobre a revolução. Hélvia pouco falou; comeu um biscoito, bebeu uma xícara de chá, olhou três vezes para Valério e pediu licença à mãe para levantar-se por ter dor de cabeça. Concedeu-lha a boa senhora, enquanto o coronel sorria maliciosamente à parte.
Pouco depois retirou-se Valério, mas só depois de prometer ao coronel que o iria ver no dia seguinte de manhã. Foi com efeito no dia seguinte à casa do coronel; eram oito horas da manhã.
— Sabe o que eu desejo? Conheci que o senhor é moço inteligente; queria incumbi-lo da leitura das últimas provas do meu folheto... dando-lhe autorização para emendar o que lhe parecer, porque eu escrevi aquilo à pressa, e agora tenho muitas coisas que me tomam o tempo.
— Com muito prazer, respondeu Valério, mas eu não creio que se deva emendar mais nada.
— Pode haver, pode haver, insistiu o coronel. Eu tinha encarregado desse trabalho aquele moço que lá ia, e que é meu sobrinho; mas houve um desacordo de família, e agora... Estamos entendidos?
— Estamos.
No dia em que o folheto apareceu, o coronel passou toda a manhã na Rua do Ouvidor, conversando com algumas pessoas a respeito do acontecimento do dia. O acontecimento até então estava na imaginação do autor da obra; nas vidraças do Garnier e do Laemmert alguns exemplares, ainda virgens, solicitavam os dois mil-réis dos passantes; o título era auspicioso; os exemplares começaram a correr o mundo. Mas poucos tinham tido tempo de folhear apenas algumas páginas.
Valério viu de longe o coronel, que conversava num grupo; o coronel viu-o também; o rapaz sorriu e caminhou para lá, mas o foliculário ocultou a cara e encostou a boca ao ouvido de um dos circunstantes.
Valério passou sem parar.
Quando à noite, segundo promessa anterior, o revisor se apresentou em casa do coronel, disse-lhe este:
— Olhe, hoje vi-o de longe, e fingi que o não via. Não é conveniente que pareça conhecer-me; eu estou vendido aos deuses infernais.
— Mas que me importa que saibam da honra que V. Exª. me dá? Eu não tenho nada com o governo...
O coronel abanou a cabeça.
— Quem pode afirmar isso? disse ele. Aceite o meu conselho; quando me vir, finja que me não conhece senão, pode ficar comprometido.
Valério prometeu por condescendência. No meio da conversa suspeitou que o conselho do coronel fosse uma evasiva, e que o único desejo dele fosse não manifestar em público as relações que tinha com o escrevente revisor de provas. Mas achou pueril esta razão.
O folheto fez alguma impressão; daí a seis ou sete dias apareceram dois artigos no Jornal do Comércio refutando as asserções do folheto. O autor esfregou as mãos; a mulher abanou a cabeça com tristeza. Quando Valério lá apareceu, disse-lhe o coronel:
— Viu como me esfolam hoje?
— Vi, Sr. coronel. V. Exª. responde?
— Sem dúvida; e estava justamente agora a acabar umas notas para lhe dar, porque eu ando tão ocupado... Vou dar-lhe as notas, e veja se por elas me faz uma resposta. Realmente é uma maçada... Eu tenho tanto que fazer!... Anda cá ao gabinete.
As notas dadas pelo coronel não valiam coisa nenhuma; mas tendo dito que daria resposta aos dois artigos, foi Valério para casa, trabalhar, depois de tomar chá com o foliculário.
A resposta saiu boa; fez impressão; replicou o escritor governista; treplicou o coronel por boca de Valério; e durante quinze dias teve o público fluminense o seu manjar favorito, que é uma mofina anônima.
Não tardou que Valério compreendesse a causa da amizade do coronel. Evidentemente o homem não escrevia nada, e com certeza não era o autor do folheto. O sobrinho, com quem brigara, era naturalmente o seu secretário; e foi uma ventura encontrar à mão o revisor de provas, porque, em tão melindroso mister, só um homem necessitado e discreto pode substituir um parente amigo.
Tudo isto compreendera Valério, mas para logo refletiu que isso aumentaria a probabilidade de merecer o reconhecimento do coronel, e era justamente o que ele desejava. Refletia mal o rapaz, se contava só com o reconhecimento; era preciso contar também com o medo. Mas Valério não pensou nisso.
Valério encontrara-se muitas vezes com a filha do coronel, e fora dissimulação negar que as graças da moça influíam cada vez mais no ânimo do rapaz. A moça não o amava certamente, nem talvez consentira que ele lho dissesse; mas não recuava quando o rapaz fitava nela os olhos, nem deixava de lhe falar com afabilidade até certo ponto animadora. Hélvia não desprezava nenhum feudo de nenhum regato incógnito.
Este nome de Hélvia, que algum leitor terá achado de mau gosto, fora-lhe posto depois de grave luta entre o pai e a mãe. Queria esta que a rapariga se chamasse Rita, em virtude da devoção que nutria por esse ornamento da corte celeste. O pai, cujos talentos guerreiros não cediam aos talentos políticos, achou que satisfaria a sua consciência dando à filha um nome que resumisse certo caráter belicoso — Joana — em memória da donzela de Orleans. Dizia a mãe que Joana era nome de velha, preconceito este imitado por alguns autores de comédias e romances que só dão às suas velhas uma certa ordem de nomes, como se uma velha não começasse por ser moça e até por ser criança. O pai replicou que, se Joana era nome de velha, Rita era nome de preta. Discutido este gravíssimo ponto, e não chegando os dois a um acordo, foi consultado o padrinho, que serviu de moderador entre as duas opiniões, recusando-as ambas.
— O verdadeiro nome que se lhe há de dar, há de ser Hélvia, disse ele.
— Pior! exclamou a comadre, este nem é nome de gente.
O padrinho era um velho advogado; sorriu com ar de desdém e compaixão, e replicou:
— Não é nome de gente?
Seguiu-se a esta pergunta um movimento oratório de tamanha altura e grandeza, que eu sinto não poder consignar aqui para memória eterna. A conclusão do legista foi a seguinte:
— Hélvia se há de chamar a rapariga, porque foi o nome da maior mulher que honrou a raça humana, mulher imortal que devia ter o busto em todas as cidades e em todos os parlamentos, pois foi ela a autora da maior obra que os séculos ainda conheceram, foi a mãe de Cícero.
D. Luísa não entendeu a tolice do compadre, e achou que nem Cícero nem sua honrada mãe, que Júpiter guarde, vinha nada ao caso da pequena. Todavia, calou-se. Quanto ao coronel não perdeu tão boa ocasião de mostrar a sua eloqüência doméstica, e assombrar a mulher com um elogio do orador romano.
Assentou-se que se chamaria Hélvia, e assim se batizou a menina na igreja de Santa Rita. Que dúvida teremos de aceitar o nome da rapariga, se já aceitamos os escritos do pai?
Valério convenceu-se um dia de que não era indiferente à rapariga. Foi o caso que, estando ela uma noite a tocar uma melodia assaz triste, o moço disse ao pai que achava a música lindíssima, e o pai, à mesa do chá, comunicou a opinião à rapariga, que sorriu e concordou com Valério. No dia seguinte, achando-se Valério em casa do coronel, a moça foi logo ao piano e tocou a mesma coisa, e assim o fez mais duas ou três vezes.
A única coisa que fazia espanto ao rapaz era a melancolia da moça. Hélvia falava e ria pouco, e tendo a mãe notado isso em voz alta, compreendeu Valério que a melancolia era recente e alguma coisa havia de ter.
Seria amor por ele? Valério começou a sentir essa doce ilusão, e cem outros incidentes, como o do piano, vieram dar alento ao coração ambicioso do rapaz, sem audiência do juízo que lhe poria veto às esperanças.
Valério entretanto julgava que, se a rapariga lhe aceitasse o amor, fácil seria obter o consentimento do pai. O coronel revelava a todos os instantes que prestava à opinião e ao juízo do moço uma homenagem de respeito. Sem intenção de o dominar, Valério influía no espírito do coronel, a ponto de causar ciúme à mulher, que via levantar-se em frente de si uma autoridade estranha e ilegítima.
Valério era o oráculo de Delfos do coronel, que o consultava a respeito de todas as coisas, até as mais minuciosas. Admirava-se o rapaz de não ter sido um espírito daqueles aproveitado pelos partidos que acham sempre auxiliares deste gênero, e os empregam com proveito de ambas as partes.
Naturalmente a gravidade muda do ex-deputado foi a sarça ardente que o escondeu aos olhos profanos; e a maleabilidade do homem atravessou incógnita o Parlamento.
Resolvera o coronel escrever segundo opúsculo, e Valério foi convidado a redigir as notas esparsas do autor que, a julgar pelo trabalho alegado, era o indivíduo mais laborioso das duas Américas.
— Desta vez, disse o coronel, não é admitido que me recuse pagar-lhe; já não se trata só de artigos, trata-se de um folheto que lhe há de levar tempo.
— Se é com essa condição, respondeu Valério, não lhe faço o trabalho.
— Mas...
— Tenho dito.
O coronel apertou-lhe a mão com aquela energia de um homem que, inesperadamente, faz uma economia de cem ou duzentos mil-réis.
— O senhor é um homem admirável, disse ele ao rapaz.
— Não me disse que me quer por amigo?
— Sem dúvida.
— Pois deixe-me colher o fruto da amizade, que é servir os amigos.
Começou o rapaz a redigir o novo opúsculo. Valério tinha algumas qualidades de estilo, posto não tivesse estilo feito, nem podia tê-lo, que só o trabalho e a meditação podem provar as prendas literárias. No entanto, era sóbrio, enérgico, claro e animado quando escrevia, e para um folheto político estas qualidades são preciosas. O trabalho ia adiantado, e o coronel já tinha ouvido dois capítulos que julgara excelentes.
Uma tarde, saindo da casa do coronel, aonde fora de passagem, Valério encontrou junto à porta da sala a menina Hélvia, que lhe disse:
— Venha antes de cá estar o papai.
Admirado com estas palavras, Valério não respondeu logo. Contemplava a moça e procurava certificar-se se estava acordado ou sonhando.
Ela repetiu com voz doce e melancólica:
— Vem, sim?
— Venho.
Estendeu-lhe a mão; ela lhe estendeu a sua; apertaram-se com força. Valério desceu a escada como se descesse das nuvens. Quando tornou a si, estava na esquina da rua.
Não era paixão que sentisse pela moça. Alguma simpatia, sim; esboço de amor. No entanto, ouvindo aquelas palavras, viu apresentar-se-lhe uma visão de felicidade; imaginou que a moça ardia por ele; e que há de melhor neste mundo do que ser amado? A vida é tão curta, os homens tão maus, os acontecimentos tão incertos, que uma criatura que nos ama é a imagem da misericórdia de Deus. De quantos ódios, invejas, malquerenças, calúnias não consola o amor de uma mulher? Tudo isso anteviu o espírito de Valério, que foi à tipografia mais leve que um pássaro e cheio de confiança no futuro.
No dia seguinte procurou Valério a hora em que o coronel não estivesse em casa, e, para melhor certificar-se, postou-se à esquina desde as oito horas da manhã. Ali esperou duas longas horas. Tamanha paciência só um amante a teria, a não ser um credor. Às dez horas viu sair o coronel de cabeça alta e brandindo com gesto, que pretendia ser gracioso, uma bengala mais grave que o dono. Valério investiu para a casa.
No corredor estacou.
Qualquer que fosse mais corajoso estacaria também; não se acode a tais entrevistas sem um grande abalo, e não há coragem de Aquiles que não abata as armas ao aproximar-se de uma menina que parece querer amar.
Hesitou se devia subir; a consciência disse-lhe que era talvez inconveniente. Era uma formalidade da consciência; ela bem sabia que não é forte quando está doente do coração. O coração disse ao rapaz que subisse.
O rapaz subiu.
Hélvia, que da janela o vira entrar, já o esperava no patamar.
— Papai saiu agora mesmo, disse ela, entrando com Valério na sala.
— Vi-o sair, respondeu o moço corando muito.
Daquelas duas criaturas a que estava tranqüila era Hélvia; a que estava comovida e envergonhada era Valério. Trocavam-se os papéis.
Depois que se sentaram, disse Hélvia:
— Já amou?
A alma de Valério deu um pulo ao ouvir estas palavras. O moço não soube que responder. Fitou os olhos da moça, abaixou-os depois como a donzela que ouve uma confissão de amor. Ela repetiu a pergunta. Valério murmurou:
— Amo.
— Ainda bem! disse ela, compreender-me-á então; só quem amou compreenderá o passo que dei.
— É inútil defender-se, disse Valério, eu agradeço-lhe até esse passo.
— Tanto melhor! Obrigada!
Hélvia soltou estas palavras com voz trêmula; duas lágrimas começaram a tremer-lhe nos olhos, eram as avançadas de uma legião de lágrimas que estavam a saltar-lhe e não se detiveram.
Valério levantou-se e correu a Hélvia, quando esta, pondo a cara nas mãos, chorava e soluçava como se uma grande dor lhe apertasse o coração. Animava-se a estátua; aquela que parecia de gelo era de fogo.
Houve um prolongado silêncio. A moça enxugou os olhos, e Valério sentou-se triste. Triste, porque as lágrimas de Hélvia queriam dizer que não se tratava de um amor nascente, mas talvez de um amor contrariado. Compreendeu de um lance que era chamado como salvador; outro talvez se sentisse humilhado; Valério, não. Deixou que a moça pudesse falar e disse-lhe:
— Que posso fazer para que seja feliz?
— Tudo.
— Juro-lhe que o farei.
Hélvia contou então ao rapaz que amava o primo, e era amada por ele; mas que, tendo o pai brigado com ele, lhe proibira voltar à casa e ela perdera a esperança de que o pai consentisse jamais no casamento. Queria que Valério interviesse para que o primo voltasse à casa e se reconciliasse com o coronel. O resto viria por si.
— Há muito que lhe queria falar; mas era impossível. Aproveitei a indisposição de mamãe, que desde ontem está na cama, para lhe dizer isto.
— Por que não me escreveu?
— Não podia, e, ainda que pudesse, não tinha certeza de convencê-lo com algumas palavras frias escritas num papel.
Valério prometeu interceder em favor do namorado proscrito. Para isso tomou informações a respeito do rapaz para ir à casa dele. Depois mudou de plano. Advertiu que entender-se com ele era dar à intervenção um caráter de serviço pouco delicado, e achou melhor servir unicamente à moça, o que lhe parecia mais próprio.
O coronel resistiu ao primeiro ataque.
— Pede-me por um pelintra, disse ele a Valério, não conhece aquela bisca; é um peralta que me não respeita, e até chegou a ter a petulância de amar-me cá a pequena.
— Está feito, ele é rapaz.
— Pois será, será; mas eu não dou minha filha a um valdevinos daquela laia.
— Mas eu desejava...
— Servi-lo-ei noutra coisa, nisto não.
Valério calou-se; achou melhor adiar o ataque para mais tarde. O coronel ainda falou a respeito do sobrinho, e vendo que Valério nada mais dizia, calou-se também.
Ao cabo de cinco dias resolveu falar-lhe outra vez; mas dessa vez, foi o coronel quem primeiro tocou no assunto.
— Ainda pensa no tratante do meu sobrinho?
— Ainda. E o senhor?
— Eu estou na mesma.
— Perdão, Sr. coronel; eu não creio que seu sobrinho mereça tanto ódio; fez algumas extravagâncias de rapaz, mas... é um caráter... quero dizer, é um sobrinho, um parente.
— Veja lá; nem o senhor se atreve a elogiá-lo; apenas o desculpa. Conhece-o bem?
Valério hesitou; o coronel, que fizera a pergunta com intenção de perscrutar de onde vinha o empenho, compreendeu logo que Valério estava influenciado pela filha.
— Conheço-o alguma coisa, disse finalmente Valério; e não acho que seja um rapaz perdido.
— Há de lá chegar. Não falemos mais nisto.
Valério compreendeu a necessidade de falar ao rapaz, a fim de não comprometer a moça, caso alcançasse a reconciliação. Jaime recebeu-o com alguma indiferença; estimou entretanto que a rapariga tivesse pedido por ele, e disse que a amava loucamente. Este loucamente foi dito com a mesma tranqüilidade com que ele diria: — Está muito calor!
— Pobre moça! disse Valério consigo.
O coronel foi o primeiro a renovar o assunto. Outro mais sagaz que Valério, ou mais experimentado, teria compreendido que o coronel estava disposto a reconciliar-se com o sobrinho, e apenas recusava para ser vencido.
Foi o que aconteceu no fim de um mês. O coronel consentiu na reconciliação; e Valério atribuiu isso ao prazer que lhe causou o novo folheto político que lhe levara pronto. Foi Valério quem conduziu Jaime à casa do coronel e assistiu à reconciliação do tio com o sobrinho que foi glacial e indiferente.
Hélvia apertou-lhe a mão com reconhecimento:
— Devo-lhe a vida! disse ela.
— Eu devo-lhe a felicidade de a ter feito feliz, respondeu Valério.
O moço dizia a verdade. Tinha certa inclinação pela moça; mas os seus sentimentos generosos venceram tudo; e o seu amor nascente desapareceu diante da glória e do prazer de tornar a moça feliz.
Hélvia não perdeu tempo. Disse ao primo que a pedisse ao pai; e este, depois de alguma recusa, mais aparente que real, concedeu-lha.
Nesse ínterim, adoeceu Valério. O casamento efetuou-se quando ele se achava de cama, e no meio da impressão produzida pelo folheto, que ninguém deixou de atribuir ao coronel.
A doença de Valério foi longa e dolorosa; durou uns dois meses; uns vizinhos cuidaram dele e um médico o curou de graça. Quando o rapaz se levantou da cama, foi ao cartório onde lhe disse o escrivão, que, tendo admitido outro escrevente por necessidade de serviço, não podia nesse momento admiti-lo, mas que esperasse algum tempo. A tipografia ainda lhe deu algumas provas para ler.
Admirou-se Valério de que o coronel não o procurasse, mas pensou que talvez não soubesse da sua moléstia e o supusesse até indiferente, pois sem razão deixara a casa. Foi procurar o coronel. Achou-o aborrecido e zangado; disse-lhe que estivera doente, ao que o coronel não atendeu muito, sem dúvida por estar preocupado.
A existência do moço tinha agora um caráter sério. Como prover a todas as suas despesas, com o mesquinho ordenado que obtinha da imprensa? Por felicidade disseram-lhe que o coronel aderira ao programa ministerial, mediante o emprego do sobrinho e alguns favores mais. Valério lembrou-se de procurá-lo e dizer-lhe em que posição se achava.
Justamente no dia em que se preparava para isso, um dos vizinhos se lhe apresentou em casa dizendo que fizera alguma despesa com a moléstia de Valério e desejava ser embolsado. Coincidiu isto com a entrada do caixeiro da botica que lhe foi levar uma conta. Ambas as dívidas orçavam por duzentos mil-réis. Onde os iria buscar o rapaz? Prometeu que pagaria as dívidas da moléstia e saiu para imaginar um meio.
Nenhum lhe ocorreu.
O rapaz estava só no mundo.
Só? Lembrou-lhe de repente o coronel; e afoitamente se encaminhou para lá. Expôs-lhe a situação e a escassez de seu emprego, e ao mesmo tempo pediu duzentos mil-réis adiantados.
— Duzentos mil-réis não os tenho comigo, respondeu o coronel. O casamento de minha filha obrigou-me a muitas despesas; mas daqui a uma semana apareça cá. Quanto ao emprego, falarei ao ministro, mas creio que não é fácil. O governo quer sinceramente economias (o folheto dissera justamente o contrário), e só dificilmente se pode abrir ensejo a um serviço destes. Contudo, confie em mim. Vou ver se lhe posso fazer alguma coisa.
Valério saiu um pouco desanimado, mas, por outro lado, consolado. Tinha certeza de receber os duzentos mil-réis para ocorrer à dívida imediatamente.
No fim de uma semana voltou lá.
O coronel não estava em casa.
Voltou de noite; o coronel mandara dizer que dormia fora.
Zangou-se o rapaz contra o destino; mas resignou-se e no dia seguinte foi à casa do coronel. Não o encontrou. O mesmo aconteceu nos cinco dias seguintes; Valério suspeitou que o coronel não lhe quisesse falar.
Ao cabo de seis dias, encontrou-o no Rocio.
— Que é feito? disse-lhe o coronel.
— Tenho ido à sua casa, mas não tenho tido a felicidade de encontrá-lo, respondeu Valério.
— Não me tenho esquecido do senhor, disse o coronel; falei a um dos ministros e prometeu-me que veria isso. Tenha paciência, espere; pode esperar alguns meses, mas eu confio que se pode fazer alguma coisa. Adeus!
Valério ficou a olhar para ele sem articular palavra. Dos duzentos mil-réis não disse o coronel coisa nenhuma. Valério entendeu que não devia falar neles. Quanto ao emprego, viu o moço que era tão problemático como os duzentos mil-réis. Abriu-se-lhe um sorriso triste nos lábios, ainda pálidos da doença e seguiu cabisbaixo para casa.
Desesperando de achar meio de pagar as dívidas como queria, propôs aos dois credores, que lhes daria uma diminuta mensalidade, tirada do pouco que fazia como revisor de provas. Os credores franziram a testa, mas aceitaram; era o meio de não perder o dinheiro.
Entregou-se Valério todo ao trabalho, e começou a cumprir à risca a promessa que fizera. Dois golpes acabaram, entretanto, por lhe abater completamente o ânimo. Um foi o incêndio na tipografia. Estava Valério em casa quando soube do desastre; eram dez horas da manhã. Seguiu para o lugar; achou a casa em ruínas. Os tipos ficaram todos fundidos; o dono do estabelecimento estava quase doido.
Abatido, desvairado, Valério deixou o lugar do sinistro e entrou a andar ao acaso. Na Rua do Cano viu de longe a menina Hélvia com o marido. Aproximou-se como se visse uma tábua de salvação. Aquela felicidade dos dois consortes era obra dele; na aflição em que estava, podia, sem afronta para si, receber o salário da obra. Não reparou que estava, comparativamente, um tanto maltrapilho.
Apressou o passo e ia articular uma palavra, quando os dois, olhando para ele, voltaram imperturbavelmente a esquina.
Valério, que cometera outras tolices na sua vida, coroou a obra indo atirar-se ao mar.