A Reforma pelo jornal
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.
Publicado originalmente
Houve uma coisa que fez tremer as aristocracias, mais do
que os movimentos
populares; foi o jornal. Devia ser curioso vê-las quando um século despertou
ao clarão deste fiat humano; era a cúpula de seu edifício que se
desmoronava.
Com o jornal eram incompatíveis esses parasitas da
humanidade, essas fofas
individualidades de pergaminho alçado e leitos de brasões. O jornal que tende à unidade humana, ao abraço
comum, não era um inimigo vulgar, era uma barreira... de papel, não, mas de inteligências, de
aspirações.
É fácil prever um resultado favorável ao pensamento
democrático. A imprensa, que encarnava a idéia no livro, expendi eu em outra parte, sentia-se
ainda assim presa por um obstáculo qualquer; sentia-se cerrada naquela
esfera larga mas ainda não infinita; abriu pois uma represa que a
impedia, e lançou-se uma noite aquele oceano ao novo leito aberto: o pergaminho será
a Atlântida submergida.
Por
que não?
Todas
as coisas estão em gérmen na palavra, diz um poeta oriental. Não é assim? O
verbo é a origem de todas as reformas.
Os
hebreus, narrando a lenda do Gênesis, dão à criação da luz a precedência
da palavra de Deus. É palpitante o símbolo. O fiat repetiu-se em todos caos, e, coisa admirável! sempre
nasceu dele alguma luz.
A história é a crônica da palavra. Moisés, no deserto;
Demóstenes, nas guerras helênicas; Cristo, nas sinagogas da Galiléia; Huss, no púlpito cristão;
Mirabeau, na tribuna republicana; todas essas bocas eloqüentes, todas
essas cabeças salientes do passado, não são senão o fiat multiplicado
levantado em todas as confusões da humanidade. A história não é um
simples quadro de acontecimentos; é mais, é o verbo feito livro.
Ora pois, a palavra, esse dom divino que fez do homem
simples matéria
organizada, um ente superior na criação, a palavra foi sempre uma reforma.
Falada na tribuna é prodigiosa, é criadora, mas é o monólogo; escrita no livro,
é ainda criadora, é ainda prodigiosa, mas é ainda o monólogo; esculpida no
jornal, é prodigiosa e criadora, mas não é o monólogo, é a discussão.
E o que é a discussão?
A sentença de morte de todo o status quo, de todos os falsos princípios
dominantes. Desde que uma coisa é trazida à discussão, não tem legitimidade evidente, e
nesse caso o choque da argumentação é
uma probabilidade de queda.
Ora, a discussão, que é a feição
mais especial, o cunho mais vivo do
jornal, é o que não convém exatamente à organização desigual e sinuosa da sociedade.
Examinemos.
A primeira propriedade do
jornal é a reprodução amiudada, é o derramamento
fácil em todos os membros do corpo social. Assim, o operário que se retira ao lar, fatigado pelo labor
quotidiano, vai lá
encontrar ao lado do pão do corpo, aquele pão do espírito, hóstia social da comunhão pública. A propaganda assim é
fácil; a discussão do
jornal reproduz-se também naquele espírito rude, com a diferença que vai lá achar
o terreno preparado. A alma torturada da individualidade ínfima recebe, aceita, absorve sem labor, sem obstáculo aquelas impressões, aquela argumentação de
princípios, aquela argüição
de fatos. Depois uma reflexão, depois um braço que se ergue, um palácio que se invade, um sistema que
cai, um princípio que
se levanta, uma reforma que se coroa.
Malévola faculdade — a palavra!
Será ou não o escolho das
aristocracias modernas, este novo molde do
pensamento e do verbo?
Eu o creio de coração. Graças
a Deus, se há alguma coisa a esperar é a das inteligências proletárias, das classes
ínfimas; das superiores, não.
As aristocracias dissolvem-se, diz um eloqüente irmão
d'armas. É a verdade. A ação democrática
parece reagir sobre as castas que se levantam no
primeiro plano social. Os próprios brasões já se humanizam mais, e alguns jogam na praça sem notarem que
começam a confundir-se com as casacas do
agiota.
Causa riso.
Tremem, pois, tremem com este invento que parece abranger
os séculos — e rasgar desde já um
horizonte largo às aspirações cívicas, às inteligências populares.
E se quisessem suprimi-lo? Não
seria mau para eles; o fechamento da imprensa, e a supressão da sua liberdade, é a base
atual do primeiro trono da Europa.
Mas como! cortar as asas de águia que se lança no
infinito, seria uma tarefa
absurda, e, desculpem a expressão, um cometimento parvo. Os pergaminhos já não são asas de Ícaro. Mudaram as
cenas; o talento tem asas próprias para voar; senso bastante para aquilatar as culpas
aristocráticas e as probidades cívicas.
Procedem estas idéias entre nós? Parece que sim. É verdade
que o jornal aqui não está à altura da sua
missão; pesa-lhe ainda o último elo. Às
vezes leva a exigência até à letra maiúscula de um título de fidalgo.
Cortesania fina, em abono da verdade!
Mas, não importa! eu não creio no destino
individual, mas aceito o destino
coletivo da humanidade. Há um pólo atraente e fases a atravessar. — Cumpre vencer o caminho a todo o custo; no fim há
sempre uma tenda para descansar, e uma relva para dormir.