Os imortais
(lendas)
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.
Publicado originalmente em O Espelho, Rio de Janeiro, 18 e 25/09/1859.
I
O CAÇADOR DE HARZ
As lendas são a poesia
do povo; elas correm de tribo em tribo, de lar em lar, como a história
doméstica das idéias e dos fatos; como o pão bento da instrução familiar.
Entre essas lendas aparecem os contos
populares dos imortais; em muitos povos há
uma legenda de criaturas votadas à vida perpétua por uma fatalidade
qualquer. Sabido é o mito do paganismo grego que mostrava Prometeu atado ao rochedo do Cáucaso em
castigo de seu arrojo contra o céu, onde se
guardavam as chaves da vida. Um abutre a
rasgar-lhe as vísceras, o fígado a renascer à proporção que era devorado, e depois um Hércules, individualidade
meio ideal, e meio verdadeira
— que o desata das correntes eternas — tudo isto embeleza a
arrojada concepção do grande povo da antiguidade.
Um apanhado ligeiro
de algumas dessas lendas, vai o leitor contemplar diante de si. Começo por uma
balada alemã; o povo alemão é o primeiro
povo para essas concepções fantásticas, como um livro de seu compatriota Hoffmann. As margens do Reno são
uma procissão continuada de tradições e de mitos, em que um espírito
profundamente supersticioso se manifesta. É
lá a verdadeira terra da fantasia.
Reza a
tradição popular, que um cavalheiro daquelas regiões era doido pela
caça a que se entregava de corpo e alma como o rei Carlos IX,
que não tinha outro mérito além desse, exceto o de fazer matar huguenotes, doce emprego
para um rei imbecil, como era.
Era pois o cavalheiro da lenda
um caçador consumado, e tanto que fazia da caça o seu cuidado favorito, único,
exclusivo. Esmolas? ele não as dava quando na estrada se lhe apresentava a mão
descarnada do
mendigo; curvo sobre o seu cavalo fogoso lá ia ele por montes e vales, como o furacão do inverno; tudo
destruía, tudo derrubava, ao pobre lavrador que gastava tempo e vida nas suas
messes; passava pela igreja como pela porta
de uma taverna; nem lá entrava para
orar — ao menos pelo descanso de seus antepassados; o sino que chamava
os fiéis à oração não chegava aos seus ouvidos ensurdecidos pelo som da corneta; era a raiva da caça. Deus cansou-se com aquela vida de destruição, e o feriu com sua
mão providencial. O castigo caiu
sobre a cabeça desse cavalheiro condenado a vagar pelas florestas das montanhas de Harz, envoltos
ele, cavalo e monteiros no turbilhão de uma caça fantástica. Todas as noites o
povo crê ouvir o caçador eterno com
toda a sua comitiva em busca de vítimas
na floresta. Não é talvez mais que um efeito de imaginação esse rumor da montanha produzido pelo sopro de um
vento dominante nessa floresta; mas o
povo crê e não convém destruir as fábulas do povo.
Se é um fato,
se é a demonstração de uma máxima, não podemos aqui discutir; eis aí a tradição
que o engenho popular construiu, e a religião das lendas tem conservado.
Há talvez aqui uma bela análise; talvez uma definição que se compadeça com os
destinos do povo.
Esse cultivo dos mitos não é, talvez, o aguardar laborioso das verdades eternas?
É o que não sabemos.
II
O MARINHEIRO BATAVO
A lenda do caçador
de Harz, narrada ligeiramente na primeira página desta revista hoffmânnica, é a
lenda das montanhas; revela claramente o caráter do país das brumas, dos
montes, e dos lagos.
A tradição batava fala de um marinheiro em suas
fantasias de vida eterna. Aqui, como se vê, a
asserção se conserva. Aquele caçador das
montanhas fala da Alemanha em traços bem distintos. Cá é Holanda, isto é, a rainha do mar, o povo crestado ao
sol do oceano; vem um marinheiro. O
caráter dos dois países está bem definido; e o povo, sem querer, se revela com
os seus atavios morais — com a tradição de seus costumes.
Vamos porém à
lenda batava. Fala a tradição de um capitão de navio que
empreendera uma viagem às Índias orientais — no alvorecer apenas do
século XVII. Esta época tão recente dá talvez um caráter de veracidade ao mito do povo;
entretanto, a narração continuada faz desaparecer do espírito essas apreensões de
momento.
O capitão tomou sua
tenda volante e foi pela estrada do mar, caminho do empório oriental que tanto
agitava as cabeças do tempo. Era o ponto para o qual convergiam então todos os espíritos.
Ele para
lá caminhou agitado sobre o dorso oscilante do mar, e levado pelas asas violentas
dos furacões marinhos.
Aproximava-se do
cabo tormentoso, onde o mar parece abrir uma porta do inferno.
Aí, levado pelas convulsões terríveis da água embravecida, pelo
rebentar furioso da tempestade, naufragou. Só sobre os destroços de seu navio, Mário do
mar, sobre ruínas de uma Cartago ambulante, tentou, com a pertinácia que
caracteriza os filhos de sua pátria, atravessar aquele cabo tão celebrado nos
verses de Camões. Debalde! quanto ele se aproximava do termo ansiado, um tufão violento
arredava-o para trás, e ele, de novo, como Sísifo, lá ia rolar a pedra de
uma intenção de ferro. Cem vezes o vento lhe burlava esforços
mais que humanos. Não se aniquilou com isso — Devo passar! e foi
tentar de novo esse atravessar do cabo. Mas desta vez uma praga lhe
entreabriu os lábios. — Hei de passar agora ou levarei aqui até a consumação
dos tempos. — Pois tenta, tenta até a consumação dos séculos.
Se era o Adamastor
quem assim falava, não sei; mas a tradição, mais ortodoxa do que eu a esse
respeito, deixa entrever de que era uma
voz do céu que assim bradava, e não um aviso do mar.
Novo tufão arredou o pertinaz
marinheiro; desde então crê o povo piedosamente que o capitão em questão lá
está nessa labutação e que aí ficará até a consumação dos séculos.
Fala-se mesmo que alguns navegantes têm
encontrado nessa altura do mar — um navio
fantasma dirigido por um homem, envolvidos ambos nas brumas de uma atmosfera pesada, caminhando em direção
do cabo, para atravessá-lo, — mas que um vento agita e sacode ambos para longe
do desejado caminho. A física tem mesmo querido explicar esse fato asseverado por testemunhas, com as leis dos reflexos,
— mas o povo, ingênuo e sem fé das verdades, quer ao menos crer na fábula, e
pouco apreço dá às demonstrações científicas.
Esta é a grande
lenda do mar — que respira largamente um delírio de serão marinho na amurada, alta
noite. É o Sísifo moderno, o Sísifo do oceano, modelado sobre a idéia robusta e
simples da lenda antiga. Sobre o mar, diz também uma tradição árabe, anda Elias
ou Enoque, um desses
profetas, mostrando e conduzindo os viandantes a Meca, como o outro
o faz em terra. A ser verdade o mito oriental, não é muito sólido
o caminho escolhido pelo grande vulto das Escrituras.
É opulenta de pensamento e de relevo a
lenda batava, apesar de não ser original. Mas
aí se mostra o grande povo; não quis a terra, que é a imensidade, como diz Lord Byron, quis o mar
que é o infinito.