Crisálidas
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente no Rio de Janeiro, por B.-L. Garnier, em 1864.
ÍNDICE
POEMAS PRESENTES Na primeira edição
MUSA CONSOLATRIX
Que a mão do tempo e o hálito dos homens
Murchem a flor das ilusões da vida,
Musa consoladora,
É no teu seio amigo e sossegado
Que o poeta respira o suave sono.
Não há, não há contigo,
Nem dor aguda, nem sombrios ermos;
Da tua voz os namorados cantos
Enchem, povoam tudo
De íntima paz, de vida e de conforto.
Ante esta voz que as dores adormece,
E muda o agudo espinho em flor cheirosa,
Que vales tu, desilusão dos homens?
Tu que podes, ó tempo?
A alma triste do poeta sobrenada
À enchente das angústias,
E, afrontando o rugido da tormenta,
Passa cantando, alcíone divina.
Musa consoladora,
Quando da minha fronte de mancebo
A última ilusão cair, bem como
Folha amarela e seca
Que ao chão atira a viração do outono,
Ah! no teu seio amigo
Acolhe-me, — e haverá minha alma aflita,
Em vez de algumas ilusões que teve,
A paz, o último bem, último e puro!
VISIO
Eras pálida. E os cabelos,
Aéreos, soltos novelos
Sobre as espáduas caíam...
Os olhos meio cerrados
De volúpia e de ternura
Entre lágrimas luziam...
E os braços entrelaçados,
Como cingindo a ventura,
Ao teu seio me cingiam...
Depois, naquele delírio,
Suave, doce martírio
De pouquíssimos instantes
Os teus lábios sequiosos,
Frios, trêmulos, trocavam
Os beijos mais delirantes,
E no supremo dos gozos
Ante os anjos se casavam
Nossas almas palpitantes...
Depois... depois a verdade,
A fria realidade,
A solidão, a tristeza;
Daquele sonho desperto,
Olhei... silêncio de morte
Respirava a natureza, —
Era a terra, era o deserto,
Fora-se o doce transporte,
Restava a fria certeza.
Desfizera-se a mentira:
Tudo aos meus olhos fugira,
Tu e o teu olhar ardente,
Lábios trêmulos e frios,
O abraço longo e apertado,
O beijo doce e veemente;
Restavam meus desvarios,
E o incessante cuidado,
E a fantasia doente.
E agora te vejo. E fria
Tão outra estás da que eu via
Naquele sonho encantado!
És outra, calma, discreta,
Com o olhar indiferente,
Tão outro do olhar sonhado,
Que a minha alma de poeta
Não se vê a imagem presente
Foi a visão do passado.
Foi, sim, mas visão apenas;
Daquelas visões amenas
Que à mente dos infelizes
Descem vivas e animadas,
Cheias de luz e esperança
E de celestes matizes:
Mas, apenas dissipadas,
Fica uma leve lembrança,
Não ficam outras raízes.
Inda assim, embora sonho,
Mas, sonho doce e risonho,
Desse-me Deus que fingida
Tivesse aquela ventura
Noite por noite, hora a hora,
No que me resta de vida,
Que, já livre da amargura,
Alma, que em dores me chora,
Chorara de agradecida!
Oh! la fleur de l'Eden, pourquoi l'as-tu fannée,
Insouciant enfant, belle Eve aux blonds cheveux!
ALFRED DE MUSSET
Era uma pobre criança...
— Pobre criança, se o eras! —
Entre as quinze primaveras
De sua vida cansada
Nem uma flor de esperança
Abria a medo. Eram rosas
Que a doida da esperdiçada
Tão festivas, tão formosas,
Desfolhava pelo chão.
— Pobre criança, se o eras! —
Os carinhos mal gozados
Eram por todos comprados,
Que os afetos de sua alma
Havia-os levado à feira,
Onde vendera sem pena
Até a ilusão primeira
Do seu doido coração!
Pouco antes, a candura,
Coas brancas asas abertas,
Em um berço de ventura
A criança acalentava
Na santa paz do Senhor;
Para acordá-la era cedo,
E a pobre ainda dormia
Naquele mudo segredo
Que só abre o seio um dia
Para dar entrada a amor.
Mas, por teu mal, acordaste!
Junto do berço passou-te
A festiva melodia
Da sedução... e acordou-te!
Colhendo as límpidas asas,
O anjo que te velava
Nas mãos trêmulas e frias
Fechou o rosto... chorava!
Tu, na sede dos amores,
Colheste todas as flores
Que nas orlas do caminho
Foste encontrando ao passar;
Por elas, um só espinho
Não te feriu... vais andando...
Corre, criança, até quando
Fores forçada a parar!
Então, desflorada a alma
De tanta ilusão, perdida
Aquela primeira calma
Do teu sono de pureza;
Esfolhadas, uma a uma,
Essas rosas de beleza
Que se esvaem como a escuma
Que a vaga cospe na praia
E que por si se desfaz;
Então, quando nos teus olhos
Uma lágrima buscares,
E secos, secos de febre,
Uma só não encontrares
Das que em meio das angústias
São um consolo e uma paz;
Então, quando o frio 'spectro
Do abandono e da penúria
Vier aos teus sofrimentos
Juntar a última injúria:
E que não vires ao lado
Um rosto, um olhar amigo
Daqueles que são agora
Os desvelados contigo;
Criança, verás o engano
E o erro dos sonhos teus;
E dirás, — então já tarde, —
Que por tais gozos não vale
Deixar os braços de Deus.
STELLA
Já raro e mais escasso
A noite arrasta o manto,
E verte o último pranto
Por todo o vasto espaço.
Tíbio clarão já cora
A tela do horizonte,
E já de sobre o monte
Vem debruçar-se a aurora.
À muda e torva irmã,
Dormida de cansaço,
Lá vem tomar o espaço
A virgem da manhã.
Uma por uma, vão
As pálidas estrelas,
E vão, e vão com elas
Teus sonhos, coração.
Mas tu, que o devaneio
Inspiras do poeta,
Não vês que a vaga inquieta
Abre-te o úmido seio?
Vai. Radioso e ardente,
Em breve o astro do dia,
Rompendo a névoa fria,
Virá do roxo oriente.
Dos íntimos sonhares
Que a noite protegera,
De tanto que eu vertera,
Em lágrimas a pares,
Do amor silencioso,
Místico, doce, puro,
Dos sonhos de futuro,
Da paz, do etéreo gozo,
De tudo nos desperta
Luz de importuno dia;
Do amor que tanto a enchia
Minha alma está deserta.
A virgem da manhã
Já todo o céu domina...
Espero-te, divina,
Espero-te, amanhã.
Dobra o joelho: — é um túmulo.
Embaixo amortalhado
Jaz o cadáver tépido
De um povo aniquilado;
A prece melancólica
Reza-lhe em torno à cruz.
Ante o universo atônito
Abriu-se a estranha liça,
Travou-se a luta férvida
Da força e da justiça;
Contra a justiça, ó século,
Venceu a espada e o obus.
Venceu a força indômita;
Mas a infeliz vencida
A mágoa, a dor, o ódio,
Na face envilecida
Cuspiu-lhe. E a eterna mácula
Seus louros murchará.
E quando a voz fatídica
Da santa liberdade
Vier em dias prósperos
Clamar à humanidade,
Então revivo o México
Da campa surgirá.
POLÔNIA
E ao terceiro dia a alma deve voltar ao
corpo, e a nação ressuscitará.
MICKIEWICZ
Como aurora de um dia desejado,
Clarão suave o horizonte inunda.
É talvez a manhã. A noite amarga
Como que chega ao termo; e o sol dos livres,
Cansado de te ouvir o inútil pranto,
Alfim ressurge no dourado Oriente.
Eras livre, — tão livre como as águas
Do teu formoso, celebrado rio;
A coroa dos tempos
Cingia-te a cabeça veneranda;
E a desvelada mãe, a irmã cuidosa,
A santa liberdade,
Como junto de um berço precioso,
À porta dos teus lares vigiava.
Eras feliz demais, demais formosa;
A sanhuda cobiça dos tiranos
Veio enlutar teus venturosos dias...
Infeliz! a medrosa liberdade
Em face dos canhões espavorida
Aos reis abandonou teu chão sagrado;
Sobre ti, moribunda,
Viste cair os duros opressores:
Tal a gazela que percorre os campos,
Se o caçador a fere,
Cai convulsa de dor em mortais ânsias,
E vê no extremo arranco
Abater-se sobre ela
Escura nuvem de famintos corvos.
Presa uma vez da ira dos tiranos,
Os membros retalhou-te
Dos senhores a esplêndida cobiça;
Em proveito dos reis a terra livre
Foi repartida, e os filhos teus — escravos —
Viram descer um véu de luto à pátria
E apagar-se na história a glória tua.
A glória, não! — É glória o cativeiro,
Quando a cativa, como tu, não perde
A aliança de Deus, a fé que alenta,
E essa união universal e muda
Que faz comuns a dor, o ódio, a esperança.
Um dia, quando o cálice da amargura,
Mártir, até às fezes esgotaste,
Longo tremor correu as fibras tuas;
Em teu ventre de mãe, a liberdade
Parecia soltar esse vagido
Que faz rever o céu no olhar materno;
Teu coração estremeceu; teus lábios
Trêmulos de ansiedade e de esperança,
Buscaram aspirar a longos tragos
A vida nova nas celestes auras.
Então surgiu Kosciusko;
Pela mão do Senhor vinha tocado;
A fé no coração, a espada em punho,
E na ponta da espada a torva morte,
Chamou aos campos a nação caída.
De novo entre o direito e a força bruta
Empenhou-se o duelo atroz e infausto
Que a triste humanidade
Inda verá por séculos futuros.
Foi longa a luta; os filhos dessa terra
Ah! não pouparam nem valor nem sangue!
A mãe via partir sem pranto os filhos,
A irmã o irmão, a esposa o esposo,
E todas abençoavam
A heróica legião que ia à conquista
Do grande livramento.
Coube às hostes da força
Da pugna o alto prêmio;
A opressão jubilosa
Cantou essa vitória de ignomínia;
E de novo, ó cativa, o véu de luto
Correu sobre teu rosto!
Deus continha
Em suas mãos o sol da liberdade,
E inda não quis que nesse dia infausto
Teu macerado corpo alumiasse.
Resignada à dor e ao infortúnio,
A mesma fé, o mesmo amor ardente
Davam-te a antiga força.
Triste viúva, o templo abriu-te as portas;
Foi a hora dos hinos e das preces;
Cantaste a Deus, tua alma consolada
Nas asas da oração aos céus subia,
Como a refugiar-se e a refazer-se
No seio do infinito.
E quando a força do feroz cossaco
À casa do Senhor ia buscar-te,
Era ainda rezando
Que te arrastavas pelo chão da igreja.
Pobre nação! — é longo o teu martírio;
A tua dor pede vingança e termo;
Muito hás vertido em lágrimas e sangue;
É propícia esta hora. O sol dos livres
Como que surge no dourado Oriente.
Não ama a liberdade
Quem não chora contigo as dores tuas;
E não pede, e não ama, e não deseja
Tua ressurreição, finada heróica!
ERRO
Erro é teu. Amei-te um dia
Com esse amor passageiro
Que nasce na fantasia
E não chega ao coração;
Não foi amor, foi apenas
Uma ligeira impressão;
Um querer indiferente,
Em tua presença, vivo,
Morto, se estavas ausente,
E se ora me vês esquivo,
Se, como outrora, não vês
Meus incensos de poeta
Ir eu queimar a teus pés,
É que, — como obra de um dia,
Passou-me essa fantasia.
Para eu amar-te devias
Outra ser e não como eras.
Tuas frívolas quimeras,
Teu vão amor de ti mesma,
Essa pêndula gelada
Que chamavas coração,
Eram bem fracos liames
Para que a alma enamorada
Me conseguissem prender;
Foram baldados tentames,
Saiu contra ti o azar,
E embora pouca, perdeste
A glória de me arrastar
Ao teu carro... Vãs quimeras!
Para eu amar-te devias
Outra ser e não como eras...
A bondade choremos inocente
Cortada em flor que, pela mão da morte,
Nos foi arrebatada dentre a gente.
CAMÕES — Elegias
Se, como outrora, nas florestas virgens,
Nos fosse dado — o esquife que te encerra
Erguer a um galho de árvore frondosa
Certo não tinhas um melhor jazigo
Do que ali, ao ar livre, entre os perfumes
Da florente estação, imagem viva
De teus cortados dias, e mais perto
Do clarão das estrelas.
Sobre teus pobres e adorados restos,
Piedosa, a noite ali derramaria
De seus negros cabelos puro orvalho
À beira do teu último jazigo
Os alados cantores da floresta
Iriam sempre modular seus cantos;
Nem letra, nem lavor de emblema humano,
Relembraria a mocidade morta;
Bastava só que ao coração materno,
Ao do esposo, ao dos teus, ao dos amigos,
Um aperto, uma dor, um pranto oculto,
Dissesse: — Dorme aqui, perto dos anjos,
A cinza de quem foi gentil transunto
De virtudes e graças.
Mal havia transposto da existência
Os dourados umbrais; a vida agora
Sorria-lhe toucada dessas flores
Que o amor, que o talento e a mocidade
À uma repartiam.
Tudo lhe era presságio alegre e doce;
Uma nuvem sequer não sombreava,
Em sua fronte, o íris da esperança;
Era, enfim, entre os seus a cópia viva
Dessa ventura que os mortais almejam,
E que raro a fortuna, avessa ao homem.
Deixa gozar na terra.
Mas eis que o anjo pálido da morte
A pressentiu feliz e bela e pura,
E, abandonando a região do olvido,
Desceu à terra, e sob a asa negra
A fronte lhe escondeu; o frágil corpo
Não pôde resistir; a noite eterna
Veio fechar seus olhos;
Enquanto a alma, abrindo
As asas rutilantes pelo espaço.
Foi engolfar-se em luz, perpetuamente,
Tal a assustada pomba, que na árvore
O ninho fabricou, — se a mão do homem
Ou a impulsão do vento um dia abate
No seio do infinito;
O recatado asilo, — abrindo o vôo,
Deixa os inúteis restos
E, atravessando airosa os leves ares,
Vai buscar noutra parte outra guarida.
Hoje, do que era inda lembrança resta,
E que lembrança! Os olhos fatigados
Parecem ver passar a sombra dela;
O atento ouvido inda lhe escuta os passos;
E as teclas do piano, em que seus dedos
Tanta harmonia despertavam antes,
Como que soltam essas doces notas
Que outrora ao seu contato respondiam.
Ah! pesava-lhe este ar da terra impura,
Faltava-lhe esse alento de outra esfera,
Onde, noiva dos anjos, a esperavam
As palmas da virtude.
Mas, quando assim a flor da mocidade
Toda se esfolha sobre o chão da morte,
Senhor, em que firmar a segurança
Das venturas da terra? Tudo morre;
À sentença fatal nada se esquiva,
O que é fruto e o que é flor. O homem cego
Cuida haver levantado em chão de bronze
Um edifício resistente aos tempos,
Mas lá vem dia, em que, a um leve sopro,
O castelo se abate,
Onde, doce ilusão, fechado havias
Tudo o que de melhor a alma do homem
Encerra de esperanças.
Dorme, dorme tranqüila
Em teu último asilo; e se eu não pude
Ir espargir também algumas flores
Sobre a lájea da tua sepultura;
Se não pude, — eu que há pouco te saudava
Em teu erguer, estrela, — os tristes olhos
Banhar nos melancólicos fulgores,
Na triste luz do teu recente ocaso,
Deixo-te ao menos nesses pobres versos
Um penhor de saudade, e lá na esfera
Aonde aprouve ao Senhor chamar-te cedo,
Possas tu ler nas pálidas estrofes
A tristeza do amigo.
1861
SINHÁ
O teu nome é como o óleo derramado.
CÂNTICO DOS CÂNTICOS
Nem o perfume que expira
A flor, pela tarde amena,
Nem a nota que suspira
Canto de saudade e pena
Nas brandas cordas da lira;
Nem o murmúrio da veia
Que abriu sulco pelo chão
Entre margens de alva areia,
Onde se mira e recreia
Rosa fechada em botão;
Nem o arrulho enternecido
Das pombas nem do arvoredo
Esse amoroso arruído
Quando escuta algum segredo
Pela brisa repetido;
Nem esta saudade pura
Do canto do sabiá
Escondido na espessura,
Nada respira doçura
Como o teu nome, Sinhá!
HORAS VIVAS
Noite; abrem-se as flores...
Que esplendores!
Cíntia sonha amores
Pelo céu.
Tênues as neblinas
Às campinas
Descem das colinas,
Como um véu.
Mãos em mãos travadas
Animadas,
Vão aquelas fadas
Pelo ar;
Soltos os cabelos,
Em novelos,
Puros, louros, belos,
A voar.
— "Homem, nos teus dias
Que agonias,
Sonhos, utopias,
Ambições;
Vivas e fagueiras,
As primeiras,
Como as derradeiras
Ilusões!
— Quantas, quantas vidas
Vão perdidas,
Pombas malferidas
Pelo mal!
Anos após anos,
Tão insanos,
Vêm os desenganos
Afinal.
— Dorme: se os pesares
Repousares.
Vês? — por estes ares
Vamos rir;
Mortas, não; festivas,
E lascivas,
Somos — horas vivas
De dormir. —"
VERSOS A CORINA
Tacendo il nome di questa gentilíssima
DANTE
I
Tu nasceste de um beijo e de um olhar. O beijo
Numa hora de amor, de ternura e desejo,
Uniu a terra e o céu. O olhar foi do Senhor,
Olhar de vida, olhar de graça, olhar de amor;
Depois, depois vestindo a forma peregrina,
Aos meus olhos mortais, surgiste-me, Corina!
De um júbilo divino os cantos entoava
A natureza mãe, e tudo palpitava,
A flor aberta e fresca, a pedra bronca e rude,
De uma vida melhor e nova juventude.
Minh'alma adivinhou a origem do teu ser;
Quis cantar e sentir; quis amar e viver
A luz que de ti vinha, ardente, viva, pura,
Palpitou, reviveu a pobre criatura;
Do amor grande elevado abriram-se-lhe as fontes;
Fulgiram novos sóis, rasgaram-se horizontes;
Surgiu, abrindo em flor, uma nova região;
Era o dia marcado à minha redenção.
Era assim que eu sonhava a mulher. Era assim:
Corpo de fascinar, alma de querubim;
Era assim: fronte altiva e gesto soberano,
Um porte de rainha a um tempo meigo e ufano,
Em olhos senhoris uma luz tão serena,
E grave como Juno, e belo como Helena!
Era assim, a mulher que extasia e domina,
A mulher que reúne a terra e o céu: Corina!
Neste fundo sentir, nesta fascinação,
Que pede do poeta o amante coração?
Viver como nasceste, ó beleza, ó primor,
De uma fusão do ser, de uma efusão do amor.
Viver, — fundir a existência
Em um ósculo de amor,
Fazer de ambas — uma essência,
Apagar outras lembranças,
Perder outras ilusões,
E ter por sonho melhor
O sonho das esperanças
De que a única ventura
Não reside em outra vida,
Não vem de outra criatura;
Confundir olhos nos olhos,
Unir um seio a outro seio,
Derramar as mesmas lágrimas
E tremer do mesmo enleio,
Ter o mesmo coração,
Viver um do outro viver...
Tal era a minha ambição.
Donde viria a ventura
Desta vida? Em que jardim
Colheria esta flor pura?
Em que solitária fonte
Esta água iria beber'?
Em que incendido horizonte
Podiam meus olhos ver
Tão meiga, tão viva estrela,
Abrir-se e resplandecer?
Só em ti: — em ti que és bela,
Em ti que a paixão respiras,
Em ti cujo olhar se embebe
Na ilusão de que deliras,
Em ti, que um ósculo de Hebe
Teve a singular virtude
De encher, de animar teus dias,
De vida e de juventude...
Amemos! diz a flor à brisa peregrina,
Amemos! diz a brisa, arfando em torno à flor;
Cantemos esta lei e vivamos, Corina,
De uma fusão do ser, de uma efusão do amor.
II
A minha alma, talvez, não é tão pura,
Como era pura nos primeiros dias;
Eu sei; tive choradas agonias
De que conservo alguma nódoa escura,
Talvez. Apenas à manhã da vida
Abri meus olhos virgens e minha alma.
Nunca mais respirei a paz e a calma,
E me perdi na porfiosa lida.
Não sei que fogo interno me impelia
À conquista da luz, do amor, do gozo,
Não sei que movimento imperioso
De um desusado ardor minha alma enchia.
Corri de campo em campo e plaga em plaga,
(Tanta ansiedade o coração encerra!)
A ver o lírio que brotasse a terra,
A ver a escuma que cuspisse — a vaga.
Mas, no areal da praia, no horto agreste,
Tudo aos meus olhos ávidos fugia...
Desci ao chão do vale que se abria,
Subi ao cume da montanha alpestre.
Nada! Volvi o olhar ao céu. Perdi-me
Em meus sonhos de moço e de poeta;
E contemplei, nesta ambição inquieta,
Da muda noite a página sublime.
Tomei nas mãos a cítara saudosa
E soltei entre lágrimas um canto.
A terra brava recebeu meu pranto
E o eco repetiu-me a voz chorosa.
Foi em vão. Como um lânguido suspiro,
A voz se me calou, e do ínvio monte
Olhei ainda as linhas do horizonte,
Como se olhasse o último retiro.
Nuvem negra e veloz corria solta,
O anjo da tempestade anunciando;
Vi ao longe as alcíones cantando
Doidas correndo à flor da água revolta.
Desiludido, exausto, ermo, perdido,
Busquei a triste estância do abandono,
E esperei, aguardando o último sono,
Volver à terra, de que foi nascido.
— “Ó Cibele fecunda, é no remanso
Do teu seio que vive a criatura.
Chamem-te outros morada triste e escura,
Chamo-te glória, chamo-te descanso!”
Assim falei. E murmurando aos ventos
Uma blasfêmia atroz — estreito abraço
Homem e terra uniu, e em longo espaço
Aos ecos repeti meus vãos lamentos.
Mas, tu passaste... Houve um grito
Dentro de mim. Aos meus olhos
Visão de amor infinito,
Visão de perpétuo gozo
Perpassava e me atraía,
Como um sonho voluptuoso
De sequiosa fantasia.
Ergui-me logo do chão,
E pousei meus olhos fundos
Em teus olhos soberanos,
Ardentes, vivos, profundos,
Como os olhos da beleza
Que das escumas nasceu...
Eras tu, maga visão,
Eras tu o ideal sonhado
Que em toda a parte busquei,
E por quem houvera dado
A vida que fatiguei;
Por quem verti tanto pranto,
Por quem nos longos espinhos
Minhas mãos, meus pés sangrei!
Mas se minh'alma, acaso, é menos pura
Do que era pura nos primeiros dias,
Por que não soube em tantas agonias
Abençoar a minha desventura;
Se a blasfêmia os meus lábios poluíra,
Quando, depois de tempo e do cansaço,
Beijei a terra no mortal abraço
E espedacei desanimado a lira;
Podes, visão formosa e peregrina,
No amor profundo, na existência calma,
Desse passado resgatar minh'alma
E levantar-me aos olhos teus, — Corina!
III
Quando voarem minhas esperanças
Como um bando de pombas fugitivas;
E destas ilusões doces e vivas
Só me restarem pálidas lembranças;
E abandonar-me a minha mãe Quimera,
Que me aleitou aos seios abundantes;
E vierem as nuvens flamejantes
Encher o céu da minha primavera;
E raiar para mim um triste dia,
Em que, por completar minha tristeza,
Nem possa ver-te, musa da beleza,
Nem possa ouvir-te, musa da harmonia;
Quando assim seja, por teus olhos juro,
Voto minh'alma à escura soledade,
Sem procurar melhor felicidade,
E sem ambicionar prazer mais puro,
Como o viajor que, da falaz miragem
Volta desenganado ao lar tranqüilo
E procura, naquele último asilo,
Nem evocar memórias da viagem,
Envolvido em mim mesmo, olhos cerrados
A tudo mais, — a minha fantasia
As asas colherá com que algum dia
Quis alcançar os cimos elevados.
És tu a maior glória de minha alma,
Se o meu amor profundo não te alcança,
De que me servirá outra esperança?
Que glória tirarei de alheia palma? *
IV
Tu que és bela e feliz, tu que tens por diadema
A dupla irradiação da beleza e do amor;
E sabes reunir, como o melhor poema,
Um desejo da terra e um toque do Senhor;
Tu que, como a ilusão, entre névoas deslizas
Aos versos do poeta um desvelado olhar,
Corina, ouve a canção das amorosas brisas,
Do poeta e da luz, das selvas e do mar.
AS BRISAS
Deu-nos a harpa eólia a excelsa melodia
Que a folhagem desperta e torna alegre a flor,
Mas que vale esta voz, ó musa da harmonia,
Ao pé da tua voz, filha da harpa do amor?
Diz-nos tu como houveste as notas do teu canto?
Que alma de serafim volteia aos lábios teus?
Donde houveste o segredo e o poderoso encanto
Que abre a ouvidos mortais a harmonia dos céus?
A LUZ
Eu sou a luz fecunda, alma da natureza;
Sou o vivo alimento à viva criação.
Deus lançou-me no espaço. A minha realeza
Vai até onde vai meu vívido clarão.
Mas, se derramo vida a Cibele fecunda,
Que sou eu ante a luz dos teus olhos? Melhor,
A tua é mais do céu, mais doce, mais profunda,
Se a vida vem de mim, tu dás a vida e o amor.
AS ÁGUAS
Do lume da beleza o berço celebrado
Foi o mar; Vênus bela entre espumas nasceu.
Veio a idade de ferro, e o nume venerado
Do venerado altar baqueou: — pereceu.
Mas a beleza és tu. Como Vênus marinha,
Tens a inefável graça e o inefável ardor.
Se paras, és um nume; andas, uma rainha.
E se quebras um olhar, és tudo isso e és amor.
Chamam-te as águas, vem! tu irás sobre a vaga.
A vaga, a tua mãe que te abre os seios nus,
Buscar adorações de uma plaga a outra plaga.
E das regiões da névoa às regiões da luz!
AS SELVAS
Um silêncio de morte entrou no seio às selvas.
Já não pisa Diana este sagrado chão;
Nem já vem repousar no leito destas relvas
Aguardando saudosa o amor e Endimião.
Da grande caçadora a um solicito aceno
Já não vem, não acode o grupo jovial;
Nem o eco repete a flauta de Sileno,
Após o grande ruído a mudez sepulcral.
Mas Diana aparece. A floresta palpita,
Uma seiva melhor circula mais veloz;
É vida que renasce, é vida que se agita;
À luz do teu olhar, ao som da tua voz!
O POETA
Também eu, sonhador, que vi correr meus dias
Na solene mudez da grande solidão,
E soltei, enterrando as minhas utopias,
O último suspiro e a última oração;
Também eu junto à voz da natureza,
E soltando o meu hino ardente e triunfal,
Beijarei ajoelhado as plantas da beleza,
E banharei minh'alma em tua luz, — Ideal!
Ouviste a natureza? Às súplicas e às mágoas
Tua alma de mulher deve de palpitar;
Mas que te não seduza o cântico das águas,
Não procures, Corina, o caminho do mar!
V
Guarda estes versos que escrevi chorando
Como um alívio à minha soledade,
Como um dever do meu amor; e quando
Houver em ti um eco de saudade,
Beija estes versos que escrevi chorando.
Único em meio das paixões vulgares,
Fui a teus pés queimar minh'alma ansiosa,
Como se queima o óleo ante os altares;
Tive a paixão indômita e fogosa,
Única em meio das paixões vulgares.
Cheio de amor, vazio de esperança,
Dei para ti os meus primeiros passos;
Minha ilusão fez-me, talvez, criança;
E eu pretendi dormir aos teus abraços,
Cheio de amor, vazio de esperança.
Refugiado à sombra do mistério
Pude cantar meu hino doloroso;
E o mundo ouviu o som doce ou funéreo
Sem conhecer o coração ansioso
Refugiado à sombra do mistério.
Mas eu que posso contra a sorte esquiva?
Vejo que em teus olhares de princesa
Transluz uma alma ardente e compassiva
Capaz de reanimar minha incerteza;
Mas eu que posso contra a sorte esquiva?
Como um réu indefeso e abandonado,
Fatalidade, curvo-me ao teu gesto;
E se a perseguição me tem cansado,
Embora, escutarei o teu aresto,
Como um réu indefeso e abandonado.
Embora fujas aos meus olhos tristes,
Minh'alma irá saudosa, enamorada,
Acercar-se de ti lá onde existes;
Ouvirás minha lira apaixonada,
Embora fujas aos meus olhos tristes.
Talvez um dia meu amor se extinga,
Como fogo de Vesta mal cuidado,
Que sem o zelo da Vestal não vinga;
Na ausência e no silêncio condenado
Talvez um dia meu amor se extinga.
Então não busques reavivar a chama.
Evoca apenas a lembrança casta
Do fundo amor daquele que não ama;
Esta consolação apenas basta;
Então não busques reavivar a chama.
Guarda estes versos que escrevi chorando,
Como um alívio à minha soledade,
Como um dever do meu amor; e quando
Houver em ti um eco de saudade,
Beija estes versos que escrevi chorando.
VI
Em vão! Contrário a amor é nada o esforço humano;
É nada o vasto espaço, é nada o vasto oceano.
Solta do chão abrindo as asas luminosas,
Minh'alma se ergue e voa às regiões venturosas,
Onde ao teu brando olhar, ó formosa Corina,
Reveste a natureza a púrpura divina!
Lá, como quando volta a primavera em flor,
Tudo sorri de luz, tudo sorri de amor;
Ao influxo celeste e doce da beleza,
Pulsa, canta, irradia e vive a natureza;
Mais lânguida e mais bela, a tarde pensativa
Desce do monte ao vale; e a viração lasciva
Vai despertar à noite a melodia estranha
Que falam entre si os olmos da montanha;
A flor tem mais perfume e a noite mais poesia;
O mar tem novos sons e mais viva ardentia;
A onda enamorada arfa e beija as areias,
Novo sangue circula, ó terra, em tuas veias!
O esplendor da beleza é raio criador:
Derrama a tudo a luz, derrama a tudo o amor.
Mas vê. Se o que te cerca é uma festa de vida,
Eu, tão longe de ti, sinto a dor mal sofrida
Da saudade que punge e do amor que lacera
E palpita e soluça e sangra e desespera.
Sinto em torno de mim a muda natureza
Respirando, como eu, a saudade e a tristeza;
É deste ermo que eu vou, alma desventurada,
Murmurar junto a ti a estrofe imaculada
Do amor que não perdeu, coa última esperança,
Nem o intenso fervor, nem a intensa lembrança.
Sabes se te eu amei, sabes se te amo ainda,
Do meu sombrio céu alma estrela bem-vinda!
Como divaga a abelha inquieta e sequiosa
Do cálice do lírio ao cálice da rosa,
Divaguei de alma em alma em busca deste amor;
Gota de mel divino, era divina a flor
Que o devia conter. Eras tu.
No delírio
De te amar — olvidei as lutas e o martírio;
Eras tu. Eu só quis, numa ventura calma,
Sentir e ver o amor através de uma alma;
De outras belezas vãs não valeu o esplendor,
A beleza eras tu: — tinhas a alma e o amor.
Pelicano do amor, dilacerei meu peito,
E com meu próprio sangue os filhos meus aleito;
Meus filhos: o desejo, a quimera, a esperança;
Por eles reparti minh'alma. Na provança
Ele não fraqueou, antes surgiu mais forte;
É que eu pus neste amor, neste último transporte,
Tudo o que vivifica a minha juventude:
O culto da verdade e o culto da virtude,
A vênia do passado e a ambição do futuro,
O que há de grande e belo, o que há de nobre e puro.
Deste profundo amor, doce e amada Corina,
Acorda-te a lembrança um eco de aflição?
Minh'alma pena e chora à dor que a desatina:
Sente tua alma acaso a mesma comoção?
Em vão! Contrário a amor é nada o esforço humano,
É nada o vasto espaço, é nada o vasto oceano!
Vou, sequioso espírito,
Cobrando novo alento,
N'asa veloz do vento
Correr de mar em mar;
Posso, fugindo ao cárcere,
Que à terra me tem preso,
Em novo ardor aceso,
Voar, voar, voar!
Então, se à hora lânguida
Da tarde que declina,
Do arbusto da colina
Beijando a folha e a flor,
A brisa melancólica
Levar-te entre perfumes
Uns tímidos queixumes
Ecos de mágoa e dor;
Então, se o arroio tímido
Que passa e que murmura
À sombra da espessura
Dos verdes salgueirais,
Mandar-te entre os murmúrios
Que solta nos seus giros,
Uns como que suspiros
De amor, uns ternos ais;
Então, se no silêncio
Da noite adormecida,
Sentires — mal dormida —
Em sonho ou em visão,
Um beijo em tuas pálpebras,
Um nome aos teus ouvidos,
E ao som de uns ais partidos
Pulsar teu coração;
Da mágoa que consome
O meu amor venceu;
Não tremas: — é teu nome,
Não fujas — que sou eu!
ÚLTIMA FOLHA
Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia,
E deixa ao eco dos sagrados ermos
A última harmonia.
Dos teus cabelos de ouro, que beijavam
Na amena tarde as virações perdidas,
Deixa cair ao chão as alvas rosas
E as alvas margaridas.
Vês? Não é noite, não, este ar sombrio
Que nos esconde o céu. Inda no poente
Não quebra os raios pálidos e frios
O sol resplandecente.
Vês? Lá ao fundo o vale árido e seco
Abre-se, como um leito mortuário;
Espera-te o silêncio da planície,
Como um frio sudário.
Desce. Virá um dia em que mais bela,
Mais alegre, mais cheia de harmonias,
Voltes a procurar a voz cadente
Dos teus primeiros dias.
Então coroarás a ingênua fronte
Das flores da manhã, — e ao monte agreste,
Como a noiva fantástica dos ermos,
Irás, musa celeste!
Então, nas horas solenes
Em que o místico himeneu
Une em abraço divino
Verde a terra, azul o céu;
Quando, já finda a tormenta
Que a natureza enlutou,
Bafeja a brisa suave
Cedros que o vento abalou;
E o rio, a árvore e o campo,
A areia, a face do mar,
Parecem, como um concerto,
Palpitar, sorrir, orar;
Então sim, alma de poeta,
Nos teus sonhos cantarás
A glória da natureza
A ventura, o amor e a paz!
Ah! mas então será mais alto ainda;
Lá onde a alma do vate
Possa escutar os anjos,
E onde não chegue o vão rumor dos homens;
Lá onde, abrindo as asas ambiciosas,
Possa adejar no espaço luminoso,
Viver de luz mais viva e de ar mais puro,
Fartar-se do infinito!
Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia,
E deixa ao eco dos sagrados ermos
A última harmonia.
LÚCIA
1860
(Alfred de Musset)
Nós estávamos sós; era de noite;
Ela curvara a fronte, e a mão formosa,
Na embriaguez da cisma,
Tênue deixava errar sobre o teclado;
Era um murmúrio; parecia a nota
De aura longínqua a resvalar nas balças
E temendo acordar a ave no bosque;
Em torno respiravam as boninas
Das noites belas as volúpias mornas;
Do parque os castanheiros e os carvalhos
Brando embalavam orvalhados ramos;
Ouvíamos a noite; entrefechada,
A rasgada janela
Deixava entrar da primavera os bálsamos;
A várzea estava erma e o vento mudo;
Na embriaguez da cisma a sós estávamos
E tínhamos quinze anos!
Lúcia era loira e pálida;
Nunca o mais puro azul de um céu profundo
Em olhos mais suaves refletiu-se.
Eu me perdia na beleza dela,
E aquele amor com que eu a amava — e tanto! —
Era assim de um irmão o afeto casto,
Tanto pudor nessa criatura havia!
Nem um som despertava em nossos lábios;
Ela deixou as suas mãos nas minhas;
Tíbia sombra dormia-lhe na fronte,
E a cada movimento — na minh’alma
Eu sentia, meu Deus, como fascinam
Os dous signos de paz e de ventura:
Mocidade da fronte
E primavera d’alma.
A lua levantada em céu sem nuvens
Com uma onda de luz veio inundá-la;
Ela viu sua imagem nos meus olhos,
Um riso de anjo desfolhou nos lábios
E murmurou um canto.
........................................
Filha da dor, ó lânguida harmonia!
Língua que o gênio para amor criara —
E que, herdara do céu, nos deu a Itália!
Língua do coração — onde alva idéia,
— Virgem medrosa da mais leve sombra, —
Passa envolta num véu e oculta aos olhos!
Que ouvirá, que dirá nos teus suspiros
Nascidos do ar, que ele respira — o infante?
Vê-se um olhar, uma lágrima na face,
O resto é um mistério ignoto às turbas,
Como o do mar, da noite e das florestas!
Estávamos a sós e pensativos.
Eu contemplava-a. Da canção saudosa
Como que em nós estremecia um eco.
Ela curvou a lânguida cabeça...
Pobre criança! — no teu seio acaso
Desdêmona gemia? Tu choravas,
E em tua boca consentias triste
Que eu depusesse estremecido beijo;
Guardou-a a tua dor ciosa e muda:
Assim, beijei-te descorada e fria,
Assim, depois tu resvalaste à campa;
Foi, com a vida, tua morte um riso,
E a Deus voltaste no calor do berço.
Doces mistérios do singelo teto
Onde a inocência habita;
Cantos, sonhos d’amor, gozos de infante,
E tu, fascinação doce e invencível,
Que à porta já de Margarida, — o Fausto
Fez hesitar ainda,
Candura santa dos primeiros anos
Onde parais agora?
Paz à tua alma, pálida menina!
Ermo de vida, o piano em que tocavas
Já não acordará sob os teus dedos!
O DILÚVIO[i]
1863
E caiu a chuva sobre a terra quarenta
dias e quarenta noites.
GÊNESIS — cap.7, vers. 12
Do sol ao raio esplêndido,
Fecundo, abençoado,
A terra exausta e úmida
Surge, revive já;
Que a morte inteira e rápida
Dos filhos do pecado
Pôs termo à imensa cólera
Do imenso Jeová!
Que mar não foi! que túmidas
As águas não rolavam!
Montanhas e planícies
Tudo tornou-se um mar;
E nesta cena lúgubre
Os gritos que soavam
Era um clamor uníssono
Que a terra ia acabar.
Em vão, ó pai atônito,
Ao seio o filho estreitas;
Filhos, esposos, míseros,
Em vão tentais fugir!
Que as águas do dilúvio
Crescidas e refeitas,
Vão da planície aos píncaros
Subir, subir, subir!
Só, como a idéia única
De um mundo que se acaba,
Erma, boiava intrépida,
A arca de Noé;
Pura das velhas nódoas
De tudo o que desaba,
Leva no seio incólumes
A virgindade e a fé.
Lá vai! Que um vento alígero,
Entre os contrários ventos,
Ao lenho calmo e impávido
Abre caminho além...
Lá vai ! Em torno angústias,
Clamores e lamentos;
Dentro a esperança, os cânticos,
A calma, a paz e o bem.
Cheio de amor, solícito,
O olhar da divindade,
Vela os escapos náufragos
Da imensa aluvião.
Assim, por sobre o túmulo
Da extinta humanidade
Salva-se um berço; o vínculo
Da nova criação.
Íris, da paz o núncio,
O núncio do concerto,
Riso do Eterno em júbilo,
Nuvens do céu rasgou;
E a pomba, a pomba mística,
Voltando ao lenho aberto,
Do arbusto da planície
Um ramo despencou.
Ao sol e às brisas tépidas
Respira a terra um hausto,
Viçam de novo as árvores,
Brota de novo a flor;
E ao som de nossos cânticos,
Ao fumo do holocausto
Desaparece a cólera
Do rosto do Senhor.
FÉ
1863
Mueveme enfin tu amor de tal manera
Que aunque no hubiera cielo yo te amara
As orações dos homens
Subam eternamente aos teus ouvidos;
Eternamente aos teus ouvidos soem
Os cânticos da terra.
No turvo mar da vida
Onde os parcéis do crime a alma naufraga,
A derradeira bússola nos seja,
Senhor, tua palavra.
A melhor segurança
Da nossa íntima paz, Senhor, é esta;
Esta a luz que há de abrir à estância eterna
O fúlgido caminho.
Ah! feliz o que pode,
No extremo adeus às cousas deste mundo,
Quando a alma, despida de vaidade,
Vê quanto vale a terra;
Quando das glórias frias
Que o tempo dá e o mesmo tempo some,
Despida já, — os olhos moribundos
Volta às eternas glórias;
Feliz o que nos lábios,
No coração, na mente põe teu nome,
E só por ele cuida entrar cantando
No seio do infinito.
A CARIDADE
1861
Ela tinha no rosto uma expressão tão calma
Como o sono inocente e primeiro de uma alma
Donde não se afastou ainda o olhar de Deus;
Uma serena graça, uma graça dos céus,
Era-lhe o casto, o brando, o delicado andar,
E nas asas da brisa iam-lhe a ondear
Sobre o gracioso colo as delicadas tranças.
Levava pelas mãos duas gentis crianças.
Ia caminho. A um lado ouve magoado pranto.
Parou. E na ansiedade ainda o mesmo encanto
Descia-lhe às feições. Procurou. Na calçada
À chuva, ao ar, ao sol, despida, abandonada
A infância lacrimosa, a infância desvalida,
Pedia leito e pão, amparo, amor, guarida.
E tu, ó caridade, ó virgem do Senhor,
No amoroso seio as crianças tomaste,
E entre beijos — só teus — o pranto lhes secaste
Dando-lhes pão, guarida, amparo, leito e amor.
A JOVEM CATIVA[ii]
1861
(André Chenier)
— “Respeita a foice a espiga que desponta;
Sem receio ao lagar o tenro pâmpano
Bebe no estio as lágrimas da aurora;
Jovem e bela também sou; turvada
A hora presente de infortúnio e tédio
Seja embora; morrer não quero ainda!
De olhos secos o estóico abrace a morte;
Eu choro e espero; ao vendaval que ruge
Curvo e levanto a tímida cabeça.
Se há dias maus, também os há felizes!
Que mel não deixa um travo de desgosto?
Que mar não incha a um temporal desfeito?
Tu, fecunda ilusão, vives comigo.
Pesa em vão sobre mim cárcere escuro,
Eu tenho, eu tenho as asas da esperança:
Escapa da prisão do algoz humano,
Nas campinas do céu, mais venturosa,
Mais viva canta e rompe a filomela.
Deve acaso morrer? Tranqüila durmo,
Tranqüila velo; e a fera do remorso
Não me perturba na vigília ou sono;
Terno afago me ri nos olhos todos
Quando apareço, e as frontes abatidas
Quase reanima um desusado júbilo.
Desta bela jornada é longe o termo.
Mal começo; e dos olmos do caminho
Passei apenas os primeiros olmos.
No festim em começo da existência
Um só instante os lábios meus tocaram
A taça em minhas mãos ainda cheia.
Na primavera estou, quero a colheita
Ver ainda, e bem como o rei dos astros,
De sazão em sazão findar meu ano.
Viçosa sobre a haste, honra das flores,
Hei visto apenas da manhã serena
Romper a luz, — quero acabar meu dia.
Morte, tu podes esperar; afasta-te!
Vai consolar os que a vergonha, o medo,
O desespero pálido devora.
Pales inda me guarda um verde abrigo,
Ósculos o amor, as musas harmonias;
Afasta-te, morrer não quero ainda!”—
Assim, triste e cativa, a minha lira
Despertou escutando a voz magoada
De uma jovem cativa; e sacudindo
O peso de meus dias langorosos,
Acomodei à branda lei do verso
Os acentos da linda e ingênua boca.
Sócios meus de meu cárcere, estes cantos
Farão a quem os ler buscar solícito
Quem a cativa foi; ria-lhe a graça
Na ingênua fronte, nas palavras meigas;
De um termo à vinda há de tremer, como ela,
Quem aos seus dias for casar seus dias.
NO LIMIAR
1863
Caía a tarde. Do infeliz à porta,
Onde mofino arbusto aparecia,
De tronco seco e de folhagem morta,
Ele que entrava e Ela que saía
Um instante pararam; um instante
Ela escutou o que Ele lhe dizia;
— “Que fizeste? Teu gesto insinuante
Que lhe ensinou? Que fé lhe entrou no peito
Ao mago som da tua voz amante?
“Quando lhe ia o temporal desfeito
De que raio de sol o mantiveste?
E de que flores lhe forraste o leito?”
Ela, volvendo o olhar brando e celeste,
Disse: “— Varre-lhe a alma desolada,
Que nem um ramo, uma só flor lhe reste!
“Torna-lhe, em vez da paz abençoada,
Uma vida de dor e de miséria,
Uma morte contínua e angustiada.
“Essa é a tua missão torva e funérea.
Eu procurei no lar do infortunado
Dos meus olhos verter-lhe a luz etérea.
“Busquei fazer-lhe um leito semeado
De rosas festivais, onde tivesse
Um sono sem tortura nem cuidado.
“E por que o céu que mais se lhe enegrece,
Tivesse algum reflexo de ventura
Onde o cansado olhar espairecesse,
“Uma réstia de luz suave e pura
Fiz-lhe descer à erma fantasia,
De mel ungi-lhe o cálix da amargura.
“Foi tudo vão, — Foi tudo vã porfia,
A aventura não veio. A tua hora
Chega na hora que termina o dia.
“Entra”. — E o virgíneo rosto que descora
Nas mãos esconde. Nuvens que correram
Cobrem o céu que o sol já mal colora.
Ambos, com um olhar se compreenderam.
Um penetrou no lar com passo ufano;
Outra tomou por um desvio. Eram:
Ela a Esperança, Ele o Desengano.
ASPIRAÇÃO
1862
A F. X. DE NOVAIS
Qu’aperçois-tu, mon âme? Au fond, n’est-ce-pas Dieu?
Tu vais à lui...
V. DE LAPRADE
Sinto que há na minh’alma um vácuo imenso e fundo,
E desta meia morte o frio olhar do mundo
Não vê o que há de triste e de real em mim;
Muita vez, ó poeta, a dor é casta assim;
Refolha-se, não diz no rosto o que ela é,
E nem que o revelasse, o vulgo não põe fé
Nas tristes comoções da verde mocidade,
E responde sorrindo à cruel realidade.
Não assim tu, ó alma, ó coração amigo;
Nu, como a consciência, abro-me aqui contigo;
Tu que corres, como eu, na vereda fatal
Em busca do mesmo alvo e do mesmo ideal.
Deixemos que ela ria, a turba ignara e vã;
Nossas almas a sós, como irmão junto a irmã,
Em santa comunhão, sem cárcere, nem véus,
Conversarão no espaço e mais perto de Deus.
Deus quando abre ao poeta as portas desta vida
Não lhe depara o gozo e a glória apetecida;
Traja de luto a folha em que lhe deixa escritas
A suprema saudade e as dores infinitas.
Alma errante e perdida em um fatal desterro,
Neste primeiro e fundo e triste limbo do erro,
Chora a pátria celeste, o foco, o cetro, a luz,
Onde o anjo da morte, ou da vida, o conduz,
No dia festival do grande livramento;
Antes disso, a tristeza, o sombrio tormento,
O torvo azar, e mais, a torva solidão,
Embaciam-lhe n’alma o espelho da ilusão.
O poeta chora e vê perderem-se esfolhadas
Da verde primavera as flores tão cuidadas;
Rasga, como Jesus, no caminho das dores,
Os lassos pés; o sangue umedece-lhe as flores
Mortas ali, — e a fé, a fé mãe, a fé santa,
Ao vento impuro e mau que as ilusões quebranta,
Na alma que ali se vai muitas vezes vacila...
Oh! feliz o que pode, alma alegre e tranqüila,
A esperança vivaz e as ilusões floridas,
Atravessar cantando as longas avenidas
Que levam do presente ao secreto porvir!
Feliz esse! Esse pode amar, gozar, sentir,
Viver enfim! A vida é o amor, é a paz,
É a doce ilusão e a esperança vivaz;
Não esta do poeta, esta que Deus nos pôs
Nem como inútil fardo, antes como um algoz.
O poeta busca sempre o almejado ideal...
Triste e funesto afã! tentativa fatal!
Nesta sede de luz, nesta fome de amor,
O poeta corre à estrela, à brisa, ao mar, à flor;
Quer ver-lhe a luz na luz da estrela peregrina,
Quer–lhe o cheiro aspirar na rosa da campina,
Na brisa o doce alento, a voz na voz do mar,
Ó inútil esforço! Ó ímprobo lutar!
Em vez da luz, do aroma, ou do alento ou da voz,
Acha-se o nada, o torvo, o impassível algoz!
Onde te escondes, pois, ideal da ventura?
Em que canto da terra, em que funda espessura
Foste esconder, ó fada, o teu esquivo lar?
Dos homens esquecido, em ermo recatado,
Que voz do coração, que lágrima, que brado
Do sono em que ora estás te virá despertar?
A esta sede de amar só Deus conhece a fonte?
Jorra ele ainda além deste fundo horizonte
Que a mente não calcula, e onde se perde o olhar?
Que asas nos deste, ó Deus, para transpor o espaço?
Ao ermo do desterro inda nos prende um laço:
Onde encontrar a mão que o venha desatar?
Creio que só em ti há essa luz secreta,
Essa estrela polar dos sonhos do poeta,
Esse alvo, esse termo, esse mago ideal;
Fonte de todo o ser e fonte da verdade,
Nós vamos para ti, e em tua imensidade
É que havemos de ter o repouso final.
É triste quando a vida, erma, como esta, passa,
E quando nos impele o sopro da desgraça
Longe de ti, ó Deus, e distante do amor!
Mas guardemos, poeta, a melhor esperança:
Sucederá a glória à salutar provança:
O que a terra não deu, dar-nos-á o Senhor!
CLEÓPATRA[iii]
Canto de um escravo
(Mme. Emile de Girardin)
Filha pálida da noite,
Nume feroz de inclemência,
Sem culto nem reverência,
Nem crentes e nem altar,
A cujos pés descarnados...
A teus negros pés, ó morte!
Só enjeitados da sorte
Ousam frios implorar;
Toma a tua foice aguda,
A arma dos teus furores;
Venho c’roado de flores
Da vida entregar-te a flor;
É um feliz que te implora
Na madrugada da vida,
Uma cabeça perdida
E perdida por amor.
Era rainha e formosa,
Sobre cem povos reinava,
E tinha uma turba escrava
Dos mais poderosos reis.
Eu era apenas um servo,
Mas amava-a tanto, tanto,
Que nem tinha um desencanto
Nos seus desprezos cruéis.
Vivia distante dela
Sem falar-lhe nem ouvi-la;
Só me vingava em segui-la
Para a poder contemplar;
Era uma sombra calada
Que oculta força levava,
E no caminho a aguardava
Para saudá-la e passar.
Um dia veio ela às fontes
Ver os trabalhos... não pude,
Fraqueou minha virtude,
Caí-lhe tremendo aos pés.
Todo o amor que me devora,
Ó Vênus, o íntimo peito,
Falou naquele respeito,
Falou naquela mudez.
Só lhe conquistam amores
O herói, o bravo, o triunfante;
E que coroa radiante
Tinha eu para oferecer?
Disse uma palavra apenas
Que um mundo inteiro continha:
— Sou um escravo, rainha,
Amo-te e quero morrer.
E a nova Ísis que o Egito
Adora curvo e humilhado
O pobre servo curvado
Olhou lânguida a sorrir;
Vi Cleópatra, a rainha,
Tremer pálida em meu seio;
Morte, foi-se-me o receio,
Aqui estou, podes ferir.
Vem! que as glórias insensatas
Das convulsões mais lascivas,
As fantasias mais vivas,
De mais febre e mais ardor,
Toda a ardente ebriedade
Dos seus reais pensamentos,
Tudo gozei uns momentos
Na minha noite de amor.
Pronto estou para a jornada
Da estância escura e escondida;
O sangue, o futuro, a vida
Dou-te, ó morte, e vou morrer;
Uma graça única — peço
Como última esperança:
Não me apagues a lembrança
Do amor que me fez viver.
Beleza completa e rara
Deram-lhe os numes amigos;
Escolhe dos teus castigos
O que infundir mais terror,
Mas por ela, só por ela
Seja o meu padecimento
E tenha o intenso tormento
Na intensidade do amor.
Deixa alimentar teus corvos
Em minhas carnes rasgadas,
Venham rochas despenhadas
Sobre o meu corpo rolar,
Mas não me tires dos lábios
Aquele nome adorado,
E ao meu olhar encantado
Deixa essa imagem ficar.
Posso sofrer os teus golpes
Sem murmurar da sentença;
A minha ventura é imensa
E foi em ti que eu a achei;
Mas não me apagues na fronte
Os sulcos quentes e vivos
Daqueles beijos lascivos
Que já me fizeram rei.
OS ARLEQUINS[iv]
Sátira
1864
Que deviendra dans l’éternité l’âme d’un
homme qui a fait Polichinelle toute sa vie?
MME. DE STAËL
Musa, depõe a lira!
Cantos de amor, cantos de glória esquece!
Novo assunto aparece
Que o gênio move e a indignação inspira.
Esta esfera é mais vasta,
E vence a letra nova a letra antiga!
Musa, toma a vergasta,
E os arlequins fustiga!
Como aos olhos de Roma,
— Cadáver do que foi, pávido império
De Caio e de Tibério, —
O filho de Agripina ousado assoma;
E a lira sobraçando,
Ante o povo idiota e amedrontado,
Pedia, ameaçando,
O aplauso acostumado;
E o povo que beijava
Outrora ao deus Calígula o vestido,
De novo submetido
Ao régio saltimbanco o aplauso dava.
E tu, tu não te abrias,
Ó céu de Roma, à cena degradante!
E tu, tu não caías,
Ó raio chamejante!
Tal na história que passa
Neste de luzes século famoso,
O engenho portentoso
Sabe iludir a néscia populaça;
Não busca o mal tecido
Canto de outrora; a moderna insolência
Não encanta o ouvido,
Fascina a consciência!
Vede; o aspecto vistoso,
O olhar seguro, altivo e penetrante,
E certo ar arrogante
Que impõe com aparências de assombroso;
Não vacila, não tomba,
Caminha sobre a corda firme e alerta;
Tem consigo a maromba
E a ovação é certa.
Tamanha gentileza,
Tal segurança, ostentação tão grande,
A multidão expande
Com ares de legítima grandeza.
O gosto pervertido
Acha o sublime neste abatimento,
E dá-lhe agradecido
O louro e o monumento.
Do saber, da virtude,
Logra fazer, em prêmio dos trabalhos,
Um manto de retalhos
Que à consciência universal ilude.
Não cora, não se peja
Do papel, nem da máscara indecente,
E ainda inspira inveja
Esta glória insolente!
Não são contrastes novos;
Já vêm de longe; e de remotos dias
Tornam em cinzas frias
O amor da pátria e as ilusões dos povos.
Torpe ambição sem peias
De mocidade em mocidade corre,
E o culto das idéias
Treme, convulsa e morre.
Que sonho apetecido
Leva o ânimo vil a tais empresas?
O sonho das baixezas:
Um fumo que se esvai e um vão ruído;
Uma sombra ilusória
Que a turba adora ignorante e rude;
E a esta infausta glória
Imola-se a virtude.
A tão estranha liça
Chega a hora por fim do encerramento,
E lá soa o momento
Em que reluz a espada da justiça.
Então, musa da história,
Abres o grande livro, e sem detença
À envilecida glória
Fulminas a sentença.
AS ONDINAS
(Noturno de H. Heine)
Beijam as ondas a deserta praia;
Cai do luar a luz serena e pura;
Cavaleiro na areia reclinado
Sonha em hora de amor e de ventura.
As ondinas, em nívea gaze envoltas,
Deixam do vasto mar o seio enorme;
Tímidas vão, acercam-se do moço,
Olham-se e entre si murmuram: “Dorme!”
Uma — mulher enfim — curiosa palpa
De seu penacho a pluma flutuante,
Outra procura decifrar o mote
Que traz escrito o escudo rutilante.
Esta, risonha, olhos de vivo fogo,
Tira-lhe a espada límpida e lustrosa,
E, apoiando-se nela, a contemplá-la
Perde-se toda em êxtase amorosa.
Fita-lhe aquela namorados olhos,
E, após girar-lhe em torno embriagada,
Diz: “Que formoso estás, ó flor da guerra,
Quanto te eu dera por te ser amada!”
Uma, tomando a mão ao cavaleiro,
Um beijo imprime-lhe; outra, duvidosa,
Audaz por fim, a boca adormecida
Casa num beijo à boca desejosa.
Faz-se de sonso o jovem; caladinho
Finge do sono o plácido desmaio,
E deixa-se beijar pelas ondinas
Da branca lua ao doce e brando raio.
MARIA DUPLESSIS[v]
(A. Dumas Filho)
1859
Fiz promessa, dizendo-te que um dia
Eu iria pedir-te o meu perdão;
Era dever ir abraçar primeiro
A minha doce e última afeição.
E quando ia apagar tanta saudade
Encontrei já fechada a tua porta;
Soube que uma recente sepultura
Muda fechava a tua fronte morta.
Soube que, após um longo sofrimento,
Agravara-se a tua enfermidade;
Viva esperança que eu nutria ainda
Despedaçou cruel fatalidade.
Vi, apertado de fatais lembranças,
A escada que eu subira tão contente;
E as paredes, herdeiras do passado,
Que vêm falar dos mortos ao vivente.
Subi e abri com lágrimas a porta
Que ambos abrimos a chorar um dia;
E evoquei o fantasma da ventura
Que outrora um céu de rosas nos abria
Sentei-me à mesa, onde contigo outrora
Em noites belas de verão ceava;
Desses amores plácidos e amenos
Tudo ao meu triste coração falava.
Fui ao teu camarim, e vi-o ainda
Brilhar com o esplendor das mesmas cores;
E pousei meu olhar nas porcelanas
Onde morriam inda algumas flores...
Vi aberto o piano em que tocavas;
Tua morte o deixou mudo e vazio,
Como deixa o arbusto sem folhagem,
Passando pelo vale, o ardente estio.
Tornei a ver o teu sombrio quarto
Onde estava a saudade de outros dias...
Um raio iluminava o leito ao fundo
Onde, rosa de amor, já não dormias.
As cortinas abri que te amparavam
Da luz mortiça da manhã, querida,
Para que um raio depusesse um toque
De prazer em tua fronte adormecida.
Era ali que, depois da meia-noite,
Tanto amor nós sonhávamos outrora;
E onde até o raiar da madrugada
Ouvíamos bater hora por hora!
Então olhavas tu a chama ativa
Correr ali no lar, como a serpente;
É que o sono fugia de teus olhos
Onde já te queimava a febre ardente.
Lembras-te agora, nesse mundo novo,
Dos gozos desta vida em que passaste?
Ouves passar, no túmulo em que dormes,
A turba dos festins que acompanhaste?
A insônia, como um verme em flor que murcha,
De contínuo essas faces desbotava;
E pronta para amores e banquetes
Conviva e cortesã te preparava.
Hoje, Maria, entre virentes flores,
Dormes em doce e plácido abandono;
A tua alma acordou mais bela e pura,
E Deus pagou-te o retardado sono.
Pobre mulher! em tua última hora
Só um homem tiveste à cabeceira;
E apenas dous amigos dos de outrora
Foram levar-te à cama derradeira.
AS ROSAS[vi]
A Caetano Filgueiras
Rosas que desabrochais,
Como os primeiros amores,
Aos suaves resplendores
Matinais;
Em vão ostentais, em vão,
A vossa graça suprema;
De pouco vale; é o diadema
Da ilusão.
Em vão encheis de aroma o ar da tarde;
Em vão abris o seio úmido e fresco
Do sol nascente aos beijos amorosos;
Em vão ornais a fronte à meiga virgem;
Em vão, como penhor de puro afeto,
Como um elo das almas,
Passais do seio amante ao seio amante;
Lá bate a hora infausta
Em que é força morrer; as folhas lindas
Perdem o viço da manhã primeira,
As graças e o perfume.
Rosas, que sois então? — Restos perdidos,
Folhas mortas que o tempo esquece, e espalha
Brisa do inverno ou mão indiferente.
Tal é o vosso destino,
Ó filhas da natureza;
Em que vos pese à beleza,
Pereceis;
Mas, não... Se a mão de um poeta
Vos cultiva agora, ó rosas,
Mais vivas, mais jubilosas,
Floresceis.
OS DOUS HORIZONTES
1863
A M. Ferreira Guimarães
Dous horizontes fecham nossa vida:
Um horizonte, — a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, — a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, — sempre escuro, —
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.
Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo das andorinhas,
A onda viva e os rosais;
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.
Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.
No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, — tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.
Que cismas, homem? — Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? — Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.
Dous horizontes fecham nossa vida.
MONTE ALVERNE[vii]
1858
Ao padre-mestre A. J. da Silveira Sarmento
Morreu! — Assim baqueia a estátua erguida
No alto do pedestal;
Assim o cedro das florestas virgens
Cai pelo embate do corcel dos ventos
Na hora do temporal...
Morreu! — Fechou-se o pórtico sublime
De um paço secular;
Da mocidade a romaria augusta
Amanhã ante as pálidas ruínas
Há de vir meditar!
Tinha na fronte de profeta ungido
A inspiração do céu.
Pela escada do púlpito moderno
Subiu outrora festival mancebo
E Bossuet desceu!
Ah! que perdeste num só homem, claustro!
Era uma augusta voz;
Quando essa boca divinal se abria,
Mais viva a crença dissipava n’alma
Uma dúvida atroz!
Era tempo? — a argila se alquebrava
Num áspero crisol;
Corrido o véu pelos cansados olhos
Nem via o sol que lhe contava os dias,
Ele — fecundo sol!
A doença o prendia ao leito infausto
Da derradeira dor;
A terra reclamava o que era terra,
E o gelo dos invernos coroava
A fronte do orador.
Mas lá dentro o espírito fervente
Era como um fanal;
Não, não dormia nesse régio crânio
A alma gentil do Cícero dos púlpitos,
— Cuidadosa Vestal!
Era tempo! — O romeiro do deserto
Pára um dia também;
E ante a cidade que almejou por anos
Desdobra um riso nos doridos lábios,
Descansa e passa além!
Caíste! — Mas foi só a argila, o vaso,
Que o tempo derrubou;
Não todo à essa foi teu vulto olímpico;
Como deixa o cometa uma áurea cauda,
A lembrança ficou!
O que hoje resta era a terrena púrpura
Daquele gênio-rei;
A alma voou ao seio do infinito,
Voltou à pátria das divinas glórias
O apóstolo da lei.
Pátria, curva o joelho ante esses restos
Do orador imortal!
Por esses lábios não falava um homem.
Era uma geração, um século inteiro,
Grande, monumental!
Morreu! — Assim baqueia a estátua erguida
No alto do pedestal;
Assim o cedro das florestas virgens
Cai pelo embate do corcel dos ventos
Na hora do temporal!
AS VENTOINHAS
1863
Com seus olhos vaganaus,
Bons de dar, bons de tolher.
SÁ DE MIRANDA
A mulher é um cata-vento,
Vai ao vento,
Vai ao vento que soprar;
Como vai também ao vento
Turbulento,
Turbulento e incerto o mar.
Sopra o sul; a ventoinha
Volta asinha,
Volta asinha para o sul;
Vem taful; a cabecinha
Volta asinha,
Volta asinha ao meu taful.
Quem lhe puser confiança,
De esperança,
De esperança mal está;
Nem desta sorte a esperança
Confiança,
Confiança nos dará.
Valera o mesmo na areia
Rija ameia,
Rija ameia construir;
Chega o mar e vai a ameia
Com a areia,
Com a areia confundir.
Ouço dizer de umas fadas
Que abraçadas,
Que abraçadas como irmãs,
Caçam almas descuidadas...
Ah! que fadas!
Ah que fadas tão vilãs!
Pois, como essas das baladas,
Umas fadas,
Umas fadas dentre nós,
Caçam, como nas baladas;
E são fadas,
E são fadas de alma e voz.
É que — como o cata-vento,
Vão ao vento,
Vão ao vento que lhes der;
Cedem três cousas ao vento:
Cata-vento,
Cata-vento, água e mulher.
ALPUJARRA[viii]
1862
Jaz em ruínas o torrão dos mouros;
Pesados ferros o infiel arrasta;
Inda resiste a intrépida Granada;
Mas em Granada a peste assola os povos.
Cum punhado de heróis sustenta a luta
Fero Almansor nas torres de Alpujarra;
Flutua perto a hispânica bandeira;
Há de o sol d’amanhã guiar o assalto.
Deu sinal, ao romper do dia, o bronze;
Arrasam-se trincheiras e muralhas;
No alto dos minaretes erguem-se as cruzes;
Do castelhano a cidadela é presa.
Só, e vendo as coortes destroçadas,
O valente Almansor após a luta
Abre caminho entre as inimigas lanças,
Foge e ilude os cristãos que o perseguiam.
Sobre as quentes ruínas do castelo,
Entre corpos e restos da batalha,
Dá um banquete o Castelhano, e as presas
E os despojos pelos seus reparte.
Eis que o guarda da porta fala aos chefes:
“Um cavaleiro, diz, de terra estranha
Quer falar-vos; — notícias importantes
Declara que vos traz, e urgência pede”.
Era Almansor, o emir dos Muçulmanos,
Que, fugindo ao refúgio que buscara,
Vem entregar-se às mãos do Castelhano,
A quem só pede conservar a vida.
“Castelhanos”, exclama, o emir vencido
No limiar do vencedor se prostra;
Vem professar a vossa fé e culto
E crer no verbo dos profetas vossos.
“Espalhe a fama pela terra toda
Que um árabe, que um chefe de valentes,
Irmão dos vencedores quis tornar-se,
E vassalo ficar de estranho cetro!”
Cala no ânimo nobre ao Castelhano
Um ato nobre... O chefe comovido,
Corre a abraçá-lo, e à sua vez os outros
Fazem o mesmo ao novo companheiro.
Às saudações responde o emir valente
Com saudações. Em cordial abraço
Aperta ao seio o comovido chefe,
Toma-lhe das mãos e pende-lhe dos lábios.
Súbito cai, sem forças, nos joelhos;
Arranca do turbante, e com mão trêmula
O enrola aos pés do chefe admirado,
E junto dele arrasta-se por terra.
Os olhos volve em torno e assombra a todos:
Tinha azuladas, lívidas as faces,
Torcidos lábios por feroz sorriso,
Injetados de sangue ávidos olhos.
“Desfigurado e pálido me vedes,
Ó infiéis! Sabeis o que vos trago?
Enganei-vos: eu volto de Granada,
E a peste fulminante aqui vos trouxe”.
Ria-se ainda — morto já — e ainda
Abertos tinha as pálpebras e os lábios;
Um sorriso infernal de escárnio impresso
Deixara a morte nas feições do morto.
Da medonha cidade os castelhanos
Fogem. A peste os segue. Antes que a custo
Deixado houvessem de Alpujarra a serra,
Sucumbiram os últimos soldados.
VERSOS A CORINA[ix]
[Fragmento de III]
Que valem glórias vãs? A glória, a melhor glória
É esta que nos orna a poesia da história;
É a glória do céu, e a glória do amor.
É Tasso eternizando a princesa Leonor;
É Lídia ornando a lira ao venusino Horácio;
É a doce Beatriz, flor e honra do Lácio,
Seguindo além da vida as viagens do Dante;
É do cantor do Gama o hino triste e amante
Levando à eternidade o amor de Catarina;
É o amor que une Ovídio à formosa Corina;
O de Cíntia a Propércio, o de Lésbia a Catulo;
O da divina Délia ao divino Tibulo.
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola;
Outra não há melhor.Se faltar esta esmola,
Corina, ao teu poeta, e se a doce ilusão,
Com que se alenta e vive o amante coração,
Deixar-lhe um dia o céu azul, tão tranqüilo,
Nenhuma glória mais há de nunca atraí-lo.
Irá longe do mundo e dos seus vãos prazeres,
Viver na solidão a vida de outros seres,
Vegetar como o arbusto, e murchar, como a flor,
Como um corpo sem alma ou alma sem amor.
EMBIRRAÇÃO[x]
(A Machado de Assis)
A balda alexandrina é poço imenso e fundo,
Onde poetas mil, flagelo deste mundo,
Patinham sem parar, chamando lá por mim.
Não morrerão, se um verso, estiradinho assim,
Da beira for do poço, extenso como ele é,
Levar-lhes grosso anzol; então eu tenho fé
Que volte um afogado, à luz da mocidade,
A ver no mundo seco a seca realidade.
Por eles, e por mim, receio, caro amigo;
Permite o desabafo aqui, a sós contigo,
Que à moda fazer guerra, eu sei quanto é fatal;
Nem vence o positivo o frívolo ideal;
Despótica em seu mando, é sempre fátua e vã,
E até da vã loucura a moda é prima-irmã:
Mas quando venha o senso erguer-lhe os densos véus,
Do verso alexandrino há de livrar-nos Deus.
Deus quando abre ao poeta as portas desta vida,
Não lhe depara o gozo e a glória apetecida;
E o triste, se morreu, deixando mal escritas
Em verso alexandrino histórias infinitas,
Vai ter lá noutra vida insípido desterro,
Se Deus, por compaixão, não dá perdão ao erro;
Fechado em quarto escuro, à noite não tem luz,
E se é cá do meu gosto o guarda que o conduz,
Debalde, imerso em pranto, implora o livramento;
Não torna a ser, aqui, das Musas o tormento;
Castigo alexandrino, eterna solidão,
Terá lá no desterro, em prêmio da ilusão;
Verá queimar, à noite, as rosas esfolhadas,
Que a moda lhe ofertara, e trouxe tão cuidadas,
E ao pé do fogo intenso, ardendo em cruas dores,
Verá que versos tais são galhos, não dão flores;
Que, lendo-os a pedido, a criatura santa,
A paciência lhe foge, a fé se lhe quebranta,
Se vai dum verso ao fim; depois... treme... vacila...
Dormindo, cai no chão; mais tarde, já tranqüila,
Sonha com verso-verso, e as ilusões floridas,
Risonhas, vem mostrar-lhe as largas avenidas
Que o longo verso-prosa oculta, do porvir!
Sonhando, ao menos, pode amar, gozar, sentir,
Que um sono alexandrino a deixa ali em paz,
Dormir... dormir... dormir... erguer-se, enfim, vivaz,
Bradando: “Clorofórmio! O gênio que te pôs.
A palma cede ao metro esguio, teu algoz!”
E aspiras, vate, assim, da glória ao ideal?
Triste e funesto afã!... tentativa fatal!
Nesta sede de luz, nesta fome de amor,
O poeta corre a estrela, à brisa, ao mar, à flor;
Quer ver-lhe a luz na luz da estrela peregrina,
Quer-lhe o aroma sentir na rosa da campina,
Na brisa o doce alento, a voz na voz do mar;
Ó inútil esforço! Ó é ímprobo luta!
Em vez da luz, do aroma, ou do alento, ou da voz,
O verso alexandrino, o impassível algoz!...
Não cantas a tristeza, e menos a ventura;
Que em vez do sabiá gemendo na espessura,
Imitarás, no canto, o grilo atrás do lar;
Mas desse estreito asilo, escuro e recatado,
Alegre hás de fugir, que erguendo altivo brado,
A lírica harmonia há de ir-te despertar!
Verás de novo aberta a copiosa fonte!
Da poesia verás tão lúcido o horizonte,
Que a mente não calcula, e onde se perde o olhar,
Que nas asas do gênio, a voar pelo espaço,
Da perna sacudindo o alexandrino laço,
Hás de a mão bendizer que o soube desatar.
Do precipício foge, e segue a luz secreta,
Essa estrela polar dos sonhos do poeta;
Mas, noutro verso, amigo, onde ao mago ideal
A música se ligue, o senso e a verdade;
— Num destes vai-se, a ler, da vida a imensidade,
Da sílaba primeira à sílaba final!
Meu Deus! Esta existência é transitória e passa;
Se fraco fui aqui, pecando por desgraça;
Se já não tenho jus ao vosso puro amor;
Se nem da salvação nutrir posso a esperança,
Quero em chamas arder, sofrer toda a provança:
— Ler verso alexandrino... Oh! isso não Senhor!
F.X. de Novaes
POSFÁCIO
CARTA AO DR. CAETANO FILGUEIRAS
Meu amigo. Agora que o leitor frio e severo pôde comparar o meu pobre livro com a tua crítica benévola e amiga, deixa-me dizer-te rapidamente duas palavras.
Recordaste os nossos amigos, poetas na adolescência, hoje idos para sempre dos nossos olhos e da glória que os esperava. Tão piedosa evocação será o paládio do meu livro, como o é a tua carta de recomendação.
Vai longe esse tempo. Guardo a lembrança dele, tão viva como a saudade que ainda sinto, mas já sem aquelas ilusões que o tornavam tão doce ao nosso espírito. O tempo não corre em vão para os que desde o berço foram condenados ao duelo infausto entre a aspiração e a realidade. Cada ano foi uma lufada que desprendeu da árvore da mocidade, não só uma alma querida, como uma ilusão consoladora.
A tua pena encontrou expressões de verdade e de sentimento para descrever as nossas confabulações de poetas, tão serenas e tão íntimas.
Tiveste o condão de transportar-me a essas práticas da adolescência poética; lendo a tua carta pareceu-me ouvir aqueles que hoje repousam nos seus túmulos, e ouvindo dentro de mim um ruído de aplauso sincero às tuas expressões, afigurava-se-me que eram eles que te aplaudiam, como no outro tempo, na tua pequena e faceira salinha.
Essa recordação bastava para felicitar o meu livro. Mas onde não vai a amizade e a crítica benevolente? Foste além: — traduziste para o papel as tuas impressões que eu, — mesmo despido desta modéstia oficial dos preâmbulos e dos epílogos, — não posso deixar de aceitar como parciais e filhas do coração. Bem sabes como o coração pode levar a injustiças involuntárias, apesar de todo o empenho em manter uma imparcialidade perfeita.
Não, o meu livro não vai aparecer como o resultado de uma vocação superior. Confesso o que me falta que é para ter direito de reclamar o pouco que possuo. O meu livro é esse pouco que tu caracterizaste tão bem atribuindo os meus versos a um desejo secreto de expansão; não curo de escolas ou teorias; no culto das musas não sou um sacerdote, sou um fiel obscuro da vasta multidão dos fiéis. Tal sou eu, tal deve ser apreciado o meu livro; nem mais, nem menos.
Foi assim que eu cultivei a poesia. Se cometi um erro, tenho cúmplices, tu e tantos outros, mortos, e ainda vivos. Animaram-me, e bem sabes o que vale uma animação para os infantes da poesia. Muitas vezes é a sua perdição. Sê-lo-ia para mim? O público que responda.
Não incluí neste volume todos os meus versos. Faltou-me o tempo para coligir e corrigir muitos deles, filhos das primeiras incertezas. Vão porém todos, ou quase todos os versos de recente data. Se um escrúpulo de não acumular muita cousa sem valor me não detivesse, este primeiro volume sairia menos magro do que é; entre os dois inconvenientes preferi o segundo.
Como sabes, publicando os meus versos cedo às solicitações de alguns amigos, a cuja frente te puseste. Devo declará-lo, para que não recaia sobre mim exclusivamente a responsabilidade do livro. Denuncio os cúmplices para que sofram a sentença.
Não te bastou animar-me a realizar esta publicação; a tua lealdade quis que tomasses parte no cometimento, e com a tua própria firma selaste a tua confissão. Agradeço-te o ato e o modo por que o praticaste. E se a tua bela carta não puder salvar o meu livro de um insucesso fatal, nem por isso deixarei de estender-te amigável e fraternalmente a mão.
MACHADO DE ASSIS
RIO DE JANEIRO, 1° DE SETEMBRO
DE 1864
* Os versos que se seguem, na primeira edição das “Crisálidas”, faziam parte da poesia “Versos a Corina”, e vinham precedidos de três asteriscos indicativos de pausa, após a série de quadras que termina:
És tu a maior glória de minha alma,
Se o meu amor profundo não te alcança,
De que me servirá outra esperança?
Que glória tirarei de alheia palma?
*
* *
Que valem glórias vãs? A glória, a melhor glória,
É esta que nos orna a poesia da história;
É a glória do céu, e a glória do amor.
É Tasso eternizando a princesa Leonor;
É Lívia ornando a lira ao venusino Horácio;
É a doce Beatriz, flor e honra do Lácio,
Segundo além da vida as viagens do Dante;
É do doce cantor do Gama o hino triste a amante
Levando à eternidade o amor de Catarina;
É o amor que une Ovídio à formosa Corina;
O de Cíntia a Propércio, o de Lêsbia a Catulo;
O da divida Délia ao divino Tibulo.
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola;
Outra não há melhor. Se faltar esta esmola,
Corina, ao teu poeta, e se a doce ilusão,
Com que alenta e vive o amante coração,
Deixar-lhe um dia o céu tão azul, tão tranqüilo,
Nenhuma glória mais há de nunca atraí-lo.
Irá longe do mundo e dos seus vãos prazeres,
Viver na solidão a vida de outros seres,
Vegetar como arbusto, e murchar, como a flor,
Como um corpo sem alma ou alma sem amor.
Entre estes versos encontra-se o célebre
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola,
que os acadêmicos escolheram para ser exarado no frontispício da Academia de Letras por baixo da estátua do autor de “Quincas Borba”.
[i] E ao som dos nossos cânticos; etc.
Estes versos são postos na boca de uma hebréia. Foram recitados no Ateneu Dramático pela eminente artista D. Gabriela da Cunha, por ocasião da exibição de um quadro do Cenógrafo João Caetano, representando o dilúvio universal.
[ii] Foi com alguma hesitação que eu fiz inserir no volume estes versos. Já bastava o arrojo de traduzir a maviosa elegia de Chenier. Poderia eu conservar a grave simplicidade do original? A animação de um amigo decidiu-me a não imolar o trabalho já feito; aí fica a poesia; se me sair mal, corre por conta do amigo anônimo.
[iii] Este canto é tirado de uma tragédia de M.me Emile de Girardin. O escravo, tendo visto coroado o seu amor pela rainha do Egito, é condenado a morrer. Com a taça em punho, entoa o belo canto de que fiz esta mal amanhada paráfrase.
[iv] Esta poesia foi recitada no Clube Fluminense, num sarau literário. Pareceu então que eu fazia sátira pessoal. Não fiz. A sátira abrange uma classe que se encontra em todas as cenas políticas, — é a classe daqueles que, como se exprime um escritor, depois de darem ao povo todas as insígnias da realeza, quiseram completar-lha, fazendo-se eles próprios os bobos do povo.
[v] Em 1858, eu e o meu finado amigo F. Gonçalves Braga resolvemos fazer uma tradução livre ou paráfrase destes versos de Alexandre Dumas filho. No dia aprazado apresentamos e confrontamos o nosso trabalho. A tradução dele foi publicada, não me lembro em que jornal.
[vi] ............. Se a mão de um poeta
Vos cultiva agora, ó rosas, etc.
O Dr. Caetano Filgueiras trabalha há tempos num livro de que são as rosas o título e o objeto. É um trabalho curioso de erudição e de fantasia; o assunto requer, na verdade, um poeta e um erudito. É a isso que aludem estes últimos versos.
[vii] A dedicatória desta poesia ao padre-mestre Silveira Sarmento é um justo tributo pago ao talento, e à amizade que sempre me votou este digno sacerdote. Pareceu-me que não podia fazer nada mais próprio do que falar-lhe de Monte Alverne, que ele admirava, como eu.
Não há nesta poesia só um tributo de amizade e de admiração: há igualmente a lembrança de um ano de minha vida. O padre-mestre, alguns anos mais velho do que eu, fazia-se nesse tempo um modesto preceptor e um agradável companheiro. Circunstâncias da vida nos separaram até hoje.
[viii] Este canto é extraído de um poema do poeta polaco Mickiewicz, denominado Conrado Wallenrod. Não sei como corresponderá ao original; eu servi-me da tradução francesa do polaco Christiano Ostrowski.
[ix] As três primeiras poesias desta coleção foram publicadas sob o anônimo nas colunas do Correio Mercantil; a quarta e quinta saíram no Diário do Rio, sendo esta última assinada. A sexta é inteiramente inédita.
[x] Esta poesia, como se terá visto, é a resposta que me deu o meu amigo F. X. de Novaes, a quem foram dirigidos os versos anteriores. Tão bom amigo e tão belo nome tinham direito de figurar neste livro. O leitor apreciará, sem dúvida, a dificuldade vencida pelo poeta que me respondeu em estilo faceto, no mesmo tom e pelos mesmos consoantes.